Covid-19: «Experiência de crise, vivida nas suas mais diversas dimensões, é claramente um lugar de oportunidade para a mensagem cristã se recolocar» – Alfredo Teixeira

Foi há um ano que a Conferência Episcopal Portuguesa determinou, pela primeira vez, a suspensão da celebração comunitária das Eucaristias e em janeiro último o agravamento da situação pandémica levou os bispos a renovarem a medida.

Num ano mudou muita coisa na forma como os católicos vivem a sua fé, mas que mudanças vieram para ficar? A Igreja soube adaptar-se? O recurso aos meios digitais serviu para aproximar os fiéis, ou abriu portas a que se afastem mais? Questões que dão o mote para a conversa com Alfredo Teixeira, antropólogo e investigador da Universidade Católica Portuguesa.

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: Agência ECCLESIA

Ao fim de um ano já é possível avaliar com precisão que marcas ficam na Igreja? Ou ainda é cedo para dizer que nada voltará a ser como antes?

Podemos dizer alguma coisa, de facto, mas que será sempre alguma coisa de provisório. O contexto que vivemos é um contexto de crise, portanto há um conjunto de comportamentos, de vivências, que se explicam pelo próprio fenómeno de crise. Diria que é difícil, nalguns casos, dizer o que é que permanecerá destas experiências e vivências ou aquilo que, de alguma forma, é apenas um intervalo, à espera que, de alguma maneira, os nossos contextos se possam voltar a normalizar. No entanto, há experiências que são novas e outras que, não sendo propriamente novas, foram aceleradas, e há um rasto que vai ficar. Talvez o campo religioso seja até um dos lugares em que, de alguma maneira, os efeitos desta pandemia poderão durar no tempo.

Como sabemos, a experiência religiosa, a atividade religiosa tem uma dimensão fortemente comunitária, depende dessa estrutura, e este vírus, como sabemos, afeta a nossa experiência social, sobretudo as dimensões comunitárias, já que a comunidade pode reconstituir-se noutros contextos – no digital, nas relações em rede -, mas há dimensões de sociabilidade, em todo o caso, que parecem ser difíceis de reproduzir noutros contextos.

Aquilo que acontece, normalmente, é que essas relações que se estabelecem a partir de outros ambientes, como o ambiente digital, estão até dependentes das relações que se criam noutros contextos. Nesse sentido, é de esperar que haja alterações e que estas tenham de ser pensadas.

 

Há novas formas de estar e de celebrar que acabarão por ficar para o futuro?

Há coisas que poderá ficar, as comunidades aprenderam que é possível estabelecer relações, tecer relações de outras formas. Que é possível estar mais próximo das pessoas, a partir de outros meios.

Há também alguma coisa que aconteceu que eu diria ser uma espécie de proliferação da comunicação sem comunidade, algo que terá de ser ultrapassado, de alguma forma. Devo dizer que, em muitos casos, a pura reprodução do que existia em termos presenciais nos meios digitais não me pareceu muito eficaz. A vivência de dimensões como a dimensão ritual dificilmente, a meu ver, pode ser replicada a partir de um contexto de comunicação digital. Se ficássemos nesse registo, apenas, poderia facilmente acontecer aquilo que a socióloga britânica Grace Davie chamou – a propósito de uma certa tendência da religiosidade na Europa – a persistência de uma religião vicária. Ou seja, a ideia de que muitos começam a viver uma religião de um certo distanciamento, em que veem as práticas rituais de um pequeno grupo, num determinado contexto, como práticas que os representam a eles próprios. Sentem-se representados nessas práticas, mas à distância.

 

Esta comunicação sem comunidade, a suspensão das celebrações comunitárias e a transposição de atividades presenciais para o espaço doméstico podem reforçar uma interpretação mais individual da vida religiosa?

Sim, podem, em determinados perfis de identificação. Ou seja, temos de compreender que a Igreja Católica é, sob o ponto de vista social, em Portugal, o que eu chamaria uma eclesiósfera, um conjunto de círculos de aproximação. Alguns católicos estão relativamente distanciados, numa situação mais periférica em relação às vivências comunitárias, e esta situação pode agravar este distanciamento. Todos nós temos consciência de que há um conjunto de católicos – mesmo quando regressamos de forma condicionada às celebrações, em particular à grande celebração dominical – que não regressou, ainda, a essas práticas.

Há um risco de se acelerar esse distanciamento, nalguns casos, ou de se aprofundar, mas é um facto também que algumas pessoas, alguns grupos com uma forte vinculação comunitária, reinventaram as suas relações a partir destes contextos novos. Digamos que o ecossistema de pertença eclesial, neste contexto, para alguns católicos, foi enriquecido, porque descobriram outras formas, que não vão substituir as anteriores, mas que vão continuar as suas relações, partilhar a fé…

Não me parece que possamos ter um juízo único sobre as consequências do que vivemos, mas nós teremos certamente, nalguns setores do universo católico, um certo aprofundamento dessa gestão hiperindividualizada da sua relação com a memória cristã.

 

Nas novas orientações a Conferência Episcopal mantém a suspensão das procissões, incluindo o tradicional “compasso” da Páscoa, por exemplo. Sabemos que estes momentos têm, nalgumas localidades, uma tradição muito vincada. Que consequências poderá ter esta suspensão, pelo segundo ano consecutivo?

Eu penso que essas práticas, que são comunitárias em sentido estrito – ou seja, envolvem uma população, um território, as famílias, são festas num sentido antropológico do termo, dimensões totais que envolvem as diferentes da experiência das pessoas –, são contextos de vivência fortemente afetados. Mas diria que essas práticas são aquelas que, de alguma maneira, se vão reconstituir mais facilmente, porque elas apelam a uma memória enraizada. O que se vive no contexto é, claramente, a experiência de um intervalo provocado por uma crise. Não creio que sejam essas as práticas que vão ser mais afetadas por este tipo de constrangimentos, porque elas se enraízam numa memória e essa memória é resistente.

Parece-me mais complexo analisar aquilo que possam ser alterações nos comportamentos mais individualizados, em que de alguma maneira não há essa estrutura comunitária, de memórias, que pode dar uma maior resistência a essas vivências de natureza religiosa e social.

 

Pelo que vai observando, é possível dizer que a dimensão espiritual foi mais valorizada durante este tempo de pandemia e confinamento? Mesmo quem não tem uma fé assumida, procurou respostas diferentes para aquilo que está a acontecer?

Teríamos de decidir o que é que entendemos por espiritual. Em todo o caso diria que, se vivemos um tempo em que se deposita uma enorme esperança na possibilidade de uma solução técnica e sanitária para a crise global que nos assola, também é verdade que essa expectativa não preenche todas as procuras de sentido.

 

É nesse sentido a pergunta, sobre a busca de sentido…

De uma maneira mais clara no primeiro confinamento do que neste, foi muito interessante observar o que eu designaria como uma certa procura de “empalavrar” esta situação que vivemos. Ou seja, é muito interessante observar como nesse período atores, criadores, também líderes espirituais, de alguma maneira habitaram esse tempo construindo discursos, linguagens, palavras que habitaram esse tempo de isolamento de uma forma que, a meu ver, dizia respeito claramente a esta experiência de procura de sentido. Aliás, recordo-me mesmo até que, sob o ponto de vista da comunicação social, na altura era muito frequente que programas abordassem coisas como boas práticas, coisas que estavam a acontecer no mundo e que de alguma maneira permitiam vê-lo, não apenas a partir dessa lógica de contar quantos infetados, quantos internados, quantos curados, quantos mortos, quantos aviões ficaram em terra, mas para além deste exercício de contagem encontrar, de facto, uma palavra que possa iluminar com sentido aquilo que vivemos. Penso que a experiência da pandemia foi criativa, sob o ponto de vista espiritual.

 

O teólogo checo Tomás Halík, a propósito do seu mais recente livro ‘O tempo das igrejas vazias’, sustenta que a Igreja católica deve ser uma plataforma de encontro num tempo em que as certezas foram abaladas. É uma reconfiguração possível?

Sim, é verdade que a experiência religiosa, não apenas a partir do contexto cristão, mas a experiência religiosa em geral tem uma particular relação com a experiência de vulnerabilidade. A experiência religiosa, no fundo, traz sempre para o centro das vivências este sentido de que a nossa vida, a vida humana, pode não ter o centro em si própria, que de alguma maneira para ganhar sentido tem de se ultrapassar a si própria. Portanto, creio que a experiência de crise, vivida nas suas mais diversas dimensões, é claramente um lugar de oportunidade para a mensagem cristã se recolocar, de forma que possa acolher as narrativas e as experiências que as pessoas viveram. Porque uma das coisas que esta pandemia nos mostrou é que a nossa sociedade tem um problema com a memória.

As nossas dificuldades com a pandemia passaram, em muitos casos, pelo facto de não termos uma memória comunitária de vivência destas experiências. As sociedades antigas, como sabemos, viveram constantemente epidemias graves, obviamente não com esta escala, porque não viviam nesta escala global como nós vivemos, mas em todo o caso com forte impacto na estrutura das cidades, e desenvolveram crenças, narrativas, mitos que alguns casos habitaram as suas memórias e tiveram uma dimensão preventiva. Ou seja, a recitação dessa memória foi um fator importante neste contexto.

Eu acho que uma das coisas importantes para o dia seguinte é pensar como podemos tornar esta experiência uma memória viva, uma memória que possa ser contada, e que se torne também uma memória de redenção. E nesse sentido acho que, de facto, as comunidades cristãs não deviam, nesse dia seguinte, tentar esquecer o que foi vivido, mas pelo contrário, tornar-se um lugar de elaboração de sentido daquilo que foi vivido, construindo de alguma maneira uma memória religiosa e cultural desta experiência crítica.

 

As outras confissões religiosas em geral também sofreram o impacto desta pandemia. As condicionantes impostas pelos vários confinamentos, pelas novas formas de estar, poderão alterar de forma significativa os resultados de um futuro inquérito sobre as identidades religiosas em Portugal?

Poderá ser um fator, entre outros. De uma forma geral, em termos das suas práticas religiosas, as minorias religiosas sofreram talvez ainda mais do que a maioria católica, porque reparem: em boa parte das situações as pessoas pertencentes a outras comunidades normalmente para se encontrarem, para se reunirem, estão ainda mais afetadas na sua mobilidade, não acontece como no espaço católico, em que todos os católicos têm, de alguma maneira, uma comunidade, uma igreja perto de si. Isso não acontece com as outras comunidades religiosas.

 

Por exemplo, esta medida persistente de não se poder deslocar para fora do seu concelho, em alguns casos, por exemplo na área metropolitana de Lisboa afeta alguns aspetos importantes do exercício da liberdade religiosa. Aliás, devo dizer que espantosamente todas estas medidas, desde o primeiro confinamento, nunca tiveram por parte do governo português, qualquer estratégia de consulta da Comissão da Liberdade Religiosa, que é uma Instância do Ministério da Justiça, que precisamente tem a função de acompanhar as decisões do governo relativamente a assuntos que dizem respeito à liberdade religiosa.

 

E seria importante que isso tivesse acontecido, em sua opinião?

Sim, seria importante, porque houve vários momentos em que esse direito fundamental de liberdade religiosa não foi devidamente acautelado. Ou seja, todos compreendemos as circunstâncias de crise que exigiram um acompanhamento de medidas excecionais, e as lideranças religiosas, de uma forma geral, todas acompanharam essa necessidade, mas nem em todos os momentos houve o devido discernimento.

Recordo, por exemplo, que no primeiro confinamento, ao contrário do que está acontecer agora, as práticas cultuais só abriram na última fase, sem evidência nenhuma de que elas pudessem, de facto, acrescentar um risco assinalável em relação às mobilidades que já estavam a ocorrer nas práticas sociais. Portanto, de facto, em alguns momentos da gestão desta crise o problema da liberdade religiosa não foi totalmente salvaguardado.

 

 

No dia em que tomou posse o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fez questão de se encontrar, rezar e dialogar com representantes das principais confissões religiosas em Portugal. É um sinal importante para o país?

Penso que sim, aliás, quando faço esta observação de que nem sempre essa questão essencial da liberdade religiosa mereceu todo o cuidado, não parece sequer que seja por uma qualquer intenção de hostilização, mas essencialmente por uma falta de compreensão do impacto que a limitação do exercício da liberdade religiosa, em particular do exercício da reunião, tem de facto na vida das pessoas. Mas, nesse sentido, e de uma forma geral, esses gestos têm um valor público muito grande. Talvez não tenham ainda um impacto muito grande dentro das próprias comunidades, que porventura permanecerão ainda bastante distantes entre si, mas sob o ponto de vista público, de construção de uma forma de vermos a sociedade, e de a habitarmos em conjunto como um espaço partilhado a partir das diferenças – inclusivé as diferenças que sabemos, historicamente, em muitos casos construíram muros quase inultrapassáveis – é, de facto, um gesto simbólico muito eficaz.

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Agência ECCLESIA

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