Comunicação Social deve desenvolver sensibilidade crítica

Um olhar sobre o testamento doutrinal e espiritual de João Paulo II para o Mundial das Comunicações Sociais A Mensagem para o XXXIX Dia Mundial das Comunicações Sociais, intitulada “Os Meios de comunicação ao serviço da compreensão entre os povos”, é simples e curta, não precisa propriamente de explicações. Daí que esta apresentação se entenda mais como um conjunto de ressonâncias pessoais perante esta Mensagem e seu enquadramento contextual em termos de magistério do que propriamente como explicitação directa do seu conteúdo. Ou seja, pergunto-me fundamentalmente pelas questões que coloca, pelos indicativos práticos que sugere, pelas interpelações que faz aos comunicadores, em particular aos comunicadores cristãos. 1. A Mensagem no contexto do magistério de João Paulo II Em termos de enquadramento contextual, queria começar por recordar que estamos perante uma das últimas mensagens deste género e neste âmbito do pontificado de João Paulo II. Ao mesmo tempo convém lembrar que esta reflexão a propósito do Dia Mundial das Comunicações Sociais aparece estreitamente associada à Mensagem para o Dia Mundial da Paz celebrado a 1 de Janeiro, subordinada ao lema “Não te deixes vencer pelo mal, antes vence o mal com o bem” (Rm 12, 21)”. De resto, com a assinatura datada de 24 de Janeiro, o dia – como é sabido – de S. Francisco de Sales e da publicação da Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, veio também a público a Carta Apostólica O rápido desenvolvimento, motivada pela comemoração dos 40 anos do Decreto conciliar Inter Mirifica. Ou seja: estamos diante de um pequeno conjunto de textos, com ideias básicas a que importa prestar atenção na sua coerência e na sua interpelação fundamentais. De resto, creio não só que é legítimo mas também significativo olhar para este conjunto de mensagens, de algum modo ligadas entre si, como fazendo parte integrante do testamento doutrinal-espiritual que o pontificado de João Paulo II nos deixou, neste caso particular no âmbito das Comunicações Sociais. Os textos do final de uma vida e de um ministério, neste caso do ministério de alguém que teve consciência aguda da importância dos meios de comunicação social e especial sensibilidade prática para se relacionar com eles, podem, eu diria mesmo, devem agora ser relidos com olhos mais amplos e mais atentos, discernindo o essencial que daí resulta. 2. A ambiguidade inscrita na tarefa da comunicação social Citando a Carta de São Tiago – “De uma mesma boca procedem a bênção e a maldição. Não convém, meus irmãos, que seja assim” (Tg 3, 10) -, a Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2005 chama a atenção, logo à partida, para um dos aspectos que me parecem mais relevantes neste pequeno texto: a ambiguidade inevitável que envolve todo o agir humano, que atinge também necessariamente também a nossa tarefa de comunicadores, colocando ao de cima a enorme responsabilidade que nos cabe. A Mensagem salienta que não apenas as palavras mas toda a forma de comunicação humana tanto podem criar vínculos de união como fomentar hostilidades, que o uso dos meios de comunicação social tanto pode servir para promover a harmonia e a reconciliação entre os povos como para provocar incompreensão e conflitos. “Eles constituem – diz, por sua vez, a Carta Apostólica O rápido desenvolvimento, nº 11 – um recurso positivo poderoso, se postos ao serviço da compreensão entre os povos; e uma ‘arma’ destruidora, se usados para alimentar injustiças e conflitos”. Mas dentro dessa radical ambiguidade, importa atentar ainda num aspecto particular: estamos num campo de actividade humana (certamente não o único) em que não podemos controlar com suficiente amplitude e segurança os efeitos das nossas opções ou omissões. Seleccionamos como importante um tema ou uma notícia, mas não somos capazes de medir nem conseguimos nunca saber exactamente as repercussões que essa opção teve, tanto em termos positivos como negativos; sabemos apenas, por experiência quotidiana, que o comum dos cidadãos não vai ouvir, ler ou ver da mesma maneira, antes fará leituras ou tirará consequências diferentes do acontecimento transmitido ou noticiado. Escolhemos uma imagem, mas não sabemos nem podemos prever as impressões que deixa, as leituras que vai sugerir, o modo (eventualmente contraditório) como vai ser recebida. Tomar consciência da ambiguidade radical aqui presente é o primeiro passo em ordem a um agir mais consciente e a um indispensável discernimento. “Pede-se a todos que saibam cultivar um atento discernimento e uma vigilância constante […]” (O rápido desenvolvimento, nº 13). 3. A caminho de uma cidadania mundial Mesmo sem poder dominar completamente em todas as suas consequências as nossas opções e decisões concretas, sabemos, como comunicadores, para onde vai, para onde deve ir o caminho a percorrer. Como sugere precisamente a escolha do tema para o Dia Mundial das Comunicações Sociais deste ano, o caminho passa pela necessidade urgente de “promover – como se lê logo no nº 1 – a unidade da Família humana através da utilização destes maravilhosos recursos”. Certamente que há aqui a consciência – tanto em termos de racionalidade humana como de visão crente, uma e outra apuradas pelos desenvolvimentos dos últimos anos em termos mundiais – de que, cada vez mais, a humanidade tem de jogar em conjunto o seu destino, o seu futuro, a sua sobrevivência. Mas há igualmente a percepção de que o actual processo de globalização que estamos a viver em diversas facetas e dimensões nos coloca numa nova fase da história da humanidade. Uma nova fase em que o processo de “hominização” dos seres humanos (nas suas várias vertentes e possibilidades) cada vez menos pode ser dissociado da pergunta, em termos planetários, pelos critérios, os pressupostos, as exigências da verdadeira “humanização” (ou seja, o progressivo aprofundamento do sentido da especificidade e da dignidade humanas como projecto e tarefa para cada pessoa). Este sentido da unidade de destino e de valores da família humana tem marcado, aliás, de forma insistente as intervenções do magistério eclesial nos últimos tempos (basta ter presente as tomadas de posição de representantes da Santa Sé em acontecimentos e fóruns internacionais). Tem-se chamado a atenção para a amplitude que tem de assumir a consciência do bem comum em termos universais, pois as consequências do fenómeno da globalização envolvem todas as redes de existência e convivência humanas e fazem aumentar os bens públicos com carácter global (cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz, nº 7). O magistério eclesial tem sobretudo advertido que, não obstante toda a contextualização histórica no reconhecimento e na afirmação de valores, há aquisições de consciência humana que são, têm de ser dados irreversíveis. Assim se entende aquela que, na Mensagem para o Dia Mundial da Paz, constitui certamente a sua afirmação mais decisiva: “O facto de pertencer à família humana confere a cada pessoa uma espécie de cidadania mundial, tornando-a titular de direitos e de deveres, visto que os homens estão unidos por uma comunhão de origem e de supremo destino” (nº 6). Todos estamos, pois, de alguma forma cada vez mais implicados no bem comum universal, “na busca constante do bem dos outros como se fosse o próprio” (cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz, nº 5). É uma tarefa ingente, certamente nunca acabada, mas que não pode deixar de marcar desde já o nosso agir, porventura anónimo e discreto, de comunicadores. A Igreja, na vivência efectiva da sua catolicidade, e os comunicadores cristãos, no alargamento do seu horizonte cultural, têm uma responsabilidade inalienável no reconhecimento e no crescimento desta cidadania mundial. Creio que os acontecimentos do último mês tornaram esta realidade mais perceptível e mostraram que ela é possível, ao fazerem emergir a figura do Papa João Paulo II, no e pelo exercício do seu ministério, como um verdadeiro “cidadão do mundo”. 4. O papel crucial da educação Neste processo de consciencialização de uma cidadania universal a Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais sublinha a tarefa crucial da educação e o papel que os meios de comunicação social têm em ordem a despertar e a fomentar, em cada pessoa, a consciência cívica e o sentido de uma responsabilidade pública. Já a Mensagem para o Dia Mundial da Paz sublinhava este ponto ao dizer que é indispensável “promover uma grande obra educadora das consciências que forme a todos, sobretudo às novas gerações, para o bem, abrindo-lhes o horizonte do humanismo integral e solidário que a Igreja indica e deseja” (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, nº 4). Nesse processo educativo é fundamental começar por um conhecimento adequado da realidade: “Os meios podem mostrar a milhões de pessoas como são outras partes do mundo e outras culturas”. Para muitas pessoas eles são mesmo – e continuo a citar ideias da Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais – “o principal instrumento informativo e formativo” . “As imagens, em particular, têm a capacidade de transmitir impressões duradouras e modelar atitudes” (nº 2). Mais ainda e como todos sabemos, há realidades que existem ou não existem conforme os meios de comunicação social lhes prestam ou não atenção. E há milhões de pessoas, atrever-me-ia mesmo a dizer – continentes inteiros – penso em África, tema preferencial da referida última Mensagem do Papa para o dia 1 de Janeiro – que sobrevirão ou não conforme os meios de comunicação social lhe prestarem atenção e o modo como o fizerem. “Realmente – lê-se na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, nº 2 – os meios têm um potencial enorme para promover a paz e construir pontes entre os povos, rompendo o círculo fatal da violência, vingança e as agressões sem fim, tão difundidas no nosso tempo. Nas palavras de São Paulo, que foi a base da mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano: ‘Não te deixes vencer pelo mal, antes vence o mal com o bem’ (Rm 12, 21)”. 5. O bem também tem sempre um rosto Neste contexto, a pergunta que sinto como particular interpelação é a de saber em que medida a promoção do bem pode ser acontecimento que mereça atenção pública constante, para além daqueles casos excepcionais que se tornam “incontornáveis” para qualquer comunicador ou órgão de comunicação social que sejam minimamente sensatos. Sobretudo, não podemos esquecer que, se o mal, apesar de todo o mistério que o envolve na multiplicidade das suas expressões, tem sempre um rosto – o rosto das pessoas que sofrem as suas consequências, mas também o “o rosto e o nome de homens e mulheres que o escolheram livremente” (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, nº 2) -, o bem também tem, não pode deixar de ter um rosto e um nome. O rosto e o nome de todos quantos, em circunstâncias mais fáceis ou mais adversas, vão ajudando a construir a justiça e a paz. E o mundo de que falamos e em que vivemos tem rosto, múltiplos rostos (como nos sugere, de forma bem interpelativa, o cartaz preparado para a celebração deste Dia Mundial das Comunicações Sociais). Ou seja: embora sob perspectivas diferentes, em ambos os casos estamos a falar de pessoas, seres humanos com a sua liberdade e responsabilidade inalienáveis, seres humanos que não nos deixam descansar na nossa indiferença ou apatia. Na consciência da importância da sua tarefa, os comunicadores não podem deixar de desenvolver uma particular sensibilidade crítica face às deformações do rosto do outro. Nuns casos isso acontecerá pela inércia dos hábitos adquiridos com a nossa cultura e o nosso limitado situar-se no mundo. Mas importa relativizar todos os particularismos em nome de um horizonte de verdadeira universalidade. Noutros casos será por ignorância. Mas a ignorância pode e deve ser ultrapassada em nome da elementar responsabilidade cívica de quem tem entre mãos possibilidades tão grandes. Noutros casos será pelos imperativos da “lei do mercado” ou por outros interesses e pressões. Mas ninguém pode iludir a pergunta pela dignidade elementar, em termos éticos, que suporta qualquer existência humana e qualquer tarefa profissional. Não é possível fazer sempre tudo bem, mas é possível e indispensável ter sensibilidade crítica, saber relativizar as ideias feitas que atravessam a nossa maneira de pensar e as nossas atitudes quotidianas. Tudo poderia ser um pouco diferente se conseguíssemos ir progredindo de forma mais consistente na compreensão do outro na sua diferença: em termos de raça, cultura, religião, opções ideológicas… 6. A capacidade de recomeçar sempre de novo A Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais começa com uma palavra da Bíblia e termina com uma referência à oração. Com esta referência toca-se num ponto nuclear da identidade cristã: os cristãos sabem que não são, à partida e em todas as situações, melhores que os outros (tanto em termos pessoais como institucionais), imunes a limites, tentações, pecados. Mas sabem e confiam que o seu agir quotidiano, apesar de todos as fragilidades e ambiguidades, é suportado pelo amor misericordioso de Deus e pela força criativa do seu Espírito, tal como ele se manifestou na paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Esta é uma “memória perigosa” – como escreveu já há anos J. B. Metz – porque contesta os estereótipos estabelecidos, os dados adquiridos, as conveniências eclesiásticas. Neste preciso contexto – até porque o bem tem sempre um rosto e um nome! – não posso deixar de anotar como, em Março passado, foi quase totalmente ignorado pela opinião pública cristã o vigésimo quinto aniversário do assassinato de Monsenhor Oscar Romero, como se pudesse haver na Igreja processos de beatificação de primeira e de segunda classe! “Memória perigosa”, mas, simultaneamente também, “memória de esperança”: há um fundamento que supera todos os nossos saberes e capacidades, sabemos que, apesar de todas as fragilidades, podemos e devemos sempre recomeçar de novo. “Diante de tantos dramas que afligem o mundo, os cristãos – afirma a Mensagem para o Dia Mundial da Paz, nº 11 – confessam com humilde confiança que só Deus torna possível ao homem e aos povos a superação do mal para alcançar o bem […]. Apoiado na certeza de que o mal não prevalecerá, o cristão cultiva uma indómita esperança, que o sustenta na promoção da justiça e da paz”. No mesmo sentido a Carta Apostólica O rápido desenvolvimento termina com um convite que o Papa João Paulo II faz aos operadores da comunicação, e especialmente aos cristãos que operam neste âmbito, repetindo de forma específica o desafio que no início do seu pontificado quis lançar ao mundo inteiro: “Não tenhais medo das novas tecnologias! […] Não tenhais medo da oposição do mundo! […] Também não tenhais medo da vossa fraqueza e da vossa incapacidade! […] (nº 14). “Os meios de comunicação ao serviço da compreensão entre os povos”: somos capazes no dia a dia, nos êxitos e nos fracassos, nas lutas vencidas com prudência e coragem e nas derrotas aceites com humildade e com perseverança, de recomeçar sempre de novo? Estamos mesmo profunda e praticamente convencidos – pergunta-nos o testamento doutrinal-espiritual de João Paulo II nesta matéria – de que é possível e vale a pena vencer o mal com o bem, para que a humanidade cresça em justiça, liberdade, paz e amor? Eduardo Borges de Pinho

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