Esperar, para viver diversamente (CF. Spe Salvi, Nº 2) Se há virtude que qualifique a Quaresma, é particularmente a da esperança, ainda que saibamos que a vivência autêntica duma virtude teologal implique de imediato as outras. Sucede assim em particular nesta Quaresma de 2008, à luz recente da encíclica Spe Salvi, com que Bento XVI nos presenteou a 30 de Novembro passado, desenvolvendo uma passagem luminosa do Apóstolo das Gentes: “‘Spe Salvi facti sumus’ – é na esperança que fomos salvos: diz São Paulo aos Romanos e a nós também (Rm 8, 24). A ‘redenção’, a salvação, segundo a fé cristã, não é um simples dado de facto. A redenção é-nos oferecida no sentido que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho” (Spe Salvi, nº 1). Caminho, canseira, meta garantida… De facto, não podíamos encontrar sugestão mais fecunda para a Quaresma de todos e cada um. Aceitemo-la então. E façamo-lo agora na confluência de três fontes, existenciais no seu todo: a teologia de sempre, confrontada com a notícia recente e animada pela poesia. Até porque, como já sucedeu com a encíclica Deus caritas est, o magistério de Bento XVI tem encontrado no mundo intelectual e literário uma aceitação particularmente calorosa. Tomemos um exemplo nacional e de primeira plana: “Sempre me espantou – e sempre admirei – a esperança de homens que não acreditam em qualquer vida para além desta, num futuro paraíso terreno, seja o da sociedade sem classes, seja o do progresso ilimitado. Se eu for só poeira ou cinza nesse futuro distante, como poderei saber se a minha esperança se alcançou? A minha última visão do mundo é uma visão de ódio e desespero, de raivas e de vinganças. Como consolar-me com um futuro que não conhecerei?”. A questão aí ficava, como fica. Mas o autor encontra a resposta de Bento XVI na sua encíclica: “Qual é a verdadeira esperança? Essa, a tal que ‘espanta o próprio Deus’, vem da con-solatio, a consolação do amor solidário de Deus. Para exprimir essa solidariedade, Bento XVI, nesta assombrada e assombrosa encíclica, cita, de São Bernardo, a frase que o próprio Papa adjectiva como ‘maravilhosa’. Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis’ (‘Deus é O que não pode padecer, mas se pode compadecer’)” (João Bénard da Costa – Em esperança salvos fomos. Público 2, 16 de Dezembro de 2007, p. 11). Oiçamos antes de mais a teologia. A do Papa Ratzinger, teólogo e pastor, na presente encíclica. O número 2 da Spe Salvi traz-nos referências fundamentais sobre o que seja a esperança, exactamente enquanto virtude, actividade em nós da graça divina. Sendo Deus, absolutamente, relação e actividade, assim serão aqueles que a sua graça anima. Esperança é virtude teologal. Uma das três que – com a fé e a caridade – “fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do cristão. São infundidas por Deus na alma dos fiéis para os tornar capazes de proceder como filhos seus e assim merecerem a vida eterna. São o penhor da presença e da acção do Espírito Santo nas faculdades do ser humano” (Catecismo da Igreja Católica, nº 1813). Bem precisamos dela, para que a nossa meta seja maior ainda do que a nossa vida, alargando-a sempre mais à dimensão da divina. Assim ocasionou Cristo, inaugurando um Reino que, já estando no meio de nós, não se limita em nenhum lugar. Assim nos impele o Espírito, que, procedendo do Pai e do Filho, nos leva aquém e além de qualquer momento, realização ou fracasso. Sim, “a esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo” (Catecismo, nº 1817). Como virtude teologal, a esperança leva por diante o “diálogo” entre Deus e cada um de nós, o único em que ganhamos tudo, porque não perdemos nada de legítimo e autêntico, tal a grandeza do interlocutor divino. Mais ainda, devolve a Deus o melhor que Ele mesmo colocou em nós, como semente e desejo de realização plena. Rectifica, impulsiona e garante o que sem Deus se perderia decerto: “A virtude da esperança corresponde ao desejo de felicidade que Deus colocou no coração de todo o homem; assume as esperanças que inspiram as actividades dos homens, purifica-as e ordena-as para o Reino dos céus; protege contra o desânimo; sustenta no abatimento; dilata o coração na expectativa da bem-aventurança eterna. O ânimo que a esperança dá preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade” (Catecismo, nº 1818). Bento XVI lembra-nos bem como, de raiz, o cristianismo abriu e realizou uma esperança nova e consistente, impossível no paganismo. Neste, o irrealismo de divindades múltiplas ou a inevitável concorrência entre elas, não induzia qualquer realização cabal do desejo humano; mais facilmente redundava em desilusão e cepticismo. Comentando uma passagem da Carta aos Efésios, escreve-nos o Papa: “Quão determinante se revelasse para a consciência dos primeiros cristãos o facto de terem recebido o dom de uma esperança fidedigna, manifesta-se também nos textos onde se compara a existência cristã com a vida anterior à fé ou com a situação dos adeptos de outras religiões. Paulo lembra aos Efésios que, antes do seu encontro com Cristo, estavam ‘sem esperança e sem Deus no mundo’ (Ef 2, 12). Naturalmente, ele sabe que eles tinham seguido deuses, que tiveram uma religião, mas os seus deuses revelaram-se discutíveis e, dos seus mitos contraditórios, não emanava qualquer esperança” (Spe Salvi, nº 2). Sim, Paulo lembrou-o aos Efésios e Bento XVI lembra-nos agora a nós. Muito oportunamente o faz. Efectivamente, um dos maiores lapsos – para não dizermos injustiça e ingratidão – dalguma cultura contemporânea é esquecer o contributo libertador que o cristianismo trouxe há dois mil anos aos pagãos. E precisamente em termos de esperança. Desencantados estavam já os céus, por excesso de deuses – por quantidade de número e qualidade duvidosa de costumes -, ou por inexorabilidade mágica de causas e consequências, sem lugar para a liberdade humana. Céu toldado e espesso, terra esgotada e triste. Só a clara novidade da Páscoa de Cristo explicaria a tenacidade dos mártires e a sua paradoxal alegria. Do céu à terra, o caminho fora trilhado finalmente, escada de Jacob descida e subida, disponível agora, pela mesma senda. Tudo simplificado e oferecido. Tudo ganho na alma da esperança. Pela infinita liberdade de Deus, pela recriada liberdade do homem. Di-lo também o Papa, em palavras exactas e certeiras: “Aparece aqui também como elemento distintivo dos cristãos o facto destes terem um futuro: não é que conheçam em detalhe o que os espera, mas sabem em termos gerais que a sua vida não acaba no vazio. Somente quando o futuro é certo como realidade positiva, é que se torna vivível também o presente” (ibidem). Confrontemo-nos agora com a actualidade, tal como nos chega pela experiência de muitos e pela própria comunicação social. Uma esperança que torne o presente digno e possível de ser vivido, dizia Bento XVI. Um presente que nem sempre é fácil e convém agora precisar. É bom dizê-lo, quando sentimos por perto eventuais desânimos, em relação à vida pessoal, social e cívica. E sejamos comezinhos neste ponto, para sermos suficientemente verdadeiros. No que à nossa sociedade respeita, as últimas notícias são ainda graves e preocupantes. Ouvimo-las ou lemo-las há poucos dias: “Não é um retrato abonatório para Portugal aquele que se encontra descrito num relatório da Comissão Europeia sobre pobreza infantil […]. Elaborado com base em dados de 2005 […], o relatório coloca Portugal não só entre os oito países da União Europeia com níveis mais elevados de pobreza entre as crianças, como o confirma entre aqueles com mais probabilidades de se manterem nesta posição. Em 2005, 24 por cento das crianças (contra 19 de média na EU) encontravam-se expostas, em Portugal, ao risco de pobreza” (Clara Viana – Pobreza das crianças portuguesas é mais duradoura. Público, 25 de Fevereiro de 2008, p. 2). Também foram apresentadas causas, respeitantes à fragilidade cultural da vida familiar: “Uma conclusão: quanto menor a escolaridade dos pais, maior o risco de pobreza das crianças […]: em Portugal, 68 por cento […] das crianças vivem com pais que não concluíram os estudos secundários. Oitenta e oito por cento das crianças portuguesas em risco de pobreza vivem em agregados com estas baixas qualificações” (ibidem). Causa também, ou condicionante, é a (de)composição do agregado familiar: “Crescer em famílias monoparentais ou em agregados com três ou mais crianças são outros factores potenciadores de pobreza. Na união Europeia, ‘metade das crianças pobres’ vive nestes tipos de família. A taxa de pobreza entre as que vivem só com um pai (em 90% dos casos é a mãe) é de 34 por cento. Entre as que pertencem a famílias numerosas é de 25 por cento” (ibidem). Mas reparemos que este factor – família numerosa – não é, por si só, causador de pobreza. Bem pelo contrário, em zonas de maior desenvolvimento o facto de ter vários irmãos não empobrece de modo algum a criança: “a Suécia e a Alemanha são a excepção, ou seja, são dois países da EU em que o facto de uma criança viver numa família numerosa não lhe aumenta o risco de pobreza” (ibidem). Ouvimos também a reacção governamental a estas notícias, que suaviza um tanto o seu impacto: “um porta-voz do Ministério do Trabalho e da Segurança Social assegurou […] que o cenário retratado não corresponderá ‘certamente’ à situação de hoje, e provavelmente também não à de 2005. Os abonos foram reforçados, criados os subsídios de maternidade, mas mais importante, adianta, o estudo não contabiliza algumas das principais medidas ‘redutoras’ da pobreza infantil. Por exemplo, não foram levados em conta os ‘mil milhões de euros que o Estado anualmente transfere para as IPSS’ para subsidiar a frequência de pré-escolar e primário” (ibidem). Mas suavizar não pode significar adormecer, em relação a este e outros pontos cruciais, para sustentar a esperança e ganhar o futuro. E, se o facto de tantas crianças viverem com um só progenitor é causa de pobreza futura, outras notícias recentes não podem deixar de nos preocupar, concretamente nalgumas zonas da nossa Diocese do Porto. Também as líamos há dias, agora sobre o mundo laboral: “O abrandamento rápido do sector da construção civil em Espanha, para onde se deslocaram apenas nos últimos cinco anos 80 a 90 mil portugueses, a grande maioria provenientes da zona Norte do país, vai fazer com que perto de 30 mil trabalhadores portugueses abandonem o emprego nas obras espanholas nos próximos dois anos, revelou […] o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil do Norte (STCCN). Com a quebra prevista no sector em Espanha, a grande maioria dos trabalhadores portugueses não vai regressar ao nosso país, e o movimento de migração laboral para países mais distantes no Norte da Europa já começou. Inglaterra, Alemanha e Noruega são alguns dos novos destinos que estão a acolher e aliciar os operários nacionais da construção civil com remunerações muito superiores aos 518 euros médios mensais que, por exemplo, aufere em Portugal um operário qualificado de primeira categoria” (António Larguesa – Crise afasta portugueses. O Primeiro de Janeiro, 25 de Fevereiro de 2008, p. 2). Emigrantes cada vez para mais longe, emigrantes mal tratados aqui mais perto: “De acordo com o sindicato da construção civil, dos cerca dos 90 mil trabalhadores portugueses que estão ainda em Espanha, 45 por cento estão numa ‘situação muito degradante’, 35 por cento em ‘situação precária’ e apenas 20 por cento têm uma ‘situação estável’. A responsabilidade […] é de ‘pseudo-empresas’ e ‘engajadores’, muitas vezes portugueses. Que contratam compatriotas para estaleiros sem condições de segurança e que os alojam em habitações sem os padrões mínimos de higiene. Outro dos factores de precariedade denunciados pelo sindicato prende-se com a ausência de descontos para a segurança social por parte dos empregadores do país vizinho, que deixa os trabalhadores desprotegidos em caso de acidente” (ibidem). Retemos o comentário duma fonte oficial, que também não nos dispensa de solidariedade e atenção: “O Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) diz que Portugal atravessa uma ‘fase de transformação total’ e de ‘reestruturação económica dos sectores tradicionais’, confirmando que ‘a principal vítima é a mão-de-obra intensiva’. […] Avelino Leite, delegado regional do Porto do IEFP, referiu que’a baixa escolaridade dos trabalhadores da construção civil dificulta a sua reconversão para outros sectores de actividade’. ‘Continuamos a criar emprego, mas sobretudo para gente qualificada, e normalmente o que é destruído é para gente menos qualificada’, concluiu Avelino Leite” (ibidem). São notícias desta semana, que oxalá não sejam ainda do ano que vem. Mas este “oxalá”, maneira moçárabe de dizer “Deus queira”, compromete-nos a todos, cidadãos e crentes, que vivemos em esperança e nela nos salvamos. Que sabemos que a vontade de Deus é a realização e a salvação do homem, no mais concreto e absoluto da sua vida. Porque a esperança, lembra Bento XVI, activa-nos no bem: “Em linguagem actual, dir-se-ia: a mensagem cristã não era só ‘informativa’, mas ‘performativa’. Significa isto que o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova” (Spe Salvi, nº 2). Vive diversamente, sim, e nisso mesmo mostra ser discípulo do Ressuscitado. Diante e por dentro de toda a problemática humana, da família à sociedade onde se integra, o cristão só pode estar como Cristo, da Galileia a Jerusalém: próximo de fracos e doentes, próximo de tristes e sós, próximo de esquecidos e injustiçados, próximo de mortos até. Para que o Espírito de Cristo abra sempre a vida onde ela se fechara, active sempre a esperança onde ela já desaparecera. Certamente que todo o católico da Diocese do Porto quererá estar na primeira linha de todo o bom combate pela feliz realização do seu próximo. Fá-lo-á como cidadão comum, precisamente onde estiver, partilhando com crentes e não crentes a mesma vontade positiva de melhoramento geral. Mas, transportado por uma esperança que tem na Páscoa a sua garantia, não desistirá nunca nessa senda, não fechará o coração a nenhuma necessidade, não perderá o alento perante nenhum obstáculo. Temos então Quaresma, neste ano da graça de 2008, à luz da Páscoa que celebraremos em breve. Mas há de sê-lo na concretização e na prática. Só pode ser assim, porque nenhum de nós tem tempo ou espaço para se alienar de si e do mundo. O nosso Deus é proximidade absoluta. Animemo-nos por fim – que podia ser princípio – com a alma dos poetas. Ganhemos com eles o lugar da esperança. Com Daniel Faria, nem precisamos de sair do nosso Porto. Mas com a condição de nos retomarmos além de nós, como ele se retomava fora de si, ou seja, no Deus em que recomeçava: “… Não fui a casa que a si mesma se abrigou / Nem a morada que nunca se acolheu / Mas o tempo a pedir que me deixasse / Naquilo que não fui vim encontrar-me / E sempre que te vi recomecei” (Daniel Faria – Poesia. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 59). “E sempre que te vi recomecei”. Algo sabemos do que isto seja. Por isso estamos aqui nesta noite de Quaresma, nesta casa tão vetusta e sempre nova. Para recomeçarmos com um alento novo de pura graça, puro dom e absolutamente além de qualquer merecimento nosso. Como o sabia também o poeta: “Sei bem que não mereço um dia entrar no céu / Mas nem por isso escrevo a minha casa sobra a terra” (Ibidem, p. 62). Sim, irmãos e amigos, tão granítica e multi-secularmente fixa, esta casa levanta-se e levanta-nos com ela. Não nos ausenta de nada nem de ninguém, mas em tudo nos activa na esperança. O mesmo sentimento se torna caminhada, sempre caminhada, que se basta, quase prosaica e concreta, no sopro que recebe; quase absorvida e sempre transcendida nas ocasiões: “Caminho sem pés e sem sonhos / Só com a respiração e a cadência / Da muda passagem dos sopros. / Caminho como um remo que afunda. / Os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes / Para que a elevação e a profundidade se conjuguem. / Avanço sem jugo e ando longe / De caminhar sobre as águas do céu” (Ibidem, p. 84). “Os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes / Para que a elevação e a profundidade se conjuguem”: – Será possível dizer melhor, da esperança comprovada? Ou ainda, objectivando a esperança no encontro, abrindo inteiramente o tempo mais concreto: “Esperar é um modo de chegares / Um modo de te amar dentro do tempo” (Ibidem, p. 85). No sempre bíblico Daniel Faria ressoará aqui a exortação neotestamentária: “… como deve ser santa a vossa vida e a vossa piedade, enquanto esperais e apressais a chegada do dia de Deus […]! Nós […] esperamos uns novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça” (2 Pe 3, 11-13). Porque o tempo das contradições só se supera numa visão mais alta e penetrante, vizinha da esperança, esclarece o poeta, glosando Eclesiastes 12: “Antes que a tua única herança seja a lembrança / Antes que o fio de prata se rompa e a roldana rebente no poço / Antes de tudo isto / Põe uma escada e sobe ao cimo do que vês” (Ibidem, p. 161). Finalmente – se é que estas coisas se finalizam, por enquanto -, poderíamos dizer que as vicissitudes da vida não destroem a esperança, antes a apuram. Digamos que dos desencantos esparsos pode sobressair um encanto definitivo, que transporte e salve tudo quanto não encontrou resposta imediata e fora do seu lugar autêntico. Como respondeu Pedro ao próprio Cristo: “A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna!” (Jo 6, 68). Falámos de apuramento da esperança. Isto em relação ao mundo e a nós próprios, os cristãos, esquecidos por vezes de Quem unicamente a legitima. Como lembra Bento XVI, há um percalço moderno a corrigir, quer como redução da esperança ao progresso civilizacional, quer como diminuição dela pelos próprios crentes, quando porventura esqueçam a sua realização transcendente: “Encontramo-nos assim novamente diante da questão: o que podemos esperar? É necessária uma auto-crítica da Idade Moderna feita em diálogo com o cristianismo e com a sua concepção da esperança. Neste diálogo, também os cristãos devem aprender de novo, no contexto dos seus conhecimentos e experiências, em que consiste verdadeiramente a sua esperança, o que é que temos para oferecer ao mundo e, ao contrário, o que é que não podemos oferecer. É preciso que, na autocrítica da Idade Moderna, conflua também uma autocrítica do cristianismo moderno, que deve aprender sempre de novo a compreender-se a si mesmo a partir das próprias raízes” (Spe Salvi, nº 22). E o Papa é incisivo: “Digamos isto de uma forma mais simples: o ser humano tem necessidade de Deus; de contrário, fica privado de esperança” (ibidem, nº 23). Mas é de novo com Daniel Faria que se conclui este discurso. Porque é da soma das ausências – e até das inconsistências – que mais ressaltará a presença, que mais se multiplicará a vida: “Mas tu existes. / Os dias somam ruína à ruína / E o a vir multiplicará / A miséria. / Apodreço não adubando a terra / E cada dia somado a cada hora / não completa o tempo. / Sei que existes e multiplicarás / A tua falta. /Somarei a tua ausência à minha escuta / E tu redobrarás a minha vida.” (Poesia, p. 182). Manuel Clemente Sé do Porto, 28 de Fevereiro de 2008