«Cultivar a razão crente»

Catequese do 3º Domingo da Quaresma de D. José Policarpo 1. O cristão, peregrino da verdade, deve aprofundar, continuamente, as razões do seu acreditar e isso exige que, na formação da sua fé, valorize o papel da razão. Esta pode sustentar mesmo a dimensão sobrenatural da fé como acolhimento da revelação de Deus. Já vimos que a razão e a fé são as duas asas que permitem ao homem voar ao encontro da verdade. São ambas dom de Deus, que nos criou e nos salvou. A razão é dinamismo de verdade impresso por Deus no homem, quando o criou à Sua imagem; a fé é o dom que permite ao homem histórico, enfraquecido pelo pecado, aderir à verdade que Deus lhe revela, para o salvar. São dois dons de Deus que se completam, tornando o homem capaz de aderir à verdade. A razão natural, por si só, não seria capaz de chegar à verdade revelada. Mas pode acolhê-la e assumi-la como verdade humana, e integrá-la no seu habitual exercício de busca da verdade. Não a recusa, antes se surpreende e alegra, encontrando no mistério o objecto da sua busca. Transforma-se, então, na razão crente, que garante à fé, enquanto abertura ao mistério, a solidez da racionalidade. É muito grave o divórcio entre a razão e a fé na nossa caminhada para a verdade. A razão auto-limita-se, excluindo como seu objecto próprio o pensar a verdade que nos foi revelada e aceitando apenas a verdade que pode alcançar com o seu dinamismo natural; e a verdade da fé, não percebendo que precisa da razão para se humanizar e para ser acolhida e aprofundada, pode cair em expressões “pietistas”, prontamente rejeitadas pela racionalidade da cultura. Se a Filosofia procurou levar o dinamismo natural da razão, na busca da verdade, tão longe quanto possível, compete à Teologia elaborar a síntese entre a razão e a fé na compreensão da verdade, no esclarecer da “razão crente”. A fé não é racional no sentido de encontrar a sua origem nas capacidades da razão. Mas torna-se racional porque, para se acreditar, temos de acolher com a inteligência e o coração a verdade que Deus nos revela. Ao acolher a verdade revelada, a razão humana alarga o seu horizonte na busca da verdade e aperfeiçoa a própria racionalidade humana. A razão natural é capaz de Deus 2. A inteligência racional é um dinamismo de busca da verdade, concretizada na procura da compreensão do Universo e do sentido do homem e da vida. Ao longo de milénios fê-lo acuradamente, chegando à formulação das questões primordiais: “Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida?” (…) São questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem”1. Na busca de respostas a estas questões fundamentais, a razão humana chegou à existência e a uma certa compreensão de Deus, verdade primeira e segredo da resposta para todas aquelas interrogações. A contemplação da beleza e da harmonia da criação, e o aprofundar do próprio mistério do homem, foram os pontos de partida dessa busca da verdade. Esta abertura ao ser absoluto, a partir da razão natural, preparou a inteligência humana para acolher a revelação de Deus como surpresa gratificante, porque Deus vem ao encontro da busca humana da verdade. Esta possibilidade de a razão humana chegar a Deus, porque Este se manifesta na criação, levou alguns a afirmarem que ela é a única fonte de conhecimento. Foi o caso da crítica racionalista, na segunda metade do séc. XIX e inícios do séc. XX, que “insistia na negação de qualquer conhecimento que não fosse fruto das capacidades naturais da razão”2. Esta posição que pretendia engrandecer a razão e excluía a fé como fonte de conhecimento, acabaria por diminuir a própria razão, pois não lhe reconhecia a capacidade de acolher e fazer suas as verdades da fé. A razão e a fé são duas fontes de conhecimento, que não se confundem, nem anulam mutuamente, antes se podem encontrar na inteligibilidade da fé. O Papa João Paulo II afirmou a este respeito: “Existem duas ordens de conhecimento, diversas não apenas pelo seu princípio, mas também pelo objecto. Pelo seu princípio, porque, se num conhecemos pela razão natural, no outro fazemo-lo por meio da fé divina; pelo objecto, porque além das verdades que a razão natural pode compreender, é-nos proposto ver os mistérios escondidos em Deus, que só podem ser conhecidos se nos forem revelados do Alto. A fé, que se fundamenta no testemunho de Deus e conta com a ajuda sobrenatural da graça, pertence efectivamente a uma ordem de conhecimento diversa da do conhecimento filosófico”3. A razão perante o mistério 3. O conhecimento de Deus faz parte dos anseios da razão humana na sua busca da verdade. Só que está limitado na sua capacidade de penetrar no mais íntimo do mistério de Deus. Ao revelar-se, Deus vem ao encontro da razão humana, enquanto dinamismo de conhecimento, proporcionando-lhe um novo horizonte da verdade de que as vicissitudes históricas a tinham tornado incapaz. Por isso a reacção espontânea da razão perante a revelação deveria ser de surpresa agradecida. A fé é a adesão do homem à verdade revelada. Como diz o Concílio Vaticano II, “a Deus que revela, é devida a obediência da fé”4. Porque a razão humana pode acolher a verdade revelada, a fé enquanto adesão a essa Palavra, é, no seu dinamismo fundamental, um acto da razão onde esta encontra o seu verdadeiro horizonte como capacidade de verdade. É que a própria Revelação é rica em inteligibilidade. A Palavra de Deus traz consigo a credibilidade dos conteúdos que revela. Porque é uma adesão do homem todo à verdade, a fé é um acto de razão; porque só é possível com a luz e a força de atracção que brotam da Palavra, a fé é um dom gratuito de Deus. Ouçamos a belíssima síntese do Papa João Paulo II: “Pela fé, o homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isto significa que reconhece plena e integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque é o próprio Deus que o garante. Esta verdade, oferecida ao homem sem que ele a possa exigir, insere-se no horizonte da comunicação interpessoal e impele a razão a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. É por isso que o acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi considerado pela Igreja como um momento de opção fundamental, que envolve a pessoa inteira. Inteligência e vontade põem em acção o melhor da sua natureza espiritual, para consentir que o sujeito realize um acto no pleno exercício da sua liberdade pessoal”5. 4. Para que a fé seja um acto de razão, exige-se a purificação da própria razão, que se realiza no processo de humildade que deve marcar toda a actividade racional na busca da verdade. Uma razão orgulhosa e auto-suficiente nunca será capaz de assumir a fé como expressão da sua busca da verdade. O Papa Bento XVI, que voltou a situar este tema no centro do seu Magistério, afirma na sua primeira Encíclica: “A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo – um encontro que nos abre novos horizontes muito para além do espaço próprio da razão. Simultaneamente, porém, ela serve de força purificadora para a própria razão. Partindo da perspectiva de Deus, liberta-a das suas cegueiras e, consequentemente, ajuda-a a ser mais ela mesma. A fé possibilita à razão a melhor realização da sua missão e a visão mais clara do que lhe é próprio”6. Não considerar a fé como uma adesão da razão humana à verdade, é relegá-la para o campo do extra-racional, que se identifica, com pouca exactidão, com o mistério. A fé reduz-se, então, à religiosidade emotiva, e deixa de se situar na caminhada do homem como peregrino da verdade. Se a razão humana acolher a fé como uma expressão da sua busca da verdade, ela assume o mistério como objectivo da sua busca, aceita-o como realidade que a atrai, tendo, perante ele, a humildade que deve presidir a toda a sua procura da verdade. Diz João Paulo II: “No acreditar é que a pessoa realiza o acto mais significativo da sua existência; de facto, nele a liberdade alcança a certeza da verdade e decide viver nela”7. A verdade da revelação não se impõe à razão através da lógica de conclusões inevitáveis. É um desafio à liberdade, sublinhando a relação que há entre liberdade e busca da verdade. Mas a revelação do mistério apresenta-se à razão com fortes sinais de credibilidade, a começar pela sua interioridade ao homem e a sua sintonia com a natural ânsia da verdade. Leiamos, mais uma vez, a Fides et Ratio: “Em auxílio da razão, que procura a compreensão do mistério, vêm também os sinais presentes na Revelação. Estes servem para conduzir mais longe na busca da verdade e permitir que a mente possa autonomamente investigar inclusive dentro do mistério. De qualquer modo, se, por um lado, esses sinais dão mais força à razão, porque lhe permitem pesquisar dentro do mistério com os seus próprios meios, de que ela justamente se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua realidade de sinais, para apreender o significado ulterior de que eles são portadores. Portanto, já há neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a mente e da qual esta não pode prescindir sem destruir o próprio sinal que lhe foi proposto”8. 5. Na formação cristã, para solidificar nos crentes as razões da sua fé, tem de se aprofundar esta relação da razão com a fé. Esse é o papel da Teologia e da Filosofia, que podem ser exercidas em diversos graus de profundidade. Num tempo em que, na educação, se transmitem cada vez mais conhecimentos científicos, a formação cristã não pode descurar a sua base de racionalidade. É preciso estar atento, aprendendo a reconhecê-los, aos sinais de credibilidade, que fazem a ponte entre a revelação e a razão, facilitando a esta o interessar-se pelo mistério. Mas disso falaremos no próximo Domingo. D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca

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