Franciscano, com larga experiência em cuidados paliativos, diz que os políticos estão a “brincar com coisas sérias” e não querem saber do sofrimento das pessoas
Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia fala dos desafios da pandemia. Espera que não se desperdice a oportunidade para mudar estilos de vida e de consumo, mas receia que “acabe tudo na mesma”, e seja o dinheiro a falar mais alto.
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Fotos: Ângela Roque
A pandemia que enfrentamos tornou ainda mais atual a encíclica ‘Laudato Si’ sobre ecologia integral. Este manual que agora foi publicado pode ser um bom guia para o processo de desconfinamento que estamos a viver?
Eu diria que é um excelente guia. Aliás, como a própria encíclica, que é o ponto de partida deste manual, que nos quer pôr ‘a caminho’. Logo este conceito inicial, o título, já nos pode dizer muito: ‘A caminho para o cuidado da Casa Comum’.
Isto não é um manual de receitas, mas é um conjunto de propostas muito interessantes, muito em linha com a encíclica ‘Laudato Si’ e, diria mesmo, muito em linha com o ‘Cântico das Criaturas’, de São Francisco de Assis, e será interessante passamos por lá, para percebermos de onde é que tudo isto parte.
Uma das observações que é feita neste novo documento é a falta de uma adequada Teologia da Criação, que é uma forma de olhar para aquilo que nos rodeia. Faz falta que essa forma seja mais inspirada pelo ‘Cântico das Criaturas’, e menos por uma ideia de que vivemos aqui por castigo, porque fomos expulsos do Paraíso?
Julgo que sim. Às vezes encontramos algumas reações a determinadas posições do magistério pontifício atual, de pessoas que não estão bem informadas, não estão por dentro desta Teologia da Criação, e corremos o risco de o Papa estar a falar em cebolas, e as pessoas entenderem batatas. A Teologia da Criação, neste manual ‘A Caminho para o cuidado da Casa Comum’, não está muito explícita, evidentemente, são coisas muito práticas, mas isso também é importante…
Para que todos entendam.
Exatamente. Mas, é muito importante que este manual não seja lido sem a encíclica, e que a encíclica não seja lida sem o ‘Cântico das Criaturas’, porque a própria encíclica não integra tudo o que está no ‘Cântico das Criaturas’, e o que aí está é importante para perceber isto tudo, e concretamente para esta fase de pandemia e pós-pandemia.
Esta não é uma “encíclica verde”, e também não é um documento só para católicos nem só para crentes. Mas, está a chegar às pessoas? Cinco ano depois o que é que a ‘Laudato Si’ já fez mudar?
Eu julgo que não está a chegar às pessoas, tudo somado não está. Mas tem chegado a algumas. Felizmente neste manual, quando se fala das boas práticas, Portugal aparece referido com duas iniciativas (a ‘Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade’, e a rede Cuidar da Casa Comum), e cita também a Conferência Episcopal. Portugal aparece bem na encíclica, mas acho que ainda está muito aquém de um caminho que tem de ser feito…
Ao nível da Igreja, ou ao nível geral?
Eu diria ao nível geral e ao nível da Igreja, muito em particular, e em realidades muito concretas, como por exemplo nas paróquias, na catequese, que o próprio manual refere.
Recomenda que se faça esse trabalho de reflexão…
Porque este manual é uma espécie de dossier.
Um vade mecum, na tradição católica.
Exatamente. Não está lá tudo, mas em termos metodológicos está praticamente tudo ali incluído, para que nada fique de fora. O princípio da inclusão é o grande princípio da encíclica, porque tudo está interligado, tudo deve ser incluído, e esse é o grande princípio inspirador da Teologia da Criação de São Francisco de Assis – E voltamos ao ‘Cântico das Criaturas’.
Eu diria que esta problemática não é mais um assunto na vida da Igreja, da sociedade e do mundo, é o assunto fundamental, porque aborda questões transversais. Por isso é que este manual não fala de tudo – em 200 páginas não se pode falar de tudo, e muitas coisas são complexas -, mas o essencial está aqui dito, abrindo depois perspetivas numa linha de inclusão. Por isso é que este não é mais um assunto entre os diversos assuntos da vida da Igreja e do mundo.
Nem do pontificado.
Não é. Aliás, o Papa Francisco, logo na celebração inaugural do pontificado, disse a que é que vinha, que a questão fundamental é o ‘cuidar’: cuidar da Terra e dos pobres, cuidar da vida frágil. Foi logo dito, e está presenta na encíclica e em tudo o que vem a seguir, até aos dias de hoje.
Esta ideia de que está tudo interligado atingiu-nos muito duramente nos últimos meses, quando percebemos que um vírus que surge numa ponta do mundo pode atingir a população dos cinco continentes. Este é o momento de fazer opções concretas de vida? Porque a ‘Laudato Si’, os apelos do Papa e da Santa Sé, são no sentido de que cada pequeno gesto pode fazer a diferença. Acha que esta mudança vai acontecer, ou pode ser uma oportunidade perdida?
A mudança já está a acontecer, mas vai demorar muito tempo. Há oportunidades que já foram perdidas, outras que vão ser perdidas, inclusivamente na vida da Igreja, se os responsáveis mais diretos acharem que isto é só um tema entre muitos outros, se não perceberem que este é o tema transversal a todos os temas. Se não percebemos isto, se virmos isto como mais um tópico, vamos perdendo constantemente oportunidades, e então o ‘grito da Terra’ e o ‘grito dos pobres’ não é devidamente acolhido.
O Papa fala-nos desse ‘grito da Terra e dos pobres’, mas apesar desta pandemia ser uma ameaça global, e de em teoria estarmos todos ‘no mesmo barco’, temos visto que os efeitos colaterais desta mesma pandemia não são iguais para todos, com as populações mais pobres a serem mais afectadas. O ‘grito dos pobres’ não está a ser devidamente escutado?
Está a ser escutado, mas precisa de ser mais e mais, porque de facto aquela que foi uma espécie de máxima da pandemia naquela fase inicial, o ‘vai ficar tudo bem’, não é verdade. Há muita coisa que já não está bem, há muito sofrimento que não está a ser devidamente acolhido, há muito grito que não está a ser escutado e precisa de ser escutado. Imagine-se aquelas pessoas que perderam um ente querido, e nem sequer tiveram oportunidade de se despedir dele de uma forma conveniente. São lutos que não estão feitos ainda. O luto é um processo de adaptação à perda que tem de ser feito, portanto, há aqui sofrimentos que precisam de ser devidamente levados a sério.
Eu acho que a chave de leitura do pontificado do Papa Francisco está na palavra ‘cuidar’, no verbo ‘cuidar’. E não é algo abstrato, é algo operativo, muito concreto. Quando o cuidado visa a experiência dos sofredores, isso chama-se compaixão. A compaixão cristã é algo de essencial também, por isso o ‘grito da Terra’ e o ‘grito dos pobres’ são como duas faces da mesma moeda. Claro que alguns até dirão ‘se calhar agora temos que acolher mais o grito dos pobres, e o grito da Terra tem de esperar um pouco’. Eu não diria isso, porque se não acolhemos devidamente o ‘grito da Terra’, vão aumentar os pobres. O grande desafio é perceber que estas duas coisas estão interligadas, e nesta fase de pandemia e pós-pandemia temos de levar isto muito a sério, até para mostrar àqueles que dizem – e isto acontece sempre quando a Igreja aborda questões sociais – que ‘a Igreja deve estar noutro âmbito’. Não, vamos todos levar isto muito a sério e pensar nisto.
Há dois textos que são fundamentais para a vida da Igreja, as bem-aventuranças e Mateus 25, com as Obras de Misericórdia, e esta expressão fundamental: ‘aquilo que fizeste a um dos meus irmãos mais pequeninos é a mim que o fizeste’. Nós só percebemos esse irmão mais pequenino numa perspetiva contemplativa, ao jeito das bem-aventuranças, quando nos disponibilizamos para acolher Deus na vida. Não há uma experiência de Deus sem uma experiência de contacto directo com aquele que o próprio Jesus Cristo quis identificar.
Outra frase que nos pode ajudar nesta reflexão é de uma das referências maiores do século XX, Simone Weil, mística de origem judia que se aproximou do cristianismo, e ter-se-á até batizado, e que diz isto: ‘a prova de que alguém encontrou Deus não está no modo como fala de Deus, mas no modo como fala das coisas terrenas’. É uma mística a dizer isto…
A ‘Laudato Si’ – e isto é muito franciscano – diz que ‘a espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar uma profunda alegria sem estar obsecado pelo consumo’. Isto é um desafio explicitamente católico, de uma transformação interior das pessoas e da sociedade?
É profundamente católico, e não entender isto é passar completamente à margem da experiência católica.
Sou franciscano, São Francisco de Assis é a minha primeira referência depois de Cristo, e acho que é dos modelos mais universais, e por isso mais católicos. É a partir das coisas terrenas que nos aproximamos de Deus, porque quando julgamos que estamos em sintonia com Deus e fugimos do mundo, isso não tem nada de católico, com todo o respeito pelas pessoas que pensam de outra maneira, mas temos que pensar muito a sério nestas coisas. É o amor a Deus e o amor ao próximo, e o próximo são todos os seres. O ‘Cântico das Criaturas’ é o cântico de todos os seres. São Francisco de Assis teve a preocupação de incluir tudo e todos, todas as criaturas, simbolicamente nos quatro elementos: o ar, a água, a Terra e o fogo, neste simbolismo da sabedoria antiga. Mais ainda – o ser humano entra no ‘Cântico das Criaturas’ de que forma? Os pacificadores e os compassivos, e finalmente aqueles que têm uma visão da vida e da morte numa perspetiva, num horizonte de generosidade, que é a penúltima estrofe do cântico. De facto, isto é muito católico, isto é muito universal, porque não excluimos.
Continua a haver uma grande atualidade nesta mensagem?
É muitissimo atual. Todas estas coisas de que estamos a falar, não é mais um assunto, este é que é o assunto fundamental. Eu diria: este ano ‘Laudato Si’ mesmo que não sirva para mais nada, se ao menos houver mais uma pessoa que perceba que isto é transversal, que não é mais um assunto, mas é o assunto de todos os assuntos, já valeu a pena o ano ‘Laudato Si’.
Uma coisa muito relevante que esta encíclica também traz ao de cima é a noção de pecado ecológico. É uma novidade, que ajuda as pessoas a perceber o que está em causa na relação com a natureza e na necessidade de mudar estilos de vida. Isto está a ser devidamente trabalhado pela própria Igreja?
Não está. Dentro do que tenho vindo a dizer, o pecado ecológico não é mais um na “lista” dos pecados, todos os pecados são ecológicos. Levando muito a sério este raciocínio, esta perspetiva teológica.
Da ecologia integral…
Dentro da perspetiva da ecologia integral, o pecado ecológico não é mais um para somar à lista. Não: todos os pecados são ecológicos. O conceito teológico de pecado não é o de transgressão de uma lei, de uma norma, no conceito bíblico é uma rutura de relação. Por isso é que a questão ecológica é, sobretudo, relação, tudo está interligado. E quando não vivemos desta maneira, as coisas não correm bem.
Nós colocamos este documento no âmbito da Doutrina Social da Igreja, mas é mais do que isso, tem a ver com um modo de ser diferente. Pensamos nas questões éticas, morais, da prática, mas isto é antes, é um modo de ser diferente. No contexto da pandemia, tenho dito que depois de sair disto, não podemos pensar que vivemos fazendo as mesmas coisas de uma forma diferente. E também não é fazendo coisas diferentes, não, temos de ser pessoas diferentes. É para aí que temos de caminhar.
Há escolhas pessoais e outras que terão de ser tomadas por quem tem o poder de governar. Considera que os responsáveis políticos estão hoje mais atentos e empenhados nas mudanças, ou acabará por ficar tudo na mesma?
Eu tenho receio de que acabe por ficar tudo na mesma, que o dinheiro continue a falar mais alto. Se nos colocarmos ao nível da mera práxis, do jogo político, por aí adiante…
Há aqui uma palavra chave que está subjacente à encíclica e pela qual começa este manual: a ‘conversão’. Que não é, essencialmente, uma conversão ética. Os responsáveis políticos até podem achar: “temos de introduzir aqui algumas mudanças, se não isto não corre bem”… Mas , se a mudança não é mais a fundo, é apenas para a gente se “desenrascar”, as coisas não acontecem.
As mudanças de fundo acontecem à medida que nós percebermos que tudo isto tem a ver essencialmente com uma mudança ontológica, uma mudança do coração, na linguagem da Igreja. Não é mudar práticas, é mudar atitudes, mudar a forma de ser. As práticas derivam daí. Isto não tem só a ver com o perceber que os lixos têm de ser tratados de determinada maneira. Isso é muito prático, mas não é só mudar isso, é perceber que a mudança tem de ser de fundo, de base, tem de ser interior. Aqui a conversão ecológica de que se fala é, sobretudo, uma conversão espiritual. Sem espiritualidade nada disto funciona. Pode não ser religião, o próprio manual fala para crentes e não-crentes, numa perspetiva ecuménica, inter-religiosa, eu até diria também para agnósticos e ateus. Mas, temos de nos entender numa perspetiva de experiência espiritual, que é essencialmente a experiência de relação da pessoa com ela própria, da pessoa com os outros, da pessoa com tudo, com todos, e, se é crente, com Deus. E aqui entendemo-nos, crentes e não crentes: a conversão ecológica é uma conversão para todos, porque tem a ver com a mudança de formas de ser.
Eu sou um homem também da ética, mas acredito pouco na ética, se os comportamentos não brotam de uma forma de ser diferente. Esta conversão não pode ser apenas entendida como uma conversão moral, é uma conversão ontológica, do coração, é mudar a forma de ser, as nossas atitudes. Essa mudança de ser começa até com uma mudança de pensamento.
O manual também contém propostas na área da saúde e da defesa da vida, considerando que “eliminar vidas humanas não é uma prática aceitável”. Com a experiência que tem de vários anos a acompanhar doentes na área da saúde mental e também nos cuidados paliativos, como é que vê a intenção de alguns deputados avançarem com a legalização da eutanásia?
Sou das pessoas – não sou a única – que em Portugal está mais por dentro desta problemática, porque sou dos padres que está há mais tempo no acompanhamento dos cuidados paliativos, no acompanhamento espiritual em cuidados paliativos.
Eu acho que esta questão da eutanásia é estar a brincar com coisas sérias. Com todo o respeito que temos pelos argumentos da liberdade de quem pede para não continuar a viver, essa é uma falsa questão. Nós temos de levar as pessoas a sério, levar o sofrimento das pessoas a sério, e não andar a brincar. Quem está ligado aos cuidados paliativos, quem me está a ouvir e sabe o que são cuidados paliativos – porque a maior parte das pessoas nem sabe do que está a falar, quando fala de paliativos, nem lhe interessa saber…
E mesmo quem precisa não tem essa possibilidade muitas vezes…
Exatamente. Os nossos responsáveis políticos não querem saber. Há alguns que estão um bocadinho mais atentos, mas é uma minoria. A maior parte dos nossos responsáveis políticos não sabe nem quer saber [dos cuidados paliativos]. Mais ainda: faz questão de baralhar as coisas, mistura tudo…
Estar a introduzir o debate da eutanásia é brincar com coisas muito sérias.
Este contexto de pandemia, em que tantos lutaram e lutam para salvar vidas, não devia ter feito mudar os conceitos de vida e morte?
Pelos vistos, alguns continuam a pensar da mesma maneira… Isto é uma questão de espiritualidade, aliás os próprios cuidados paliativos levam isso muito a sério. Qualquer profissional de cuidados paliativos, mesmo não-crente – e eu conheço muitos agnósticos, ateus, anticatólicos, até – tem um profundo respeito por quem está nos cuidados paliativos e leva muito a sério o acompanhamento espiritual das pessoas, leva muito a sério o acompanhamento da angústia existencial. O argumento de que “tenho o direito de pedir a morte porque não quero sofrer” é uma falsa questão. Com todo o respeito. Quem sabe o que são cuidados paliativos, sabe que isto não é assim.
Os que me estão a ouvir podem pensar que isto é conversa de padre, mas ouçam aqueles que não são padres. E não ouçam só os que estão mais ligados à religião, ouçam tantas pessoas. Há evidência científica até à exaustão para perceber que a espiritualidade é uma mais-valia e o sofrimento existencial pode ser acompanhado. Introduzir o debate da eutanásia neste contexto é falta de seriedade.