Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve
Aquele que todos os Cristãos devem seguir manda-nos, desde sempre, conhecer a verdade e anunciá-la ao mundo. É esse um dos mais importantes mandatos divinos. É essa uma das formas mais sublimes, práticas, concretas de anunciar o Evangelho aos povos. Mesmo sabendo que é uma frase de um dos Evangelhos Apócrifos (mais precisamente do Evangelho de Nicodemos), esta passagem, nos últimos dias, não sai da minha cabeça: “«Jesus diz a Pilatos: -“Vês como os que dizem a verdade são julgados por aqueles que têm autoridade na terra». Vem-me ao pensamento a propósito do Relatório Final da Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica Portuguesa. E vem-me à cabeça, não porque gostasse aqui de analisar o conteúdo desse tão importante documento, mas de deter o meu olhar sobre o que se disse mediaticamente acerca do mesmo.
Num primeiro ponto, entristeço-me quando pessoas cristãs e não cristãs realçam, somente, o encobrimento dos casos e não olham com admiração para a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), sobretudo para o seu presidente, D. José Ornelas, que em 2021 teve a coragem, contra muitas vozes internas da Igreja Católica Portuguesa, de avançar para a criação de uma comissão totalmente independente, que permitisse um conhecimento profundo desta questão. Noutros países tradicionalmente cristãos, como por exemplo a Espanha e a Itália, as Conferências Episcopais ou não avançaram por medo, ou tiveram de reagir pressionadas pelo governo. Aqui não! Foi uma atitude livre, consciente, de quem queria, finalmente, saber a verdade que escondia esta monstruosidade, praticada por pessoas possuidoras de parafilia sexual, que simultaneamente são clérigos, ou agentes de pastoral com poder de decisão. Fez-se mal em encobrir? FEZ-SE! Mas a atitude, agora, não é essa, ou não se teria avançado para a produção desta investigação. Não creio que seja produtivo, ou mais ainda, justo criticar quem está a fazer o que lhe compete, mesmo com dificuldades. E se não as veem, procurem alguns artigos de ilustres membros do clero na imprensa; procurem nas redes sociais, porque rapidamente encontrarão quem manifeste o lado mais triste da Igreja, o lado que não vê com bons olhos este revelar do que não deveria jamais ter acontecido. Argumentam de um modo que me impressiona (para não usar uma linguagem mais pesada, mas mais expressiva!), esgrimindo algo que, para mim, é vergonhoso, enquanto cristão católico: que abusos sexuais ocorridos no contexto familiar e laboral diminuem a importância dos abusos sexuais dentro da Igreja Católica. Nem que houvesse uma só vítima, como disse o Papa Francisco, o pecado seria menor! E seguindo esta linha de raciocínio, coloquem-se no lugar de D. José Ornelas e de outros, que tiveram e têm nas mãos um processo que será dos mais duros e complexos de conduzir. Talvez percebam como foi/foram corajosos e dignos. Mas, lá está, «os que dizem a verdade são julgados por aqueles que têm autoridade na terra» …
Outro ponto da questão que, também já começa a ser aflorado por várias vozes e sempre me preocupou sobremaneira, prende-se com a formação dos sacerdotes, uma formação anacrónica e que impede o desenvolvimento de uma verdadeira inteligência emocional. E questiono-me: como é que alguém (ou tantas pessoas doentes) consegue sobreviver a anos e anos de seminário/formação, durante os quais (supostamente) vive escrutinado e em comunidade, 24 sobre 24 horas, sem que alguém reparasse que estava diante de um doente, que não tinha condições psíquicas para exercer qualquer ministério na Igreja Católica? Mais: durante o processo de seleção daqueles que passaram pelo sacramento da ordem, de que modo foram respondidas as várias proclamas (questionários feitos a pessoas muito diversas), sem que esse assunto fosse abordado, aprofundado, evidenciado? Como é que uma Instituição que faz da Moral Sexual dos seus fiéis um dos bastiões fortíssimos da sua pertença em plenitude, não olha para as doenças sexuais de alguns dos membros do clero e agentes de Pastoral, nomeadamente quando os prepara?
Na verdade, não ouvi, nesses monólogos, ou diálogos mediáticos dos últimos dias, alguém questionar porque é admitimos pessoas na hierarquia da Igreja (e em lugares de decisão) possuidoras de uma parafilia sexual, que atenta contra a vida de inocentes. Se um dos meus irmãos cometesse um crime, eu não estaria preocupado em perceber o fenómeno da criminalidade no mundo, mas estaria profundamente interessado em saber como, porquê e onde falhámos como família, para que tal pudesse acontecer!
Por isso, a mim não me interessam os números das doenças psíquicas e sexuais fora da Igreja Católica, mas sim, os números de membros do clero e agentes de pastoral da Igreja Católica, que, não tendo condições psíquicas e sexuais para exercer essas funções, estão a exercê-las na Igreja, a mesma instituição que é a garante da presença de Deus no mundo e, por isso, tem de dar o exemplo a todos, sob pena de que a sua credibilidade ser nula.
E não pensem já os mais obstinados com a moral sexual, que a origem deste problema se centra na homossexualidade, heterossexualidade, ou na continuidade (ou não) da disciplina do celibato sacerdotal. Para mim, o foco da questão está em dois itens: na deteção das doenças que anteriormente mencionei – e se os atos são crime, quem os pratica é doente, não esqueçamos! – e numa aposta forte e consciente nas relações humanas e interpessoais, que permitissem que, durante a sua formação, os futuros sacerdotes (e mesmo os agentes de pastoral) compreendessem que é imprescindível valorizar a capacidade de relação humana, o diálogo, a tolerância, a compreensão. De que serve ter um seminário cheio de jovens e de pessoas à volta destes, se nesse espaço só há lugar para a certeza litúrgica, para a moral e os dogmas e muitos preconceitos, esquecendo que o centro da formação de um futuro padre deve ser a preocupação de entender (e fazer entender) que a sua missão é, antes e mais que tudo, trazer Deus às vidas daqueles que estiverem nas suas comunidades?
Melhor seria se se encorajasse firmemente os seminaristas a conhecerem-se, a respeitarem-se, a procurarem um caminho de felicidade; melhor seria se se promovesse neles uma vontade, preocupação de discernir, de forma mais assertiva, aquelas que são as reais preocupações das pessoas; melhor seria, sem qualquer sombra de dúvida, se se promovesse um acompanhamento mais cuidado daqueles que revelassem, nesse percurso formativo, problemas sexuais/psiquiátricos, para garantir que a Igreja, que é mãe e acolhedora, tivesse uma resposta caridosa e competente para cada um: os que fossem capazes de chegar ao sacerdócio e os que, por questões de saúde, não pudessem ser ordenados.
Se não alterarmos procedimentos, olhares, formas de reagir/agir nada mudará e dentro de algum tempo estaremos a apontar mais e mais casos tristes. E, se assim for, de que vale passar por tudo isto, por este processo que implica o favorecimento de uma imagem altamente negativa de todos nós, que somos sacerdotes, ordenados, leigos empenhados, ainda que não sejamos todos abusadores?
A resposta está na frase que me assalta constantemente: «Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará» (Jo 8,32). É preciso fazer da verdade uma bandeira, permanentemente desfraldada ao vento, para que nada se oculte e só brilhe, limpa e pura, a Palavra, o Amor de Deus e ao próximo.