Covid-19: «Muita gente ficou com marcas e não sei se vão alguma vez desaparecer»

Foi no último dia de janeiro de 2021 que o Papa Francisco anunciou a instituição do Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, que se assinala no quarto domingo de julho, junto à celebração litúrgica de São Joaquim e Santa Ana, avós de Jesus. A Ecclesia e a Renascença conversam com o avô Ângelo Soares, responsável pelo Secretariado Diocesano da Pastoral da Família da Diocese do Porto

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: RR/Henrique Cunha

É avô de quantos netos?

Sou avô de dois netos. Não consta que venha nenhum a caminho (risos). Um rapaz que vai fazer cinco anos em outubro e uma menina que está quase nos 11 meses.

 

E como é essa experiência?

É fantástica. Tenho pena por não ter sido mais cedo e não ser mais frequente. Tenho três filhos, inda falta um deles e a neta demorou bastante tempo, por razões de saúde. Eu, até na brincadeira, digo que ela em vez de Luísa se devia chamar Sebastiana, porque foi muito desejada…

 

Dizia que tem pena de ter sido avô só há tão pouco tempo…

Tenho pena. Não me importava de ter sido avô mais cedo.

 

Esse é um problema que vivemos hoje em dia, as pessoas têm filhos mais tarde?

Eu notei em alguns dos meus amigos têm pena de ainda não serem avós, apesar de andarem em idades próximas da minha. Lembro-me de outros que têm a sorte e a felicidade de ter os netos mais cedo, quando ainda têm mais energias. Mas acho que vale a pena também uma pessoa pôr as energias que ainda vai tendo e viver o momento presente. Andar sempre com saudades do que podia ter sido não vale a pena…

 

Até por causa dessas mudanças que se vão sentindo na sociedade, faz sentido a instituição deste Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, ou é mais um semelhante àqueles que já existem?

Eu acho que faz sentido chamar a atenção para a situação dos idosos, por um lado, que realmente é uma geração que neste momento tem uma dimensão muito maior do que já teve, porque a longevidade aumenta. Numa geração, a esperança de vida subiu quase 20 anos. Várias vezes comento isso: quando eu era miúdo, ou jovem, falava-se de um sexagenário e já era velho. Quando vinha no jornal a notícia de que o septuagenário foi atropelado, a gente dizia: “claro, quem é que o mandou sair à rua tão velho?”. Agora achamos que é uma pessoa perfeitamente válida, com mais idade até. Portanto, acho que é bom chamar-se a atenção para os idosos, porque é uma geração com uma dimensão grande e com problemas específicos. E os avós também.

Por experiência própria, acho que somos um valor que nem sempre é compreendido e nem sempre é aproveitado, e não é só o substituto da creche ou do ATL. Há experiências específicas que eu também gostei de viver com os meus avós e que é importante que os netos tenham oportunidade de viver com avós.

 

Na sociedade em que vivemos, os avós têm cada vez um papel mais relevante no acompanhamento das crianças?

É verdade que muitas vezes os pais trabalham ambos e é preciso os avós para ir buscar a escola ou levar à escola e depois levar àquelas múltiplas atividades com que muitas vezes bombardeamos os netos, coitadinhos, não têm tempo para brincar, nalguns casos… Felizmente, não é o meu caso que tenho muito tempo para os meus netos com a minha casa. Mas os avós têm um papel importante nesse acompanhamento e é bom também que assim seja. Por um lado, porque se sentem úteis, porque continuam a pôr a render as suas capacidades, continuam a ser desafiados, às vezes a atualizar-se. Eu acho imensa graça quando avós dizem que foi o meu neto que me pôs a trabalhar com o computador, ir às apps ao telemóvel, a usar o WhatsApp, ou outra coisa qualquer. Acho ótimo que essa interação também exista e que os netos gostem de estar com os avós, de ouvir histórias de outros tempos, de ver outras maneiras de ver a vida.

 

E  não serem só o substituto das creches?   

E não serem só substitutos, exatamente. Eu acho que esse papel dos avós é muito bonito de ter essa participação específica, de colocar em jogo a sua experiência de vida e a riqueza de tudo o que aprenderam. E é benéfico também para os avós, porque os netos os desafiam a não estiolar.

 

Para além desta importância de que estava a falar, dos avós, no desenvolvimento emocional das crianças, também é notória a importância ao nível do desenvolvimento material. Muitas vezes os avós são já quase o último ponto de refúgio, porto seguro, quando há uma crise económica, por exemplo, para muitas famílias…

É verdade. Não é uma situação que nos apareça muito na Pastoral Familiar, mas reconheço que sim, que a situação económica global é muitas vezes mais desafiante. Também a estabilidade das famílias infelizmente não é a que já foi.

É aquela história que a gente lê às vezes, que nós “ainda éramos do tempo em que as coisas se remendavam, e agora são de usar e deitar fora”. Isso também se reflete na estabilidade das famílias, no número de divórcios. E os avós permanecem realmente, muitas vezes, como porto seguro. Às vezes demais na minha opinião, e o defeito está do nosso lado, por não sermos capazes de educar os filhos para a autonomia, ou seja: sermos ninho, mas ao mesmo sermos escola de voo, como dizia alguém há pouco tempo. Temos de dar aos filhos as asas para voar sozinhos e deixá-los também, às vezes, ter dificuldades.

 

Há um outro aspeto relevante que tem a ver com o momento de grande dificuldade e de grande carência, em que, por vezes os avós são o último refúgio para ajudar em situações de dificuldade. Essas situações acontecem? 

Acontecem, claro que acontecem.  Eu estava a referir-me mais à situação de superproteção que muitas vezes temos com os nossos filhos e que, depois, eles veiculam também para os deles, o que na minha opinião não é saudável. É aquela história que muitas vezes se conta da mãezinha que diz ao filho, “se o casamento não correr bem, tens sempre aqui o teu quartinho”. Eu acho que isso é péssimo. Nós tivemos o cuidado de desfazer o quarto dos filhos quando eles saíram de casa e transformamos esses compartimentos. Só um deles é que ficou para receber os netos.

 

Recorrendo à sua experiência pessoal e às várias experiências que lhe foram chegando, como é que foi vivido esse período sem a presença habitual dos netos fisicamente, na pandemia?

Houve muita gente que ficou com marcas e não sei se vão alguma vez desaparecer. Marcas de isolamento, de solidão, gente que envelheceu visivelmente, muito mais rapidamente do que seria de esperar, porque realmente lhes faltou a companhia, u a alegria, os desafios que os netos e os filhos também constituem.

Houve aspetos positivos, como criar aquelas ligações tecnológicas que as pessoas não estavam habituadas da conversa diária com os netos, pelo WhatsApp e coisas assim. Mas não é a mesma coisa, obviamente. As manifestações de afeto físicas até, a presença, o olhar, os sorrisos, isso fez muita falta a muita gente. Fez e faz muita falta a muita gente, porque acho que também se criou algum hábito de isolamento pós-pandemia: a obrigação de ficar por casa durante a pandemia transformou-se um bocado no comodismo de ficar por casa.

 

E isso não se pode acentuar agora, com o recurso a essas novas tecnologias que todos aprendemos? 

Acredito que sim, que é preciso alguma sabedoria para uma pessoa não se deixar dominar por esse pseudo conforto, mas que acaba por ser desconfortável no sentido de que afasta as pessoas e esfria as relações.

 

Vamos então ao exemplo do avô.  Como é que o avô combate essas situações? Como é que se recupera o tempo perdido? 

Eu falo com os filhos com frequência e com os netos, a mais pequenina não alimenta conversa, como é evidente (tem 11 meses).  Mas todas as semanas, normalmente vão a minha casa uma, duas vezes. Aliás, faz parte das minhas tarefas ir buscar o neto duas vezes na semana. As outras três é a avó do outro lado. Normalmente a minha agenda desses dias está bloqueada, não há nada para ninguém e a minha mulher também faz esse esforço. Aquelas que são para os netos são para os netos, seja para brincar, seja para ler um livro, seja para construir coisas em plasticina, seja para ir para o quintal, porque rapazinho acha muito engraçado jardinar. É tempo para os netos. Acho que é importante que assim seja.

Nós apreciamos isso, apreciamos vê-los crescer, apreciamos, transmite-lhes algumas experiências, apreciamos ouvir as histórias para já dele e esperamos que a menina também assim venha a ser. Esse procurar ir ao encontro e estar com, para mim, é fundamental.

 

E é a forma de recuperar o tempo que a pandemia fez perder?

É sim. Embora eu tinha tido a sorte durante a pandemia de apesar de tudo manter uma relação bastante próxima, exceto naquele período em que fomos mesmo forçados a estar em casa e aí realmente recorríamos às tecnologias. Desde que houve um bocadinho de abertura, com todos os cuidados, houve contacto, houve relação. Eu tive a sorte de não ter havido propriamente afastamento, mas muitos não tiveram essa sorte. Sobretudo as pessoas, por exemplo, que estão em estruturas residências de idosos ou que estão mais longe. Eu tive a sorte de não estar muito longe dos meus filhos e dos meus netos, mas outros não terão essa sorte.

 

Sobre a Jornada de hoje, vale a pena recordar um apelo do Papa: que os mais velhos não sejam apenas destinatários, mas sujeitos da ação pastoral, na Igreja. Isso vale também para a sociedade, no seu todo?

Acho que sim. É verdade que, por exemplo, a nível da pastoral familiar essa não tem sido uma preocupação tão insistente como poderia ser, como deveria ser. Estamos agora a tentar arrepiar um bocadinho de caminho e é uma preocupação. O secretariado, aqui no Porto, tem veiculado junto das equipas locais que haja esta atenção aos idosos, aos sós e aos enlutados também. Não só aquela preocupação imediata, no momento de um falecimento, mas do acompanhamento. O acompanhamento da solidão.

A nível social, a valorização dos idosos e o não nos deixarmos ficar pela mantinha sobre os joelhos, sentadinhos no sofá, é fundamental, mas isso também parte da atitude do próprio idoso.

Eu fiz muitos planos para quando me reformasse e felizmente – a minha mulher até brinca -, estou mais ocupado do que estava enquanto tinha vida profissional. Não me aborrece nada. Tem mesmo de ser assim: pegar numa experiência de vida, mais ou menos rica, mais ou menos diversificada, e continuar a pô-la ao serviço da sociedade de outra maneira.

Optei por só ter voluntariado, tenho a minha reforma e o meu tempo é para o voluntariado. Além do Secretariado da Pastoral da Família, tenho o movimento Refood, de recolha e distribuição de alimentos; pertenço a uma associação que responde ao problema dos idosos, uma iniciativa da Fundação Gulbenkian “Ser Mais Valia”, em que os sócios só podem ter mais de 55 anos. E é realmente a ideia de capitalizar a experiência das pessoas e pô-la ao serviço, contribuir para uma ou para uma velhice ativa. Colaborei na obra do Frei Gil, também na montagem de sistema de qualidade, portanto, pegar nas minhas experiências de vida e continuar a pô-las ao serviço.

 

Francisco refere na sua intenção de oração para julho que, para a velhice há muitos planos de assistência, mas poucos projetos de vida. Sente isso?

Sinto. Não sofro com isso pessoalmente, mas sinto que se olha muito para idosos como os coitadinhos, que o que é preciso amparar, que é preciso cuidar, se calhar é preciso ter lá no seu ninhozinho dourado, na sua gaiolinha, mas não se aproveita suficientemente, quanto a mim, os recursos que os idosos são, recursos de experiência. Podemos fazer muitas contribuições ativas para a sociedade, nomeadamente nestas áreas do voluntariado, de acompanhamento até de outros idosos, de presença ativa na sociedade. Acho que realmente não se está a olhar para isso como se poderia olhar.

 

A mensagem para este dia sublinha que, para muitos, a sociedade deve manter os idosos “o mais longe possível, talvez juntos uns com os outros, em estruturas que cuidem deles”. Por vezes não há outra solução e nós não estamos cá para julgar, mas este afastamento tem prejudicado o diálogo entre gerações? Há um património de vida que estamos a desperdiçar?

Quando se faz esse afastamento, claro que há um património que se desperdiça. Há, como estava a dizer, situações em que não há outro remédio. Eu vivi essa situação com a minha mãe: durante muito tempo esteve em casa, sobretudo das minhas irmãs, quando já estava sozinha, mas houve uma altura em que teve mesmo que ser. Estava numa residência muito perto e pelo um de nós, todos os dias, ia lá e ao fim de semana vinha sempre almoçar a casa de um dos filhos, almoçar e muitas vezes jantar. Exatamente para não se quebrar essa ligação – e com a minha sogra foi igual, aliás, foram as duas no mesmo dia para a mesma residência e faziam companhia uma à outra.

Acho que é fundamental, quando há necessidade de recorrer a uma instituição dessas, por razões de saúde, de falta de autonomia, etc., que os filhos tenham a responsabilidade de manter o contacto, de manter as visitas, de também de os levar a sair quando possível e sempre que possível.

 

Às vezes, a dificuldade está em encontrar locais perto…

É verdade, isso também é verdade, mas é um esforço que se tem de fazer e é difícil, mesmo a questão económica…

 

O Papa tem deixado várias mensagens sobre tirar as rugas e parecer mais novo do que somos, a dificuldade em assumir que isso faz parte da vida e que a velhice também é uma bênção…

Eu noto que na sociedade há medo de envelhecer e medo morrer, as duas coisas. Portanto, as pessoas muitas vezes pretendem esconder, porque não se querem confrontar com uma realidade que é óbvia. Devia ser de extrema naturalidade.

Eu muitas vezes tenho de me lembrar que tenho a idade que tenho, porque não me sinto propriamente velho. Mas lembro-me muitas vezes de um médico, que me assistiu durante um tempo, que dizia: “convença-se que nós não vamos para melhor e, portanto, temos de ir aprendendo a gerir as nossas incapacidades e a usar as capacidades que ainda temos”. É importante aceitarmos esta naturalidade de que vamos evoluindo, não é melhorando tudo, mas temos capacidades que melhoram, outas que se vão perdendo e temos de aceitar. Como temos de aceitar como inevitável que um dia vamos acabar. Eu tenho pena que atualmente se esconda muito a morte, porque, mesmo para as crianças e jovens, acho que é importante confrontar-se com a situação da perda e perceberem que a vida é finita. A pessoa, mesmo nessa altura, precisa de companhia, precisa de carinho e precisa de acompanhamento.

 

Por último, como é que a sociedade está a tratar os nossos idosos? O Papa tem insistido na necessidade de combatermos a teoria do descarte e de não deixarmos ninguém para trás, mas a pandemia não terá acentuado o desleixo para com os mais frágeis?

Eu acho que sim, se calhar nas sociedades mais evoluídas ou mais ricas, noto desleixo exatamente para com os idosos. Noutras sociedades, acho que se mantém o carinho pelos idosos. Eu tenho bastantes contactos com Moçambique, sobretudo, com rapazes da Casa do Gaiato, e acho muito interessante a forma como eles se referem aos avós, como se preocupam os avós. Converso muito com eles, várias vezes por semana, e dizem: “tu és madoda”, na língua deles. Quer dizer, és um “velho sábio”. Ele diz isto como um elogio e por isso me pede muitos conselhos. Às vezes temos de aprender com outras sociedades, que nós às vezes consideramos menos evoluídas. É uma coisa que aprecio nos africanos, este carinho com os idosos e a preocupação com a família em todas as suas gerações. Aqui podíamos arrepiar caminho e olhar para os idosos de outra maneira, realmente, como uma bênção e como uma fonte de experiência, com uma forma já diferente de viver a vida, mas que nos pode ajudar a preparar a nossa chegada lá, que é já depois de amanhã.

 

 

 

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