D. Carlos Ximenes Belo anuncia comemoração dos 450 anos da evangelização de Timor

A propósito do aniversário da independência (20 de Maio) Completou-se em 20 de Maio o primeiro ano de independência de Timor leste. A comunicação social referiu timidamente o facto, sem aquela exuberância com que acompanhou quer a caminhada realizada até essa data quer a institucionalização há um ano. Foi uma oportunidade para uma entrevista com D. Carlos Ximenes Belo, Bispo de Dili, que desde há meses se encontra na Casa salesiana de Vila do Conde em descanso, e trabalho de investigação. A convite de várias comunidades, tem presidido a celebrações e realizado conferências em vários locais. Nesta entrevista anuncia uma importante realização: as comemorações dos 450 anos da evangelização de Timor. E promete para breve um regresso a Timor. Voz Portucalense (VP) – Passou há pouco (20 de Maio) o primeiro aniversário da declaração oficial da independência de Timor. O Senhor Bispo falou há dias das dificuldades actuais de Timor, quer no aspecto social, quer no aspecto político e de governação da nação. Como avalia o momento actual de Timor Leste nestes e noutros parâmetros? D. Carlos Ximenes Belo (XB) – Tenho acompanhado, embora não em profundidade, o desenrolar da vida timorense. Em primeiro lugar, estamos num período de transição, de aprendizagem das instituições democráticas; em segundo lugar, o país enfrenta muitos problemas, a começar pelo económicos e financeiros, porque o país vive de esmolas ou auxílios internacionais de um grupo de países e do Banco Mundial, que regularmente se reúnem para acompanhar a situação; e também de algumas taxas ou impostos sobre o comércio, as importações e exportações, mas o sistema da organização da economia ainda não se encontra devidamente apurado e a funcionar… VP- Portanto os problemas maiores situam-se ao nível económico e da prática política e governativa… XB – … da prática política e da necessidade de se elaborar um programa de desenvolvimento e governação. Por exemplo, os currículos de estudo das escolas: ainda não se encontra definido nenhum modelo, ainda se usa a língua indonésia sobretudo do 5.º ao 9.º ano, e cada escola tem de elaborar o seu programas; também a nível judicial não há um sistema equilibrado, que usa leis da Indonésia ou de Portugal mas sem a devida articulação; falta ainda um ministério da economia, que o primeiro ministro ainda acumula e devia estar à parte; falta ainda a paz social, existem muitos conflitos com os partidários da integração, ainda se notam essas forças; e falta sobretudo a consciência de que após a independência conquistada se tem que trabalhar e adquirir uma iniciativa própria que conduza ao desenvolvimento. VP – E como caracteriza e define o papel e acção da Igreja nesse desenvolvimento do país, bem conhecida e determinante no passado, mas sobretudo em ordem á construção do futuro? XB – No passado foi a defesa da dignidade e dos direitos do povo; agora tem que se voltar sobretudo para acção pastoral de consciencialização cristã; mas deve também desempenhar uma acção relevante no campo da reconciliação e da construção da justiça social entre os diversos níveis da população. VP – Xanana Gusmão foi recentemente galardoado com um prémio internacional pela acção em favor da paz (o prémio Houphouët-Boigny da Unesco). Como avalia a acção de Xanana no processo de constituição e solidificação das estruturas governativas para país? XB – Ele é o Presidente, as suas competência estão limitadas pelo regime semi-presidencial vigente; não tem todo o poder, que está também no Parlamento e no Governo; praticamente o primeiro ministro detém mais competências e poder que o Presidente… Mas tem desempenhado um papel importante de apelo à unidade e reconciliação do país. Penso voltar a Timor VP – Conhecendo o papel do senhor Bispo na afirmação da identidade do povo, na condução dos passos que levaram à independência e na criação de uma coesão interna das forças sociais, como vê o seu afastamento da diocese? XB – Pensei muito seriamente nesse aspecto. Estive à frente da Diocese dezanove anos; e não queria estar outros dezanove, para evitar o que poderia ser uma estagnação. No entanto a razão principal foi a da saúde; mas também pensei que numa altura em que as pessoas estabeleciam sempre a ligação Xanana e Ximenes Belo, eu não quero nem devo estar nessa situação; portanto pensei ser melhor afastar-me, porque instaladas a estruturas governamentais e da sociedade civil, quero que os timorenses amadureçam e se tornem adultos; faz bem que eu me afaste um bocadinho, evitando que se recorra sempre ao bispo e que ele seja o conselheiro de todos. O povo tem cabeça para pensar e pés para andar por si… A frase que eu sempre repeti nas minhas visitas de despedida foi esta: Timor agora é uma nação nova, com a Igreja organizada em dioceses que agora são duas, mais tarde serão três, é melhor que tenham bispos novos, com sangue novo, estratégias pastorais renovadas. Eu sem dúvida ajudarei. E é por isso que volto para lá em Setembro ou Outubro, mas sobretudo para ajudar na formação da juventude e eventualmente colaborar os párocos nas paróquias mais necessitadas, mas não quererei assumir protagonismo, preferindo que o assumam pessoas mais novas. VP – Essa resposta vem já de encontro à pergunta seguinte: se pensa voltar à presença na sua diocese. XB – Sim penso voltar, porque Timor precisa de tudo e de todos; e se quer ser uma nação em crescimento, uma das estruturas que importa renovar é a própria Igreja; e neste campo penso que talvez eu possa ajudar. Sobretudo na criação de estruturas educativas. Igreja e sociedade laica VP – Voltando-nos agora um pouco para dentro da sociedade e da Igreja em Portugal. Sei que esteve há dias a presidir a uma festa de forte cariz popular num santuário típico do centro rural de Portugal [Santuário da Senhora da Lapa, no dia 10 de Junho]. Presidiu igualmente à Festa da Ascenção na Capela das Almas, no centro do Porto. Tem também estado em muitas outras situações de um Portugal religioso mais evoluído teológica e sociologicamente. A partir destes contactos que tem mantido nos últimos tempos, como analisa a religiosidade portuguesa e a forma como a Igreja procura dar resposta aos problemas emergentes? XB – Segundo o reitor do santuário estariam de facto ali umas 12 mil pessoas, em missa ao ar livre. Foi a primeira vez. Naquele ambiente agreste, com uma tão grande participação das pessoas, isto diz-nos que o povo tem uma forte tradição da religiosidade popular. Por isso importa aproveitar estas ocasiões para uma acção de evangelização e para encaminharmos as pessoas, ajudá-las a descobrir os caminhos da fé… VP – E numa perspectiva mais alargada, de todos os locais onde tem estado, em conferências, encontros, debates, celebrações, que leitura faz da mentalidade religiosa católica em Portugal? XB – Fundamentalmente ainda se nota um vivência da fé e dos valores do cristianismo. Por um lado noto que a falta de sacerdotes exige um laicado mais forte para que se torne “o sol da terra e a luz do mundo”; a Igreja terá de desenvolver um grande diálogo que conduza a esta renovação. Mas há tantos problemas de exclusão social, que a Igreja, que lhes tem vindo a prestar atenção, aprofunde essa acção, por exemplo no apoio aos imigrantes e aos mais pobres… VP – Noutra perspectiva, como vê o relacionamento da “inteligência” das estruturas e pessoas da Igreja com a “inteligência” de uma sociedade laica, como interpreta essas dinâmicas? XB – Penso que nesse campo a Igreja se deveria tornar mais visível, fazer-se notar mais. Eu não conheço muito da mentalidade social e cultural portuguesa, apenas por cá ter estudado, mas pressinto que ainda domina muito um certo espírito laicista, jacobino… VP – … que também se verifica na Europa, como se nota na relutância em que haja referências ao cristianismo e às raízes cristãs na futura constituição europeia… XB – Por isso penso que é importante apontar para a formação também no campo religioso dos dirigentes políticos, dos homens da cultura, da arte, da filosofia. Não tenho mantido muitos contactos com o mundo universitário, mas parece-me que este aspecto da valorização da cultura religiosa necessita de ser mais cuidada. VP – Enquanto permanece em Portugal, certamente tem entre mãos a elaboração de memórias históricas que podem ser preciosas para o conhecimento da história religiosa e cultural do povo timorense. Pensa publicar essas memórias? Uma História de Timor: 450 anos de evangelização XB – Nestes meses que estou aqui, nos tempos disponíveis, tenho vindo e elaborar, e já estou a entrar no século XX, a História das Missões Católicas e da evangelização em Timor, que se iniciou em 1556, pelos padres dominicanos, que terão sido os primeiros a chegar. Os jesuítas chegaram depois, porque estiveram mais na Índia, nas Molucas, na China e no Japão, mas aquela parte chamada Sonda Menor (Solor, Timor, Flores) foram evangelizadas pelos dominicanos que aí permaneceram ao longo do séc. XVII e XVIII. Aliás, no ano de 2006 estamos a preparar a comemoração dos 450 anos da evangelização de Timor oriental. Por outro lado, também muitas pessoas que vão a Timor perguntam por uma história do país: não há nada. Estou a tentar um esboço dessa história, para dar a minha contribuição para a história do povo. Mas faltam-me documentos, tenho de continuar a percorrer os arquivos. Outra coisa ainda: como há muita gente a pedir que eu escreva sobre a minha estadia em Dili, desde 1983 até ao ano de 2002, todo aquele período dos anos 80 e 90, estou a elaborar uma memória desses tempos… VP – Deve haver aí uma grande riqueza de dados religiosos e sociais de grande relevo… XB – Sim, mas tem-me faltado o tempo para o fazer, e muitos dos documentos e apontamentos meus estão em Timor. VP – Acaba de dar uma informação que não tenho visto referida na imprensa: a celebração dos 450 anos das evangelização de Timor. XB – Sim, partimos dessa data, porque, segundo a tradição, no ano de 1556 apareceu lá um frade dominicano (ainda está em discussão: os franciscanos dizem que era franciscano, e os dominicanos que era dominicano…). Chamava-se António Taveiro, OFM; os dominicanos dizem ser António Taveira, OP… Só isto já dá para uma tese… Diz a lenda que quando ali chegou, na ilha de Timor baptizou cinco mil pessoas. Foi daí que as notícias depois chegaram a Solor, depois a Malaca; o primeiro bispo de Malaca é um dominicano, D. Jorge de Santa Luzia, que enviou para Sólor quatro missionários; para Timor isso apenas aconteceu mais tarde, aí por 1640, quase um século depois. Por isso estou a estudar estes dados históricos que fundamentam a comemoração dos 450 anos em 2006. VP – Parece ser uma óptima oportunidade para voltar a fazer emergir o reconhecimento internacional de Timor leste… XB – Sem dúvida. VP – Pedia-lhe agora uma opinião sobre os acontecimentos internacionais recentemente mais falados: a invasão do Iraque, os seus resultados e as perspectivas de futuro, a questão israelo-palestiniana… há aqui alguma esperança, mas parece ruir com os novos atentados… XB – O primeiro que digo é que os israelitas e palestinianos não podem escapar dessa realidade: terão que viver lado a lado. Por isso importa desenvolver a via do diálogo e a via diplomática para resolver a situação e viver em paz. Importa superar os extremismos. Têm que ser dois povos irmãos vivendo lado a lado, como os povos europeus. Quanto ao Iraque, superada a guerra, espera-se a reconstrução do país, e esperemos que esse tipo de acção bélica não se torne e repetir: que para depor um ditador haja que matar tanta gente! Importa que os líderes religiosos não caiam em novos extremos… VP – E agora, uma opinião sobre os problemas que se debatem actualmente no universo mediático em Portugal: pedofilia, escândalos políticos, emergência do futebol, falta de dinamismo social e cultural, … XB – É importante a informação sobre estes casos, mas também que não se fale senão disso. Parece que não há mais temas, problemas ou factos sociais; parece que se passa ao lado das inquietações das pessoas. Às vezes penso: os jornalistas têm formação ou não têm? Se têm, qual é a filosofia que preside à sua acção? Dar notícias sensacionais, ou contribuir para a educação do povo, formar e entreter, no bom sentido da palavra? As escolas ensinam isso, mas depois a prática funciona mal. Alguns conceitos de respostas breves Cristianismo – Falo da minha experiência pessoal. É um dom, uma graça, mas não deve hoje levar-nos a uma apologética. Tem que se abrir aos que não são cristãos. Abertura a todos os seres humanos, transmitir-lhes a nossa mensagem, mas sobretudo procurar colaborar com todos para o bem comum. Paz – É também um dom e um bem para toda a humanidade. Igreja – Deve abrir-se mais para o exterior, para o mundo, dar-lhe esperança, indicar-lhe os grande ideais… João Paulo II – Um grande Papa, inserido no espírito do Vaticano II, e esperemos que continue a ter força para levar ao fim as suas tarefas. Ecumenismo – Esforço pelo diálogo alargado: não apenas aos cristãos, mas abrir o leque a todas as religiões e povos. União Europeia – Coisa positiva, estímulo para superar divergência e evitar os conflitos e guerras, e que procure, com a riqueza que tem, ajudar a África, a Ásia e a América latina. Estados Unidos da América – Que faça uma reflexão: não pode confiar exageradamente no seu poderia económico e militar, não pretenda dominar o mundo. Os grandes impérios também ruem e sossobram, ensina a história. Salesianos – Congregação com altos e baixos, na Europa e na América, as vocações diminuem, há uma certa crise, mas mantém o seu ideal de formação e educação. Bioética – Toca a essência da pessoas humana. Degenerar, ou manter a nossa identidade saída das mãos de Deus? Educação religiosa nas escolas – Os crimes de que se fala são também resultado da falta de disciplina, de ética e de educação religiosa. Que as autoridades tenham isso em conta. Carlos Ximenes Belo – Um Bispo em fase de repouso e reflexão, mas atento ao seu povo, à Igreja e ao mundo.

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