Cuidar da Terra é um dever

Homilia do Bispo do Porto no Dia Mundial da Paz

Sinal e profecia do universo novo

 

É de grande encanto, caríssimos irmãos e irmãs, o modo como o evangelista Lucas nos coloca com os pastores diante de Jesus, Maria e José. Acabamos de o ouvir, mas peço-vos que o oiçamos de novo: “Naquele tempo, os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura. […] Os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, como lhes tinha sido anunciado”.

Com tão poucas palavras, além das outras, temos tudo o que importa acolher na inteligência e no coração, para celebrarmos Santa Maria Mãe de Deus e o Dia Mundial da Paz, com alusão indispensável à Mensagem de Bento XVI, este ano intitulada “Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação”.

Sigamos os pastores, admiremos a Sagrada Família e glorifiquemos a Deus. Nisto mesmo encontraremos a paz e a religião de Cristo. Encontraremos a paz, passando do alvoroço à surpresa; subiremos à religião de Cristo, substituindo o interesse pela glorificação do Pai. Por fim, preencheremos a natureza com uma autêntica alegria de pastores dela, respeitando a criação e concluindo-a com a nova criação que precisamente em Cristo acontece.

Tempos houve – quase todo o tempo até, da nossa longa história humana – em que a natureza era sentida como totalidade, inexorável totalidade, donde cada um mal se destacava, tal era a dependência de condições propícias ou adversas.

Num país como o nosso, mal conseguimos imaginar facilmente o que era a precariedade das vidas e o sobressalto dos dias, ainda há poucas gerações atrás. A altíssima mortalidade infantil, a pouca defesa contra qualquer infecção ou contágio, as resumidas práticas higiénicas, tudo se somava negativamente para ameaçar as vidas e agigantar os temores. Assim era connosco, assim continua a ser em grande parte do nosso mundo contemporâneo e desigual, sabemo-lo bem.

Como vivíamos culturalmente integrados, interiorizando vivências em sentimentos e traduzindo sentimentos em representações, tudo se reflectia também na religiosidade comum. Aspirando-se sempre à segurança, era em torno desta que se organizava a própria prática, visando acalmar pelo além a fragilidade do aquém e pedindo ao céu o que a terra podia pôr em causa.

A própria tradição bíblica só a pouco e pouco conseguiu “libertar” Deus das necessidades humanas e libertar o homem dos seus desejos imediatos, começando por este mesmo de se querer seguro e garantido. Como a religiosidade natural e espontânea, assim também a Bíblia inclui em muitas páginas as manifestações recorrentes duma humanidade que só se lembra de Deus quando d’Ele precisa… Mas aqui não há conversão, antes recurso e interesse.

Finalmente, quando em Jesus Deus nos diz a última palavra sobre si e sobre nós, a liberdade divina e a liberdade humana revelam-se inteiramente. A de Deus, como liberdade absoluta e absolutamente libertadora; a nossa, como liberdade dos filhos de Deus. Melhor ainda, retomando as palavras de Paulo aos Gálatas, que ouvimos há pouco, dizendo-nos que o Filho de Deus, filho de Maria também, nos elevou a uma relação filial com o Pai, plenamente gratuita e livre. Daí que o Apóstolo conclua e exorte: “E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: ‘Abbá! Pai!’. Assim, já não és escravo, mas filho. E, se és filho, também és herdeiro, por graça de Deus”.

Religião de “filhos no Filho”, religião de adoradores universais, que tudo remontam à Fonte e de nada se apropriam como exclusivamente seu. Porque a própria natureza passa a ser outra coisa. No mar da Galileia, mesmo com vento forte e ondulação agitada, os primeiros discípulos viram e ouviram Jesus a acalmar os elementos, em refeita sintonia. Tempos depois, os que estavam no Calvário viram a terra e o céu a compartilhar do seu drama salvador, tremendo aquela e escurecendo-se este. E estou certo de que a madrugada pascal apareceu por fim com uma luminosidade nunca vista. Mas isto aconteceu em Cristo, porque nele a harmonia se reencontrava na comunhão do Criador com a criatura.

Quererá isto significar também que, em Cristo, a nossa humanidade é salva na sua mesma precariedade por um Deus humanado que a assume e garante pela união com o Pai, Fonte da Vida até na própria morte.

Libertação mais completa não a há decerto. E deste modo aceites tanto as vicissitudes humanas como as naturais, todas se tornam ocasião e desafio para uma vida mais plena, como é próprio de filhos de Deus. A resposta que Deus dá às nossas inseguranças é assumi-las Ele mesmo em Cristo, para as repassar de caridade vitoriosa: “A minha vida ninguém ma tira, sou Eu que a dou!” (cf. Jo 10, 17-18).

Assim mesmo nos ensina que até as circunstâncias mais gravosas, naturais ou outras, podem assinalar outras tantas vitórias da vida, pela caridade que as perpasse e exceda, aí sim, em perfeita liberdade. Desse modo se vencerão os medos, como as deformações religiosas que lhes são próprias. Não sabemos como se estava naquela altura em Belém; mas São Lucas quer-nos dizer que, ao depararem com a Sagrada Família, os pastores encontraram uma paz a toda a prova. Naquela Família, mesmo nas condições limitadas e nos sobressaltos vários que a atingiram então e depois, tudo estava salvo, porque tudo era oferta ao Pai e aos outros.

Fica Deus “liberto” das nossas necessidades, uma vez que as assume e pascalmente as salva. E ficamos nós livres pela pura caridade. É um longo caminho a percorrer, sabemo-lo bem. Tão longo, aliás, como o que geralmente demoramos para evoluir entre nós, das relações de mera necessidade e conveniência para relações verdadeiramente livres e gratuitas, em que nos amemos apenas “porque sim”, em tudo e mesmo apesar de tudo.

 No que à religião respeita, significa passar do habitual apelo a este ou àquele santo, feito advogado desta ou daquela necessidade, para a relação filial que Jesus nos enuncia no “Pai Nosso”. É verdade que na Comunhão dos Santos somos acompanhados por aqueles que já concluíram em Cristo o seu caminho para o Pai, e especialmente nos aspectos mais sugestivos das suas vidas e lugares. Mas o que os santos mais querem, caríssimos irmãos e irmãs, muito mais do que garantirem a vida que ainda levamos, é levar-nos com eles no seguimento de Cristo. Assim se transmudará a religião espontânea em religião salva e salvadora.

Tudo isto se endereça ao tópico deste Dia Mundial da Paz: “Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação”. Na sua oportuníssima Mensagem, Bento XVI lembra-nos pontos essenciais duma ecologia integral, em que nada fique de fora da vontade do Criador, assim esclarecida (segundo o Catecismo da Igreja Católica): “Porventura não é verdade que, na origem daquela que em sentido cósmico chamamos ‘natureza’, há um desígnio de amor e de verdade? O mundo não é fruto duma qualquer necessidade, dum destino cego ou do acaso, […] procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participantes do seu ser, da sua sabedoria e da sua bondade” (Mensagem, nº 6).

Intenção divina que passa, indispensavelmente, pela responsabilidade humana. Concretizando mais um pouco: não temos uma terra para temer nem para desgastar, mas para conhecer e desenvolver, como verdadeiros cuidadores dela. Nisto colaboraremos com Deus, cumprindo da criação o que nos caiba. – E ainda será tanto, do nosso pequeno planeta até aos espaços siderais que nos desafiam, mas sobretudo nos levam a dar glória ao seu divino Autor!

 

Tomaremos como próprias, tanto a nossa actual situação precária como a crescente condição divina em que o Espírito de Cristo nos vai garantindo, num longo percurso de libertação que até da morte fará vida, porque transformada em dom. E, especialmente nestes dias e com a presente Mensagem papal. Ponhamos nesse horizonte último da liberdade divina e divinizada a nossa expectativa e segurança.

 

Não em nós e só por nós – o que seria correr contra o tempo e já vencidos – e não nas coisas pelas coisas, que, sendo sinais dum Amor que nos convida, só agradecidas e partilhadas realizam o seu fim, como o concluiu magnificamente Agostinho nas suas Confissões 10, 27: “Tarde Vos amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Vós estáveis dentro de mim, mas eu estava fora, e fora de mim Vos procurava; com o meu espírito deformado, precipitava-me sobre as coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava convosco. Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e dissipastes a minha cegueira. […] Tocastes-me, e agora desejo ardentemente a vossa paz”.

Também para que a natureza possa “respirar”, sem ser sufocada por uma avidez que acabaria por nos sufocar a nós. Ainda neste sentido compreenderemos Paulo, quando escreve que “a criação aguarda ansiosa a revelação dos filhos de Deus; se ela foi submetida à vaidade, […] foi com a esperança de ser também ela libertada da servidão da corrupção para participar, livremente da glória dos filhos de Deus” (Rm 8, 19-21).

Finalmente se resolverá de raiz a actual questão ecológica, que exige uma mudança igualmente radical dos desejos que estão por dentro dos consumos excessivos ou desorientados. Será difícil, senão impossível, respeitar a criação enquanto quisermos das coisas o que só espiritualmente se resolve – na “alma” das coisas, poderíamos dizer -, como sentido, segurança e destino. Libertos do medo e da avidez que tão mal o disfarça, deixaremos o mundo respirar e assim respiraremos nós em comunhão serena e autenticamente festiva, ou seja, em que caibamos todos.

Na representação evangélica que contemplámos com os pastores, tudo era calmo, atraente e oferecido. Quando em Roma o maior poder do mundo de então se afirmava sobre tudo e sobre todos, quando em Israel o poder era um arremedo do que devia ser, alguns simples pastores – quase tão “naturais” como os campos em que viviam, guardando as suas ovelhas – descobriram a paz duma criança no colo da sua mãe. Como depois O contemplamos nós, homem feito e oferecido, nos braços da Senhora das Dores, onde a paz definitivamente se alcançou como entrega absoluta de si. Daí mesmo ressuscitando, para connosco inaugurar “um novo céu e uma nova terra” (cf. Ap 21, 1), que, começando no coração dos verdadeiros crentes, transfigurarão a criação inteira.

Um cristão só pode ser sinal e profecia deste universo novo. A maior contribuição evangélica para uma ecologia integral é e será o “estilo” cristão de vida, próprio dos que se deixaram libertar por Cristo para a verdade essencial e a beleza absoluta, que n’Ele todas as coisas alcançam, repassadas de caridade universal. Na esteira e no Espírito de Jesus, Francisco de Assis e tantos outros deram ao mundo o que este mais requer: a adoração do Criador e a fruição cuidadosa e solidária dos recursos da criação. Adianta Bento XVI: “Por fim, não se deve esquecer o facto, altamente significativo, de que muitos encontram tranquilidade e paz […] quando entram em contacto directo com a beleza e a harmonia da natureza. Existe aqui uma espécie de reciprocidade: quando cuidamos da criação, constatamos que Deus, através da criação, cuida de nós” (Mensagem, nº 13).

Como é próprio do sacramento, a nossa celebração culmina no gesto definitivo que as palavras indicaram. Como quer a piedade cristã, juntamo-nos qual gota de água ao vinho de que o Espírito fará Cristo, bem como ao pão oferecido. Assim nos devolveremos com Ele ao Pai, autor e consumador da nossa vida, como da vida do mundo, última segurança e realização definitiva de tudo e de todos. Sacramento de início do ano, como do seu meio e do seu fim. Concluindo anda com Bento XVI: “A busca da paz por parte de todos os homens de boa vontade será, sem dúvida alguma, facilitada pelo reconhecimento comum da relação indivisível que existe entre Deus, os seres humanos e a criação inteira. Os cristãos […] consideram o cosmos e as suas maravilhas à luz da obra criadora do Pai e redentora de Cristo, que, pela sua morte e ressurreição reconciliou com Deus todas as criaturas, na terra e nos céus” (Mensagem, nº 14).

Na nossa diocese começamos hoje a Missão 2010. Como se tem afirmado, visa directamente a maior expansão e incidência do anúncio evangélico, por parte das nossas comunidades cristãs, mês após mês, na sucessão dos respectivos motivos. É estimulante verificar, para já, como a tradição do canto das Janeiras está a ser revitalizada nesse sentido em tantas paróquias, para continuarem o que os pastores começaram, segundo o Evangelho de hoje: “Os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, como lhes tinha sido anunciado”. Outros meses se seguirão, na mesma certeza de que, pelas comunidades cristãs, o Espírito de Cristo quer renovar o mundo!

Sé do Porto, 1 de Janeiro de 2010 

+ Manuel Clemente

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