Contornos históricos da visita Ad limina

Tradição remonta aos primeiros séculos do Cristianismo e é obrigatória para os quase 5 mil Bospos de todo o mundo A expressão Ad limina foi utilizada frequentemente pelos cronistas medievais ao referirem o exercício piedoso dos fiéis de empreenderem viagem até Roma, em espírito de peregrinação, para visitar os túmulos dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo. A tradição da presença e morte martirial dos dois Apóstolos na capital do Império romano foram factores que muito contribuíram para o apreço sempre crescente que de todo o mundo cristão se votou desde cedo à comunidade de Roma. Essa ligação piedosa rapidamente se mostrou indissociável dos bispos que presidiam à comunidade romana, tidos como sucessores de S. Pedro e do testemunho singular do apóstolo S. Paulo, ambos ali sepultados e venerados. Essa consciência viva teve reflexos positivos no cristianismo esparso por todo o Império. Santo Inácio de Antioquia, por escritos que legou a algumas comunidades cristãs, enfatiza a caridade da comunidade romana e reconhece-a como legítima herdeira do singular alicerce que foram os Apóstolos S. Pedro e S. Paulo. Um pouco mais tarde, S. Cipriano, exprimindo o sentir do cristianismo do norte de África, reconhece preeminência à sede romana, equiparando-a à cátedra de Pedro. Decorrente dessas tradições, o bispo de Roma (papa), paulatinamente, vê-se na contingência de alargar a sua área de intervenção: da comunidade local estende-a rapidamente a toda a zona itálica e, de forma mais abrangente, incluindo mesmo as áreas patriarcais (do Oriente), é aceite como referencial importante na ordem da caridade e da comunhão (1º milénio). Esse múnus alargado deveu-se, sem dúvida, à acção exemplar dalguns bispos de Roma e a circunstâncias históricas recorrentes que cedo puseram à prova a capacidade interventiva dum papado emergente; a firmeza doutrinal e a defesa intransigente das populações ameaçadas pela nomadização de povos bárbaros singularizaram sucessivamente uma plêiade de bispos que ocuparam a Sede de Roma. Essas dinâmicas muito contribuíram para que à Sede romana se lhe agregassem outros títulos: Sede Apostólica (S. Dâmaso), Primeira Sede, etc., equiparando o seu bispo, o papa, a S. Pedro (S. Leão Magno). A forma feliz como terminou o concílio de Calcedónia (451) muito contribuiu para a aceitação futura da autoridade universal do bispo de Roma. A par dessa ascendência, praticava-se com certa intensidade o culto por todos os que tinham testemunhado a fé até ao martírio. De muitos se fazia memória, mas, em Roma, muito em particular, por aqueles que tinham sido os iniciadores do cristianismo local: S. Pedro e S. Paulo. O pendor sacralizante que se afirmou após a liberdade constantiniana teve particular incidência no ordenamento do tempo, na delimitação dos espaços e em tudo aquilo que tinha a ver com a vida desses lugares – pessoas e objectos. Como reflexo dessa nova mentalidade, adquirem estatuto de lugares sagrados algumas localidades da Palestina, mormente a cidade de Jerusalém. Roma, em virtude da presença dos túmulos dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, adquire de igual modo o estatuto natural de cidade santa. Essas referências sacrais tiveram impacto nas comunidades cristãs; foram muitos os que desde então se deram ao exercício piedoso da peregrinação. Os que se deslocavam a Roma quiseram, sobretudo, visitar (visitare) os” sepulcros” (limina), os “santuários” dos dois Apóstolos (apostolorum). A partir do século VIII, a par daquela prática dos fiéis cristãos, os laços pastorais e jurídicos tendem a acentuar-se cada vez mais entre os bispos e o papa. São muitos os bispos que de Itália se deslocam a Roma para participar nos sínodos romanos; de igual modo, mesmo do cristianismo mais distante, se dirigem à Urbe os arcebispos para receberem o Pálio; a uns e a outros, em virtude da sua deslocação a Roma, se aplicou a expressão – visita Ad limina. Segundo milénio No fim do primeiro milénio, foi prática habitual dum grupo razoável de bispos se dirigirem a Roma para visitar os túmulos dos apóstolos e conferenciar com o papa sobre assuntos de natureza pastoral e administrativa. Um pouco mais tarde, os papas da reforma gregoriana (séc. XI-XII) estimularam essas visitas, insistindo de quando em vez num juramento de fidelidade ao pontífice. Insistia-se na periodicidade, sem especificar o espaçamento dessa deslocação. Após o concílio de Trento (1545-1563), em ordem à implementação das determinações conciliares, sobressai um papado reformador. A abrangência das áreas a reformar pedia esforço conjunto – do centro (Papa) e da periferia (bispos). Nesse sentido, houve a preocupação de reorganizar os serviços centrais da Igreja (Cúria) e estruturar outros mecanismos que permitissem uma proximidade maior entre o episcopado e o bispo de Roma – o papa. Sisto V(1585-1590), percepcionando as urgências recorrentes, pela bula Romanus pontifex (1585), faz da visita Ad limina um acto obrigatório para todo o episcopado católico. A periodicidade dessa deslocação a Roma não se deu de forma igual para todos os bispos. Teve-se muito em conta a situação geográfica dos vários episcopados. Inicialmente, para os de Itália e outros territórios vizinhos pedia-se a sua presença em cada três anos. Para os da Europa central, espaçava-se o tempo para quatro anos. Para os dos territórios missionários (outros continentes) a periodicidade ia até aos 10 anos. Essa visita formal devia ser acompanhada dum relatório, previamente preparado, sobre a vida da diocese – Relatio status diocesis, atendo-se a formulários comuns que cobriam praticamente todas as áreas da vida diocesana. As determinações sistinas têm-se mantido, grosso modo, até aos nossos dias. O Código de Direito Canónico (1983), nos cânones 399 e 400, dá orientações claras para o cumprimento daquela obrigação. Mantem-se a obrigatoriedade do relatório e a deslocação do bispo a Roma ou, em caso de impedimento, a presença de quem o melhor possa substituir (bispo coadjutor, se o tiver, ou auxiliar, ou ainda por um sacerdote do seu presbitério). Na óptica de Sisto V, esses relatórios e encontros fraternos seriam instrumentos e ocasiões privilegiadas para se encontrarem as melhores linhas de actuação para uma Igreja sempre reformanda (sempre em dinâmica de ajustada reforma). Por trás da norma jurídica, havia, de facto, a preocupação de associar todos os bispos às grandes vertentes reformadoras. As determinações sistinas foram pensadas para um colectivo de bispos que não ultrapassava muito as seis centenas de bispos do universo católico da altura. Muitos desses, viram-se ainda incapacitados de empreender uma tal viagem. Hoje, o encontro pessoal com o papa continua a fazer-se para os actuais cerca de 5000 bispos. Por razões óbvias, a disponibilidade de tempo nem sempre permite um encontro demorado. De todos os modos, a prática encerra uma densidade de afecto e comunhão com o Pastor que, a partir da cadeira de S. Pedro, preside na caridade ao múnus apostólico de conduzir o povo de Deus. A visita Ad limina, desde a sua instituição até aos nossos dias, na sua execução, tem sido observada de forma flexível. Sem recuarmos muito no tempo, registe-se que durante os dois conflitos mundiais as visitas tornaram-se praticamente irrealizáveis para uma parte significativa do episcopado mundial. Pe. David Sampaio Barbosa, Professor de História da Igreja – UCP – Lisboa

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