Concílio ainda não mudou os católicos

Passados 40 anos do encerramento do II Concílio do Vaticano, D. Carlos Azevedo, historiador e bispo auxiliar de Lisboa, aborda as questões essenciais e aponta caminhos para a concretização plena deste compêndio. Agência ECCLESIA – O II Concílio do Vaticano está a comemorar os 40 anos de encerramento. Ainda se mantém actual ou já está ultrapassado? D. Carlos Azevedo – Considero que há dimensões actuais, sobretudo no estilo que foi criado na vida da Igreja. No estilo de participação sinodal, de escuta do Povo de Deus. Na capacidade de diálogo com aqueles que andam longe e afastados e de comunhão e diálogo com as várias confissões cristãs. Toda essa dimensão aberta pelo Concílio, no estilo de ser Igreja, continua actualíssima e está sempre em processo de realização. AE – Numa conferência sobre o II Concílio Vaticano, D. Carlos Azevedo afirmou que «muitos ultrapassaram-no pela direita e outros pela esquerda mas poucos chegaram ao núcleo». Qual a explicação para poucos atingirem o centro nevrálgico? CA – Porque este Concílio foi de conversão e operou, de modo surpreendente, uma mudança no estilo de ser Igreja e de ser cristão. Essa mudança apanhou alguns desprevenidos. O Papa João XXIII não pensava que ia dar isto que deu. Portanto, acho natural que alguns, aproveitando as aberturas dadas pelo Concílio, quisessem ir mais longe. É isto o ultrapassar pela esquerda. Outros ultrapassaram-no pela direita, os mais conservadores, que querem fazer de conta que o Concílio não existiu. Estas são as formas de não passar pelo núcleo que implica mudança e alteração na vida e no estilo de ser Igreja. Ler os sinais dos tempos AE – Passados 40 anos já podemos fazer uma avaliação da recepção do Concílio? CA – É um tempo razoável para se fazer essa análise. Aquela ideia própria dos anos sessenta – um certo entusiasmo do progresso e avanço do mundo – mudou muito em relação aos nossos dias. O Concílio dá elementos e ajudou a ler os sinais dos tempos. Ele foi capaz de ler, em simultâneo, as fontes da revelação e os sinais dos tempos. Foi capaz de fazer a ponte – esse é o trabalho da Teologia e da Pastoral – entre a fidelidade a um depósito revelado e atender à realidade em mudança. E esta mudança é muito veloz no tempo que vivemos. AE – Disse que «leu os sinais dos tempos». Agora não consegue ler esses sinais? CA – Não. É necessário que nós aprendamos, continuamente, a olhar para a realidade de hoje com a mesma capacidade de inovação e de criatividade que o Concílio teve ao olhar aquela época. Essa época já passou. AE – Aquele impacto inicial diluiu-se com o tempo? CA – Temos dimensões que não. O aspecto litúrgico, aquele onde a recepção foi maior mas mais superficial, não se diluiu com o tempo. Na vertente litúrgica ficou-se na epiderme (celebrante voltado para o povo, cânticos mais modernaços) da renovação. Nos pontos doutrinais mais profundos, sobretudo em Portugal – onde a ignorância religiosa continua a ser grande -, não foram aprofundados pelo Povo de Deus. Para este, o que passou e foi recebido, foi o aspecto litúrgico apesar de muita gente continuar a dizer que vai assistir à missa. A mentalidade das pessoas ainda não é de participarem na celebração. O interior das pessoas ainda não mudou AE – As questões de terminologia ainda não mudaram porquê? CA – Não mudaram porque a mentalidade continua a ser a mesma. Mudou o aspecto exterior mas não mudou a atitude. O interior das pessoas ainda não mudou. Há ainda um trabalho por fazer, no sentido de apanhar os grandes dinamismos que não são meramente aparentes. Há documentos oficiais que falam em administrar os sacramentos mas é uma linguagem totalmente ultrapassada. Os sacramentos não são para administrar mas para celebrar. Nós não somos donos da graça nem dos sacramentos. Na origem, a palavra «administrar» era muito bonita e significava «serviço». Hoje, está carregada de sentido económico e não corresponde à verdade da celebração dos sacramentos. Tanto a Unção dos Doentes como o sacramento da Penitência é para serem celebrados. Todos os sacramentos têm uma atitude de celebração. Falta uma catequese litúrgica adequada para que o espírito conciliar seja, verdadeiramente, absorvido. AE – Existiram e existem diversas atitudes sobre o II Concílio Vaticano: as minorias e maiorias conciliares. Como conciliar estas duas tendências? CA – Foi e é um trabalho do Espírito Santo. Ele moveu os corações dos bispos presentes no Concílio e também no pós-Concílio para que pequenos redutos de gente que não queriam mudanças e de outros que queriam mudar tudo, conseguissem encontrar o meio-termo. As grandes inovações estão nos aspectos pastorais e litúrgicos AE – O Concílio foi ecuménico, dog-mático, pastoral e litúrgico. Destas quatro facetas, qual destacaria? CA – Na vertente dogmática não houve grandes afirmações do ponto de vista da fé e dos costumes. A «Lumen Gentium» teve um papel importante e estruturante em relação à noção e estilo de ser Igreja: valorizou a dimensão da Igreja como Povo de Deus, a santidade como caminho para todos e o papel da vida religiosa no seio das comunidades cristãs e dioceses. Nos documentos mais dogmáticos – «Dei Verbum» e «Lumen Gentium» – não aparecem grandes inovações mas um modo novo de entender o mistério da Igreja. As grandes inovações estão nos aspectos pastorais e litúrgicos. A dimensão do Concílio mais preparada era a litúrgica. Um século antes, já o movimento litúrgico partia pedra e preparava o terreno para que essa dimensão pudesse ser acolhida. Apesar desta preparação, ainda há resistências de abertura. O campo pastoral é aquele que dá mais abertura. A Doutrina Social da Igreja foi um campo fértil e de grande evolução nos últimos anos, graças às intervenções de Paulo VI e de João Paulo II. AE – Mas o conceito de abertura é muito lato. CA – Nesse ponto responsabilizou-se muito as Conferências Episcopais para que a adaptação das celebrações fosse muito local. A liturgia é a vivência do Ser Humano com as suas dimensões muito culturalmente marcadas. Por isso assistimos a uma pluralidade de respostas: nos ritos e introdução de elementos autóctones. A abertura não é cada um fazer o que lhe apetece mas as Conferências Episcopais terem alguma maleabilidade e liberdade para fazerem determinações segundo os costumes. Essa abertura que foi dada, muitas vezes não é aproveitada. AE – Com o Concílio, as Conferências Episcopais ganharam mais poder. Uma grande inovação? CA – O funcionamento da Igreja passou a ser mais sinodal. Os próprios Sínodos dos bispos são expressão de um certo Concílio permanente. De três em três anos, bispos de todo o mundo reflectem sobre um tema importante para a vida da Igreja. AE – Boa aceitação no início mas os entraves surgiram no pós-Concílio. Qual a razão de ser destas barreiras? CA – Na dimensão litúrgica foram os abusos que retrocederam as medidas. Na dimensão mais interna da vida da Igreja e na própria estruturação da vida da Igreja, alguns defendem que era preciso que o próprio governo central da Igreja adquirisse uma nova estrutura. Além do Papa e do Colégio dos Cardeais que houvesse uma outra forma mais permanente de conselho e de ajuda. Descentralizando – como este Papa já fez com as beatificações – dimensões que não necessitavam de estar reservadas ao governo central. Diálogo difícil com a cultura AE – E o diálogo Igreja/ Cultura? CA – Ainda continua a ser difícil. A cultura contemporânea tem dimensões tão fragmentárias e diversificadas que o diálogo é muito caso a caso. Ou se arrisca a lançar perspectivas que não dizem nada a ninguém porque querem dizer tudo a todos ou então, se vai responder a uma micro-cultura, parece que se está a falhar numa resposta unitária. Esta é a maior crise. AE – Passados 40 anos, ainda não sabe dialogar com as micro-culturas? CA – Existe essa dificuldade mas temos gente com sentido profético que consegue abrir algumas portas de diálogo. Neste diálogo, a vertente do combate e da cruzada estão ultrapassados. Se assumirmos uma atitude de diálogo e de aproximação de comunhão, isto exige uma grande pobreza como atitude e uma grande fortaleza como identidade. Só quem está plenamente seguro e muito confiante na sua forma de entender a verdade cristã é que é capaz de se aproximar, anunciar e de ir ao encontro dos outros nas suas diferenças. Tem existido algumas experiências e aí a Igreja ganha no fôlego – exemplo das intervenções do Patriarca de Lisboa com o mundo da cultural -, as pessoas ficam reconhecidas nessas atitudes e respiram fundo de ter alguém que é capaz de esclarecer. AE – O II Concílio Vaticano respondeu à pergunta «Igreja que dizes de ti mesma»? CA – Ela disse o que pensava de si do ponto de vista do ideal da sua definição. Foi um grande avanço em percebermos qual é o papel e dimensão da vida eclesial. Outra coisa é perceber – numa dimensão que necessita de ser reflectida – o ministério da Igreja. A Igreja para responder às necessidades actuais precisa de ir mais longe nesse modo de entender a animação das comunidades. AE – Passou-se de Eurocentrismo eclesial para uma eclesialidade mundial? CA – Alguns referem que este Concílio ainda foi demasiado eurocentrico. Os grandes teólogos que estiveram na génese das perspectivas mais marcantes do Concílio eram europeus. Alguns ficam escandalizados com algumas perspectivas da exegese AE – A Teologia só estava desenvolvida na Europa? CA – As Faculdades de Teologia, as Universidades Católicas e o desenvolvimento do pensamento estava a começar. No século XIX assistimos a muita pujança espiritual e missionária mas de pouca profundidade Teológica. No século XX, as pessoas estavam muito envolvidas nas duas grandes guerras. Praticamente desde o século XVI/XVII que não havia um grande desenvolvimento na área teo-lógica.Com o Concílio deu-se um salto enorme na vertente bíblica. Alguns ficam escandalizados com algumas perspectivas da exegese actual. A «Dei Verbum» é um documento difícil de ler e as perspectivas abertas para a leitura da Palavra de Deus levam a pormos em causa algumas ideias pré-concebidas sobre a própria Palavra de Deus. Os grupos bíblicos, criados posteriormente, ainda atingem um pequeno número de pessoas. Passados 40 anos, já temos uma Teologia feita na América Latina e um desenvolvimento norte-americano. AE –Hoje, com estas escolas teológicas, um novo Concílio seria diferente. Teríamos mais minorias conciliares? CA – As minorias que se constituíram durante o Concílio e durante os primeiros tempos do pós-Concílio estavam mar-cadas por dimensões de concepções de Igreja. Agora, a divergência cultural é muito mais profunda. A Teologia africana desenvolveu-se apesar de estar muito nos inícios. A Teologia asiática ainda não despertou. Quando os teólogos asiáticos começarem a pensar segundo a sua própria cultura trarão um enriquecimento imenso. Nós fomos marcados por uma cultura greco-romana e o pensamento e as formas mentais com que transmitimos as noções teológicas ainda tem muito sabor da cultura grega. Quando tivermos bases de outras culturas, chegaremos muito mais à pureza do Evangelho. Mudanças de mentalidade AE – A valorização do papel dos leigos foi outra dimensão inovadora? CA – Uma dimensão que vinha sendo desenvolvida. Não devemos esquecer quanto foi importante a Acção Católica que desde os anos 30 foi antecipando e preparando essa dimensão conciliar. Quando se chegou ao Concílio, o pensamento já estava maduro sobre a participação dos leigos na vida da Igreja. Agora, o concreto dessa participação ainda exige muita mudança de mentalidade nos pastores. Muitas vezes, as estruturas não funcionam bem porque não há uma atitude de verdadeiro acolhimento. Ainda há uns certos «proprietários da quinta» e os outros não são bem proprietários. Não há ninguém que possa ser excluído de uma participação. Isto exige um trabalho muito longo de formação dos leigos e dos animadores das comunidades (padres e bispos). AE – Existem folhas caducas neste concílio? CA – Não vejo nada que se possa dizer ultrapassado. AE – Como a evolução e a rapidez são apanágios do nosso tempo… CA – Penso que não há nenhuma página do Concílio que possamos dizer que caiu. Desenvolveu-se e foi-se mais longe numa ou noutra dimensão mas, a partir do embrião que estava no Concílio, não temos perspectivas que anulassem páginas anteriores. Esse desenvolvimento foi fruto da prática que antes não existia. A própria prática na vida da Igreja, se em relação aos abusos colocou um dique para limitar algumas criatividades sem sentido por outro lado veio dar um novo alcance àquilo que era ainda uma intuição (há 40 anos) e depois se descobriu uma riqueza. A Igreja não está preparada para um novo Concílio AE – Onde falta apostar para que este Concílio seja levado a bom porto? CA – Os grandes desafios estão situados no diálogo inter-religioso, na opera-cionalidade das comunidades, o repensar o papel do ministério e a vivência moral e espiritual. Temos demasiadas orientações e documentos mas falta tornar operacional a vida da Igreja e ainda não se conseguiu evangelizar a cultura. AE – É a cultura que não deixa entrar o Evangelho ou é o Evangelho que não é capaz de entrar na cultura? CA – Há as duas dificuldades mas coloco o assento na nossa dificuldade. Existe muita aspiração espiritual em quem anda na busca de novos caminhos e nós temos algumas dificuldades em encontrar uma linguagem que vá ao encontro do seu modo de perceber o mistério. Esse esforço, aplicado mais a Portugal, não tem tido trabalhadores capazes para os ajudar a crescer na fé. AE – A Igreja está preparada para acolher um novo Concílio? CA – Penso que não. Nem seria bom que isso acontecesse.

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