Criação e evolução: a importância de um tema

Dedicada ao tema da Criação e Evolução, decorreu na Universidade Católica entre 18 a 21 de Fevereiro a tradicional Semana de Estudos Teológicos. Algum tempo antes, havia sido publicada pela Universidade Católica Editora a tradução portuguesa do livro Criação e Evolução. Uma jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo, cujo original alemão fora da responsabilidade do “Círculo de discípulos de Joseph Ratzinger” (os que fizeram com ele o doutoramento ou a “habilitação” pós-doutoral) e reproduzia as intervenções e os debates que ocuparam os dias de estudo que decorreram em Setembro de 2006. Pretendia-se obter uma maior clareza sobre a relação entre a teoria científica da evolução e a fé cristã na criação, uma discussão que tinha sido intensificada após um artigo do Cardeal Schönborn no New York Times de 7 de Julho de 2005. Para entender do que verdadeiramente se trata, é necessário remontar aos antecedentes desta situação, já no sec. XIX. Quando, em 1859, Charles Darwin publicou a Origem das Espécies dava-se uma alteração profunda na representação do mundo própria do seu tempo. De uma concepção fixista das espécies animais, passava-se a conceber uma sua origem evolutiva através de um processo em que mutações casuais são seleccionadas por darem mais garantias de sobrevivência e reprodução. A teoria de Darwin recebeu uma nova solidez com os estudos do monge agostinho Gregor Mendel sobre as leis da hereditariedade. Só mais tarde a biologia molecular haveria de encontrar no gene e sua função replicativa o elo que faltava para explicar como as mutações são transmitidas. Mas logo desde o início, a recepção cristã dessa nova teoria foi diversificada, desde aqueles que temiam que a fé na criação ficasse em perigo até aos que na teoria da evolução encontraram mais motivos para admirarem a sabedoria criadora de Deus. Já em 1950 o Papa Pio XII na sua encíclica Humani generis reconhecia às ciências experimentais a competência de realizarem investigação no seu campo específico, em que se situa o domínio do corpo humano. A legitimidade da teoria da evolução foi admitida pelo Catecismo da Igreja Católica (nºs 283-286) e reconhecida como um facto pelo Papa João Paulo II. Tudo se complicara, no entanto, quando nos Estados Unidos da América surgiu, em meios protestantes fundamentalistas, o chamado criacionismo com a pretensão de fazer uma leitura literalista do relato do Génesis. Mais recentemente, surgiu uma nova proposta afirmando a existência de um intelligent design no universo e no mundo da vida, que remeteria para a necessidade de um autor inteligente na sua origem – o qual não poderia ser outro senão Deus. Para dialogar com todas as posições em presença – o evolucionismo, o criacionismo e o intelligent design – é necessário o discernimento. Com efeito, há sempre o perigo de, ao lançarmos fora a água em que demos banho ao bebé, lançarmos também fora a própria criança. E para esse discernimento é preciso termos em conta vários aspectos. Em primeiro lugar, sabermos distinguir os domínios de conhecimento ou tipos de racionalidade em que cada problemática tem de ser considerada e discutida. Um é o domínio das ciências positivas, em que tudo é estabelecido na base da experiência sensível para verificar como as coisas acontecem; outro o da filosofia em que se apela a princípios meta-físicos (isto é, para além da experiência empírica) para responder à questão dos porquês da realidade; e, finalmente, outro o da teologia que se baseia na revelação pessoal de Deus ao longo da história da salvação, culminando em Jesus Cristo. Deste modo, se deixarmos às ciências experimentais a sua própria competência, é desapropriado procurar nos textos bíblicos conhecimentos desta ordem que eles não pretenderam comunicar, até porque o género literário do Génesis não é o de uma exposição própria dessas ciências, mas antes o de uma narrativa poética e simbólica que como tal deve ser interpretada. Para sublinhar este aspecto, tem sido recordado que era assim que os Padres, os Pais da Igreja entendiam a hermenêutica bíblica. Neste contexto é muito citada uma passagem de St. Agostinho, referida precisamente ao Génesis: “Em matérias obscuras e que excedem tanto a nossa visão, encontramos nas Sagradas Escrituras passagens que podem ser interpretadas de maneiras muito diferentes sem prejudicar a fé que acolhemos. Nesses casos, não devemos precipitar-nos a assumir firmemente uma posição, correndo o risco de posteriores progressos na busca da verdade virem a miná-la, arrastando-nos na sua queda.” Mas ao recusarmos, assim, o criacionismo, não quer isto dizer que rejeitemos a ideia filosófico-teológica da criação. E aqui importa recordar o que nos ensinou S. Tomás de Aquino, ao distinguir a causalidade de Deus como causa primeira, e a causalidade de que Deus também dotou as criaturas à maneira de causas segundas. Só a primeira diz respeito ao Ser que detém em si a sua razão de ser, as segundas pertencem aos seres contingentes, que são mas poderiam não ser. Querer garantir a criação de Deus postulando, como fazem geralmente os defensores do intelligent design, uma intervenção especial de Deus que julgam imprescindível quando encontram uma complexidade considerada irredutível à evolução, é degradar Deus ao nível da causalidade segunda, própria das criaturas. Nesse caso estamos perante a concepção de Deus como “tapa-buracos”, tendo acontecido que complexidades, tidas a dada altura como irredutíveis, acabaram por ser explicadas pelo processo da evolução. Mas isto não quer dizer que aceitemos como suposta alternativa que toda a evolução se faz ao acaso, até porque, como já tem sido observado, o acaso é aduzido muitas vezes também com a função de “tapa-buracos”. Se as mutações surgem “por acaso”, ou seja, de modo imprevisível porque não necessário e com probabilidades mínimas, o mesmo não acontece com a selecção que tem como finalidade (e não vejo como evitar esta palavra) assegurar a melhor sobrevivência e reprodutividade de determinado ser vivo. Faz-se, por vezes, a objecção de que se está, assim, a usar um termo filosófico que foge à competência das ciências experimentais. Mas, nesse caso, também foge às ciências naturais negar essa finalidade. E não será lícito e necessário, do ponto de vista filosófico e teológico, admitir uma tal finalidade na totalidade do processo da evolução? Foi nesse âmbito que se quis pronunciar o Cardeal Schönborn no seu artigo no New York Times, sem ter evitado no entanto alguns equívocos. No Prefácio que ele próprio escreveu para o livro dedicado à discussão de Castel Gandolfo, cita palavras, datadas de 1986, do então Cardeal Ratzinger: “Embora hoje já não constitua nenhuma dificuldade para a fé aceitar que a hipótese científico-natural da evolução se possa calmamente desenrolar de acordo com os seus próprios métodos, contudo, a pretensão total do modelo explicativo filosófico da “evolução” apresenta, com tanta maior razão, uma radical pergunta à fé e à teologia… A genuína plataforma de diálogo é a do pensamento filosófico: onde a ciência se torna filosofia, é a filosofia que a ela de deve contrapor.” A substituição de uma representação fixista do mundo por uma outra dinâmica e evolutiva foi aceite, no que se refere à sociedade, pelo Concílio Vaticano II: “O destino da comunidade humana torna-se um só, e não já dividido entre histórias independentes. A humanidade passa, assim, de uma concepção predominantemente estática da ordem das coisas para uma outra, preferentemente dinâmica e evolutiva; daqui nasce uma nova e imensa problemática, a qual está a exigir novas análises e novas sínteses.” (GS 5) E é possível à consciência cristã fazer uma leitura iluminada pela fé do mundo evolutivo. De uma certa maneira ela já foi realizada, no passado, por St. Ireneu. No caso de St. Agostinho, ele inspirou-se na filosofia de Plotino que considerava que toda a realidade provinha da suprema hipóstese, o Um, distanciando-se dela pela dispersão, e a ela regressando por uma unificação interiorizante. Assim, o bispo de Hipona considerava que toda a ordem da criação pode ser vista segundo um primeiro momento de dispersão que, pela acção da verdade criadora, dá lugar à beleza das formas, e no caso do homem, se unifica pela sabedoria interiorizante, no amor da verdade e na verdade do amor. Há certamente uma analogia entre esta concepção agostiniana e o modelo de interpretação cristã da evolução empreendida pelo jesuíta Teilhard de Chardin, segundo o qual toda a evolução “que sobe pelo improvável” procede de Cristo Alfa e retorna ao Cristo Omega. No mesmo Prefácio já referido, são citadas também longamente as palavras pronunciadas, em 1968, pelo então professor de Tubinga Joseph Ratzinger numa emissão da Rádio do Sul da Alemanha, em que é abordada a singularidade do homem em todo este processo da evolução, decidindo-se nele a exigência de sentido de todo o processo – não deixado ao absurdo de um total acaso, mas iluminado pela inteligibilidade que vem de Deus e que é dado à pessoa humana, e só à pessoa humana, apreender: “O primeiro Tu que – embora balbuciante – foi dito a Deus pela boca do homem, assinala o instante em que o espírito surgiu no mundo. Atravessou-se aqui o Rubicão da humanização. Com efeito, o que constitui o homem… é a sua capacidade de ser imediatamente para Deus. Eis o que significa a doutrina da criação particular do homem; nela reside o cerne da criação em geral.” Esta permanece uma questão central para o diálogo entre a fé cristã e a cultura e ciência do nosso tempo. É para este diálogo que têm concorrido as Semanas de Estudos Teológicos. A de este ano, organizada pela 29ª vez em Lisboa, contou para além dos intervenientes portugueses, na sua maior parte professores da Universidade Católica, com a participação de um reconhecido especialista francês na área do diálogo entre fé e ciência, o dominicano Jacques Arnould. H. Noronha Galvão

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