Culpas e reparações sem Deus e sem ética

Jorge Teixeira da Cunha, Diocese do Porto

A controvérsia desencadeada com a proposta de reparações pela escravização de pessoas no passado colonial português é um assunto de grande complexidade. Mas não podemos deixar de o abordar também do ponto de vista teológico. O nosso contributo é indispensável e constitui talvez o único ponto de vista que pode ir ao centro da questão. É que o cristianismo não apenas sabe de culpas e pecados, mas tem no seu núcleo a práxis da reconciliação. E isto é decisivo para tratar do assunto.

O debate sobre a escravatura, tal como o conduzem, historiadores, sociólogos e políticos, enferma precisamente deste defeito de esquecer o ponto de vista da ética e da teologia. Pelo caminho do positivismo das ciências humanas, apenas podemos lamentar o que aconteceu, exibir diagnósticos que são até bastante certeiros, sobrecarregar de culpas o passado e o presente, mas não vamos além disso. As análises do passado são, depois, atiradas como arma de arremesso entre os diversos agentes políticos de hoje. Mas nenhum passo adiante é dado e o nível de agressividade sobe de intensidade, sem solução à vista. O que falta então?

O cristianismo descreve a realidade como reconciliação, antes de a descrever como pecado, como injúria, opressão e injustiça. No centro de tudo está a doação do real como amizade, como diferença em vista da comunhão. É uma acção originária que tem Deus como autor e actor, antes do fracasso do ser humano e do seu mundo. Esta práxis originária está sempre disponível como graça acessível a quem a aceita, após a sua queda histórica no pecado. Por isso, o diagnóstico do mal feito e sofrido não é apenas uma memória opressiva que leva ao desespero, mas uma aceitação do dom da graça que cura e que salva o ser humano no seu drama histórico.

A evidência da escravatura é a memória mais opressiva que a humanidade leva consigo. O cristianismo tem a sua origem histórica no tempo do Império Romano que, como os impérios que o precederam, assentava na ideia de que os seres humanos nasciam uns para a liberdade outros para a servidão. Nesse contexto, Jesus inaugurou a amizade que aproxima as diferenças homem-mulher, escrava-livre, adulto-criança, autóctone-estrangeiro. Aí se encontra o centro da vida que se faz ética da reconciliação e da superação da escravatura, dos sistemas de casta, do apartheid e de todas as formas de injúria da comunidade humana. A comunidade histórica dos seguidores de Jesus não foi capaz de curar as feridas da escravatura, pactuou co elas por um tempo demasiado longo. Essa é uma ferida que não sara.

O que pode fazer a Igreja de Cristo, dividida contra a vontade do seu Fundador, para curar as feridas da escravatura?

O primeiro que tem a fazer é viver a reconciliação entre os seus membros como forma de cura das feridas actuais e históricas. Esta vivência será o testemunho colocado diante de todos, sem paternalismo, sobre a possibilidade de levar à prescrição dos fracassos históricos. A vivência será também fonte da reflexão que vai contando, sempre de novo, a história da opressão, como caminho para curar a alma ferida das gerações actuais. As eventuais reparações de que se fala são secundárias em relação a este trabalho de cura. A memória purifica-se pelo propósito firme de não repetir as injúrias, por instituições que hoje garantem a inclusão de todos, para lá do racismo, da exclusão, da hostilidade.

Para que este esforço seja eficaz, a ética cristã tem outro elemento muito importante a fornecer à reflexão e à opinião pública de hoje. Trata-se de afirmar que o sujeito da história não é o vencedor, mas o vencido. De um modo geral, pensamos a história como história de quem ganhou, de quem foi visível, de quem trunfou na vida. Esta esforço de predomínio está também patente nos esforços daqueles que hoje, talvez com boa vontade, tentam escrever hegemonicamente a história do passado. A história não é mestra da vida nesse sentido. A história ensina quando leva os seus agentes a depor o falso jogo de poder e a aceitar que a perfeição vem da reconciliação e não do triunfo sobre os outros, mesmo que seja um trinfo póstumo. O sofrimento das vítimas nunca prescreve. Talvez seja esse sofrimento, dos que foram escravizados e injuriados, que nos salva, ontem como hoje.

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Agência ECCLESIA

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