Há realidades sociais e ambientais gritantes que interpelam a Vida Religiosa na sua natureza e missão. Interpelação forte e urgente que obriga a uma mudança de paradigma, a um renovado planeamento do escasso pessoal à disposição e a uma re-utilização das estruturas, algumas anacrónicas nos seus fins. Está em jogo a nossa “fidelidade criativa” ao carisma original da vocação do “consagrado” – religioso e religiosa, monge e secular, apóstolo e missionário – no mundo e na Igreja de Jesus Cristo: povo de Deus enviado em todas as culturas e fronteiras do viver humano. De facto, a fecundidade da Vida religiosa está hoje na sua fidelidade “iluminada” pela Palavra de Deus e na atitude “incarnada” na luta pela dignidade humana. Sobretudo, naqueles lugares de “patologia, sofrimento e morte” do mundo pós-moderno e globalizado em que vivemos o nosso “envio” inspirado pelas nossas “regras de vida”.
Nesta primeira década do Novo Milénio assiste-se em Portugal, na Europa e no Mundo em geral, a uma intensificação da mobilidade humana através dos movimentos migratórios internacionais. Mudam-se paradigmas e reconceptualiza-se a migração, surgem novas rotas de movimentos de massa, fecham-se ciclos migratórios coloniais e abrem-se ciclos económicos, aumenta a xenofobia e racismo violento, endurecem-se legislações para restrição das admissões, produzem-se histórias de vulnerabilidade pessoal e familiar que atinge todas os níveis sociais e migra-se e foge-se não mais apenas por motivos laborais, políticos, familiares, mas também, e em muitos casos de forma forçada, por razões ambientais e esclavagistas.
Neste mundo complexo que exclui sempre mais os não competitivos, a criminalidade organizada instalou-se de forma violenta e “aliciante” nas migrações, sobretudo, aproveitando do clima social assimétrico em algumas nações, da diminuição gradual dos canais legais para emigrar, dos crescentes problemas sociais (desemprego, velhas e novas pobreza, falta de perspectivas económicas) e dificuldade em realizar o próprio projecto de vida, que semeiam vulnerabilidades e irregularidades que alimentam as novas formas de escravatura e “comércio de pessoas”, sobretudo, mulheres para a prostituição e turismo sexual, trabalhadores para construção civil e trabalho agrícola, e menores para serviço doméstico, para adopção internacional e pedofilia, entre outros.
A Igreja em Portugal tem estado, com uma atenção particular, desperta para as migrações e os tráficos dentro e para fora do país. Há quem diga que os agentes religiosos são os que mais sabem sobre o assunto, e mais fazem! Se assim é orgulho-me de pertencer a ela e continuarei a dar à vida nela por amor do Evangelho!
A Vida Religiosa têm-se empenhado de forma crescente e “concertada” para que os direitos ligados à vida, ao trabalho, à saúde, à casa, a escola, a legalização, a liberdade religiosa e de associação, fossem “sinal” e “boa prática” de acolhimento real, solidariedade efectiva, itinerário de fé e integração social.
Na verdade, esta Igreja que somos na história – pessoas, estruturas e redes – encerra em si magníficas potencialidades naturais – invejadas por muitas organizações sociais e não governamentais – que ainda não são rentabilizadas e usadas como a “profecia do Evangelho” está a exigir para maior incidência na vida. A paróquia é lugar teológico e social onde podem ser abraçadas todas as vulnerabilidades para, através da sensibilização, informação, reflexão, lançar no território acções de prevenção de tantos dramas e tragédias. O movimento associativo, sindical, social e político sempre solicita às estruturas da Igreja presença e participação em eventos de denúncia e construção de respostas legais, sociais e jurídicas para a integração de todos sem preconceitos, nem omissões fatais. O sacerdote – pároco, professor, educador, director de centro social ou cultural, jornalista, investigador, entre outros – contacta diariamente com auditórios imensos aos quais, de forma responsável e continuada, dirige a palavra encorajadora, lança desafios de conversão de vida, aprofunda a leitura da realidade, se disponibiliza para colóquios pessoais de orientação espiritual e familiar, recorda os princípios éticos e morais, e mobiliza para as grandes causas da comunidade concreta e da inteira humanidade. Os religiosos e religiosas, com os seus carismas, competência adquiridas para os âmbitos da educação, saúde, cultura, comunicação, trabalho, justiça, arte, migração, entre outros, suas estruturas e, sobretudo, com o testemunho de vida são sinal de libertação junto de várias categorias de pessoas e famílias marcadas pelos efeitos negativos da desigualdade de género, da discriminação social e habitacional, das barreiras culturais aos bens essenciais, da solidão e violência, da incapacidade de orientar a vida de forma autónoma, só para citar algumas violação de direitos.
Intervindo nas causas que empobrecem a vida, denunciando as situações que oprimem as pessoas, construindo respostas em parceria que libertem da indignidade, acompanhando fielmente as pessoas para assumir as próprias responsabilidades e único destino, criando novas ou reorientando estruturas para abrigar e reabilitar as vitimas das pobrezas novas e dos novos tráficos de pessoas, os agentes religiosos são mediação privilegiada e estratégica que ajuda a recuperar a dimensão de libertação que, desde, a eternidade, marca a fé no Deus de Israel e de Jesus Cristo. O cristianismo mantêm-se uma religião de libertação porque incarnação de Deus na história.
E não me quero referir apenas ao vergonhoso flagelo dos tráficos praticados em todas as sociedades que hoje, de forma invisível, mas silenciosamente violenta e consentida por certos poderes económicos, se dedicam ao recrutamento, à compra, à troca e à venda de pessoas – homens, mulheres, crianças, órgãos humanos – como se de mercadorias “low cost” se tratasse…
Rui Pedro, religioso