Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa – Apresentação da Equipa

Conferência de imprensa, 10 de janeiro de 2022

Foto: Agência ECCLESIA

A Comissão tem como coordenador Pedro Strecht, médico de psiquiatria da infância e adolescência; entre vários trabalhos na área da pedopsiquiatria. Integra ainda, como membros, Álvaro Laborinho Lúcio, juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, antigo Ministro da Justiça; Ana Nunes de Almeida, socióloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; Daniel Sampaio, psiquiatra, professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina de Lisboa; Filipa Tavares, assistente social e terapeuta familiar; Catarina Vasconcelos, cineasta.

 

Pedro Strecht

Tal como referido no passado dia 02 de dezembro, a Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa apresenta-se hoje, publicamente, com todos os seus membros efetivos, cujo nomes e funções já foram anteriormente divulgados. Bem como as principais linhas do seu trabalho multidisciplinar.

Juntos e em equipa, num funcionamento, no qual me cabe a coordenação, procuraremos, ao longo deste ano, de 2022, organizar e levar a bom termo o trabalho para o qual recebemos um convite, dirigido pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), na pessoa do seu presidente, D. José Ornelas, que seguindo a diretrizes de sua Santidade o Papa Francisco, deseja de igual modo esclarecer o melhor possível tudo o que possa ter acontecido, em Portugal, ao longo dos últimos anos, no que se refere à abordagem desta realidade tão complexa, como necessária de apurar.

A CEP depositou nesta comissão uma total autonomia e total confiança que nos dá a certeza de podermos, a partir de agora, e já antes porque já antes estivemos reunidos, trabalhar o melhor possível para honrar os compromissos para os quais fomos investidos. Por isso, e de novo a todos os membros da CEP, é mais do que justo reforçar o nosso prévio agradecimento.

Quanto à nossa ação futura, já o referimos e repete-se hoje, sem qualquer motivo de dúvida que somos um grupo de pessoas que se organizou para esta missão, tendo por base a sua experiência profissional e a respetiva idoneidade necessárias para que, livremente, possa recolher e tratar testemunhos de vítimas, compreender quando, onde, como, por quem foram abusadas. Num modelo de abordagem sintónico com o seu sofrimento passado que por diversas circunstâncias permaneceu omisso até aos dias de hoje.

Dai o nosso desígnio, de também adotar como lema uma frase muito simples que está plasmada neste écran: “Dar voz ao silêncio”. De verdade, a comissão existe para estar ao lado das pessoas. Tem disponibilidade total para as escutar, a seu tempo e com tempo. Uma a uma porque todos, mas todos contam. A comissão irá também procurar validar estes testemunhos em sigilo profissional, fazendo-o através de diversas formas, para que cada qual, sem medo, vergonha ou culpa tenha, finalmente, um espaço de referência onde se sinta confortável para poder falar.

A comissão existe ainda para que em último caso e sempre que necessário orientar queixas para quem de direito pode e deve investigá-las e dar-lhes respostas sobre a moldura jurídica existente em Portugal.

A partir das 10h00 do dia de amanhã, a comissão terá ao seu dispor ou terá ao dispor de toda e qualquer pessoa o seu site para consulta, um mail disponível para qualquer esclarecimento, um inquérito para todos os que o queiram responder em sinceridade, um número de telefone em linha aberta para ouvir quem quiser dar o seu testemunho. Está também ali fixado e esse mesmo agradeço que o divulguem: 917110000. Haverá em simultâneo outras vertentes muitíssimo importantes no nosso trabalho e ao longo dos próximos doze meses. Sendo que desde já destacamos o estudo estatístico de todo o material recolhido, a pesquisa de informação presente em meios de comunicação social pelo menos desde 1950, o estudo ponderado e colaborativo de arquivos históricos da própria Igreja Católica, o contato aberto com todas as instituições e pessoas que já existem e continuarão a existir enquanto referência em Portugal no domínio da promoção e proteção dos direitos das crianças.

Com todos prometemos contactar e saber ouvir. A todos pedimos de igual modo que nos contactem também, desde o primeiro ao último dia. Criticando de forma positiva, sugerindo, fazendo com que possamos trabalhar em rede sobre fins que todos partilhamos.

Por último, uma breve, mas importante palavra para o papel da comunicação social em todo este processo. Desde os jornais e as revistas, tal como rádios, ambos na sua vertente local como nacional, televisões de canal público ou privado, bem como de todos aqueles que possam, individualmente, divulgar este trabalho, e acima de tudo, nesta fase, os contactos da comissão. Divulguem o nosso site, o mail e o número de telefone. Construímos, aliás, uma breve mensagem, em som e imagem, para a qual pedimos a vossa insistente divulgação e que será revelada no final deste tempo. Peço-vos, assim, que todos em conjunto, unamos esforços. Muito mais do que nós, são vocês, somos todos, os que podem expandir a mensagem que agora é fulcral, passar de forma apelativa e segura. Vamos dar voz ao silêncio.

Contem connosco, com trabalho dedicado e sério. A partir de hoje também, ainda com necessário recato que a comissão precisa de ter para transmitir confiança a todos aqueles que na infância ou na adolescência possam ter sido vítimas de abusos sexuais no seio da Igreja Católica portuguesa.

Seguindo uma ordem em que todos vamos falar um pouco convosco, passo a palavra para Ana Nunes de Almeida.

 

Ana Nunes de Almeida

O meu nome é Ana Nunes de Almeida e as minhas coordenadas profissionais já foram apresentadas pelo Pedro na primeira conferência de imprensa, aqui na Gulbenkian. Eu sou socióloga, faço ciência na universidade, e, como cientista, eu possuo um treino grande na realização de estudos, no meu caso em ciências sociais, sobre vários temas, entre os quais as crianças e a infância.

Possuo treino até sobre realidades consideradas sensíveis, como o caso que aqui nos traz. Cabe-me a mim apresentar, em modo telegráfico, o estudo e vou fazê-lo em três pontos e com uma observação final.

Primeiro ponto. Quais são os objetivos do estudo? Nós queremos conhecer a realidade dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes, portanto estamos a considerar a faixa dos zero aos dezoito anos, praticados por membros da Igreja Católica Portuguesa ou por leigos que estão envolvidos nas suas várias vertentes de atuação, de intervenção: paroquial; educativa; escolar, familiar, terapêutica etc…

Queremos conhecer de duas maneiras, primeiro ter uma noção dos números e procurar responder, é uma resposta muito difícil, a esta pergunta: quantas crianças foram abusadas ao longo do tempo, isto é, no arco temporal de 1950 a 2022. Nós sabemos, e todos sabemos penso eu, que os números em matéria de mau trato contra crianças falam pouco, dizem pouco. Nós nunca conseguiremos sair da ponta de um iceberg, em que só um terço está visível e os outros dois terços estão submersos no mar profundo.

Por isso, não queremos ficar só pelos números. Queremos perceber que características tinham e têm esses abusos, isto é, por exemplo, saber se eles se repetem numa fórmula única ou, se pelo contrário, se declinam em formas diversificadas que podem ser organizadas, arrumadas numa tipologia.

Encontram-se perfis tipo de vítimas, de pessoas abusadoras ou mesmo de contextos favorecedores de abusos? Queremos responder a estas perguntas.

Depois dos objetivos, as estratégias metodológicas, definimos já duas. Duas maneiras de chegar ao terreno. A primeira, digamos que podemos caracterizá-la, como uma análise da documentação. Procura de evidência de factos ocorridos. Não só, como o Pedro acabou de dizer em jornais nacionais e locais, em revistas, portanto fazer uma análise de conteúdo dos anos cinquenta até ao presente. Uma análise com critérios, evidentemente, mas também uma análise de documentação em outras bases de dados e arquivos. Alguns exemplos, são apenas exemplos, a CPCJ, a Procuradoria-Geral da República, a APAV e o IAC. Estou só a referir alguns.

Por outro lado, também, estudos de arquivos da Igreja, não só o das comissões diocesanas, que foram, recentemente, criadas para, justamente, lidarem com este tema, como também arquivos históricos nas dioceses onde se encontram os processos de denúncia, encaminhamento e solução de casos.

Por último também, não esquecendo o contributo da área da saúde, trabalhar com bases de dados dos núcleos protetores de crianças que existem nos hospitais e centros de saúde a nível nacional ou por ARS.

A segunda estratégia, que consideramos ser, realmente, o núcleo duro, o centro de gravidade deste estudo, como provavelmente já se aperceberam, dar a palavra às vítimas desses abusos. Através, daquilo que nas Ciências Sociais chamamos métodos de inquirição. Não só um inquérito por questionário, que está on-line, como também por entrevistas, ambos pensados a partir de um guião comum. Através dos quais recolhemos, analisamos, interpretamos os seus testemunhos e as suas experiências contadas na primeira pessoa.

Todas as vítimas de todas as idades, todos os testemunhos, para nós contam.

Terceiro aspeto. Terceiro tópico que eu queria referir a partir deste estudo. O nosso arco temporal, 1950-2022, leva-nos a atravessar camadas profundas e mudanças e viragens da sociedade portuguesa, em especial, no pós-25 de abril. Uma contextualização socio-histórica do estudo é indispensável, já que estes casos, evidentemente, não acontecem no vazio.

Há que retratar, por um lado, a relação dos portugueses com a Igreja Católica ao longo destas décadas. A sua presença na sociedade portuguesa. E por outro, falar também de processos de secularização, individualização, novas representações e prática da sexualidade, novos valores sobre as crianças e a infância, sobre os papéis de género. É preciso reconstruir o pano de fundo.

Estou terminar com uma observação final. Esta é a proposta de trabalho, à partida mas está longe de ser uma grelha fechada. Pelo contrário. Sabe-se muito pouco, quase nada, sobre abusos sexuais contra as crianças. Eu até podia ficar aqui, mas agora acrescento, na Igreja portuguesa. Na Igreja Católica portuguesa. Estamos a entrar, quase às escuras, num terreno desconhecido, silenciado. Mas não temos dúvidas de que ao começarmos a escavá-lo vamos ser apanhados de surpresa por outras pistas de conhecimento. O nosso caminho é, justamente e sem qualquer hesitação, ir atrás delas. Telegraficamente é isto.

 

Álvaro Laborinho Lúcio

Associar-me aos dois membros da comissão, que anteriormente usaram da palavra, para agradecer a vossa presença e para sublinhar a importância decisiva que os órgãos de comunicação social vão ter, necessariamente, no êxito deste trabalho que temos entre mãos. E assinalar que, este primeiro momento de encontro, é já bem demonstrativo da importância que cada de vós reconhece e a noção que podemos, obviamente, contar convosco. Quando dizemos contar convosco – falando para senhoras e para senhores jornalistas – estamos a contar com o vosso acompanhamento empenhado, interessado e crítico como é óbvio.

Portanto, vamos, com certeza, encontrar-nos várias vezes e, ao longo do tempo, iremos trocando impressões sobre o andamento dos nossos trabalhos. Mas isso, o senhor coordenador dir-vos-á oportunamente.

Eu, hoje, muito sumariamente, falava-vos apenas das conceptologias. De duas delas. De que é que falamos, quando falamos de abusos sexuais? E de quem falamos, quando falamos de crianças?

Aparentemente são duas respostas fáceis de dar, e, portanto, duas perguntas que não levantam dificuldades. Isso é verdade. Não há dificuldade nas respostas, as perguntam não se tornam difíceis, mas não se tornam difíceis desde que nós acordemos objetivamente nas respostas. Essa foi uma primeira questão que nos assaltou. A de saber que critérios objetivos, nós podíamos encontrar para definir os atos sexuais. Havia aqui um risco como calculais, é que quando falamos de atos sexuais podemos estar a falar de conceitos, preconceitos, de moralismos falsos. E, muitas vezes, abrir um caminho que depois somos, absolutamente incapazes, de eliminar do ponto de vista técnico e do ponto de vista científico.

Então, acordámos num critério absolutamente objetivo. E para nós, e é isso que ficais a saber, atos sexuais são todas aquelas práticas sexuais que no direito penal português, isto é, no Código Penal Português, são suscetíveis de integrarem crimes de natureza sexual.

Portanto, os atos sexuais, que nós vamos trabalhar, são todos aqueles que têm relevância jurídico-criminal no direito penal português. Vão ter ocasião de verificar, se depois quiserem investigar isso mais profundamente, que, praticamente, são todos os que podem passar pela vossa imaginação. O que é certo é que, ainda assim, há o respaldo da própria lei que diz que todos eles, verdadeiramente, acabam por enquadrar tipos legais de crime previstos na lei. Aí, temos nós o critério objetivo com o qual vamos lidar.

Há, todavia, uma diferença. Como sabeis, o vosso empenho nestas matérias é sempre conhecido e reconhecido, a lei penal tem uma característica que é de não se poder aplicar retroativamente. Nós vamos avaliar os atos sexuais a partir daquilo que é a atual previsão da lei penal. Só que nós não poderíamos trabalhar retroativamente a partir daí se estivéssemos a fazer uma investigação criminal, mas nós não estamos a fazer uma investigação criminal. Nós estamos a fazer um estudo e, em termos de estudo, vamos usar exatamente o atual critério da atual lei penal e vamos estendê-lo a todo o tempo durante o qual o nosso estudo se desenvolve.

Portanto, vamos avaliar de 1950 até agora, tudo aquilo que serão práticas que nós avaliamos como atos sexuais, a partir daquilo que a atual lei qualifica como atos sexuais. Daqui resulta que nós podemos ter mais do que aquilo que, eventualmente, teríamos antes, mas nunca temos menos do que aquilo teríamos antes, se não procedêssemos a esse tipo de aplicação retroativa do conceito e não, evidentemente, da lei.

Em segundo lugar, e é importante também dar-vos esta noção, quando nós estamos a falar do estudo que se prolonga durante estas décadas, nós vamos confrontarmo-nos, necessariamente, com questões de natureza jurídico-criminal e até de natureza constitucional. Nós vamos, com certeza, trabalhar várias situações de abuso sexual que incorporarão, nomeadamente, na própria lei ao tempo a prática de um crime de natureza sexual, mas que pelo decurso do tempo estará prescrito. Não podemos do ponto de vista jurídico-penal fazer alguma coisa, isso não nos caberia a nós fazer, mas as instituições que trabalham estas matérias, nomeadamente os tribunais, o ministério público etc…, também não podem intervir aí. Esses procedimentos já não podem estar na sua disponibilidade. Ora, isto serve para vos dizer o quê? Nós vamos distinguir, necessariamente, daquilo que nos chegar, o que podemos classificar como denúncias e aquilo que vamos classificar, necessariamente, da parte que nos interessa que são testemunhos. As denúncias não as vamos trabalhar. E tudo o que for uma denúncia ou, simultaneamente, mesmo que não seja uma denúncia, seja a revelação de uma prática de um crime que ainda está dentro do respetivo prazo de investigação e cujo procedimento criminal se mantém, nós vamos imediatamente enviá-lo para as instâncias competentes.

Para esse efeito, nós estabelecemos já uma relação direta com a Procuradoria-Geral da República, nomeadamente com a senhora Procuradora-Geral da República, mas depois também com a direção na Procuradoria-Geral da República do Gabinete da Família, da Criança e do Jovem, e com a respetiva diretora e coordenadora, que vai ser ela própria o elemento de ligação ou o ponto de contato entre a comissão e a Procuradoria-Geral da República.

Por sua vez, um contato semelhante, embora com perspetiva diferente, mais para obtermos uma informação alargada sobre aquilo que faz parte dos arquivos, e portanto do acervo do conhecimento, já estabelecemos também com a Polícia Judiciária, ao nível da sua direção superior.

Portanto, neste aspeto ficais a saber, sem qualquer margem para dúvida, de que investigação não nos cabe a nós, portanto não se trata nunca de investigação criminal. Trata-se de um estudo sobre esta matéria, mas isso não significa que nós desprezemos a importância da investigação criminal e daí os contatos imediatamente estabelecidos com as entidades encarregadas de a fazer sempre que seja caso disso.

Por outro lado, quem é a criança? Falar-vos-ei, muito rapidamente, neste tema porque ele incorpora uma diferença introduzida há poucas décadas, quer na nossa comunidade jurídico-penal, quer há menos tempo na própria comunidade religiosa, e que é, julgo eu, particularmente importante para compreendermos o sentido do estudo que vamos desenvolver. Para nós, a criança não é o menor, isto é, a qualificação de menor que ainda hoje decorre muito na nossa lei desapareceu, e desapareceu sobretudo e definitivamente depois da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, a partir do qual, inequivocamente, nós já tínhamos trabalho sobre isso, mas a convenção veio confirmá-lo, a criança é uma pessoa autónoma e completa desde o nascimento. Autónoma e completa, evidentemente, com a autonomia e completude própria da idade que ela tem. Mas autónoma e completa enquanto pessoa e por isso, desde logo, revestida de um direito fundamental que é o respeito pela sua dignidade enquanto pessoa.

Não estamos, por isso, a tratar de menores que é uma ficção criada pelo Direito, estamos a tratar de crianças que é uma realidade, desde logo antropológica e que depois tem todo o desenvolvimento para as esferas psicossociobiológicas. É dessa criança que nós tratamos, desde o nascimento até aos 18 anos, visto que é assim que a convenção das Nações Unidas a define.

Isto seria uma informação, é uma informação importante, porque ela se expandiu muito naquilo que é hoje, inequivocamente, o reconhecimento dos direitos da criança, como direitos próprios e direitos autónomos daquela pessoa que é a criança. Mas tem uma importância particular para o tema e para o estudo que vamos desenvolver. É que, como sabeis e não vou maçar-vos com isso, para cada crime há sempre um valor que é negado com a prática do crime. Aquilo que, nós juristas, gostamos de designar como um bem jurídico. No homicídio é a vida. Nas ofensas à integridade física é a integridade física. No furto é a propriedade. No dano é o património. Isto é, um crime ofende sempre um bem tutelado pelo Direito. Ofende sempre um valor importante na nossa comunidade.

Ora nos crimes sexuais, até 1982 quando foi aprovado o então novo Código Penal Português, o que se defendia era a honestidade. Mas de uma forma ainda mais difícil de aceitar, foi o que aconteceu a partir de 1982 em que o bem jurídico ou o valor era, e eu vou dizer exatamente a expressão correta que a lei indica para perceberem bem onde quero chegar, os usos e costumes, os valores e os interesses da vida em sociedade e os fundamentos ético-sociais da vida social. Reparem que, reconhecidamente o que estava em jogo, não era a repercussão intima na figura da vítima/criança que estava em jogo, mas mais o reflexo do todo social e naquilo que eram os interesses da vida social, atacada fosse pela honestidade da pessoa ofendida, fosse pela prática de uma sexualidade punida por lei. Ora foi em 1995 que os crimes sexuais passaram a ser crimes contra as pessoas. Isso foi particularmente importante porque, hoje, eles estão divididos em crimes contra a liberdade sexual e crimes contra a autodeterminação sexual e são estes crimes contra a autodeterminação sexual, que são os crimes que se distinguem dos outros porque têm uma diferença no sujeito vítima que é a criança. Isto é, aquele para quem o Direito ainda não tem autodeterminação suficiente para poder livremente decidir da sua vida sexual. É por isso que nós hoje dizemos que o valor ou bem jurídico que está em causa é o livre desenvolvimento da personalidade da criança na esfera sexual ou se quiserem dizer de outra maneira, o normal desenvolvimento da vida sexual.

O que isto tem de interessante é, para já, esta modificação que nos leva a um olhar bastante diferente na condução do estudo que vamos fazer sobre os abusos sexuais de crianças no seio da Igreja Católica Portuguesa. Mas há um outro elemento importante que é a alteração que agora, mais recentemente, foi introduzida no próprio Direito Canónico. Entre nós, primeiro, justamente a partir das diretivas da Congregação para a Doutrina da Fé que nos vem também determinar um particular peso da vítima/criança e da figura da vítima/criança, quando até aí, o que estava em causa era sobretudo a violação do mandamento sexto do decálogo e também os bons costumes, como o próprio Direito Canónico dizia e nessa parte continua a dizer. Mas muito particularmente, de uma forma absolutamente expressiva, depois da Carta Apostólica do Papa Francisco de 2019, na qual a criança surge como grande vítima dos abusos sexuais cometidos no seio da igreja também. Portanto há aqui claramente um encontro evolutivo, muito na linha daquilo que Ana Nunes de Almeida dizia, e que vai inspirar o nosso trabalho e a evolução do nosso trabalho. Estou a maçar-vos com isto porque gostava muito que este campo de trabalho nosso e estudo nosso fosse também muito partilhado pelo vosso interesse. Nós estamos a trabalhar sobre um campo de mutações frequentes, importantes e profundas e daí que estejamos verdadeiramente, presumo eu, porque estamos a trabalhar de valores, estamos a trabalhar sobre crianças, a trabalhar sobre a essencialidade das coisas e da vida. É aqui que eu vos convoco também para uma solidariedade ativa e crítica do vosso trabalho com o nosso trabalho.

Nós podemos, a partir desta perspetiva e a partir daquilo que já foi dito para apresentar o nosso plano de ação, estar a caminhar para introduzir elementos modificadores significativos na relação entre as pessoas e na afirmação das virtudes da condição humana e da possibilidade de luta pela sua melhoria, ainda que tantas vezes exista algumas reservas se suscitem quanto ao caminho que estamos a seguir. Daí, mais uma vez, como veem, foi com profunda sinceridade que eu agradeci a vossa presença que aposta significativamente na dimensão ética que sempre pauta a vossa ação como jornalistas. Muito Obrigado.

 

Daniel Sampaio

Eu queria falar um pouco sobre o papel da comunicação social, começando por dizer que este estudo que já foi anunciado pelos meus colegas, não terá possibilidade de existir sem a vossa colaboração. Darei depois, no final da minha intervenção, dois exemplos concretos do papel dos jornalistas em estudos deste tipo.

A comunicação é a arte de ser entendido. Portanto, nós queremos comunicar com as vítimas dos abusos sexuais, queremos que entendam o nosso pedido, mas queremos sobretudo captar aquilo que se passou no silêncio durante tantos anos. Os estudos dos abusos sexuais mostram que quando eles são realizados na infância ou no início da adolescência, muitas vezes decorrem dezenas de anos até que esses abusos sejam revelados. Portanto, nós temos conhecimento, por outros estudos e por outras realidades que não a nossa, de que muitas vezes o silêncio impera, mas impera um silêncio associado a um profundo sofrimento do ponto de vista psicológico. É um profundo sofrimento também, sobretudo, na esfera afetiva-sexual.

As pessoas vítimas de abuso têm consequências a nível do seu relacionamento interpessoal muito graves e arrastadas ao longo de anos e têm seguramente, muitas vezes, também dificuldades na sua vida afetiva-sexual. Queremos portanto ouvir os seus testemunhos, tentar estudar o que se passou, desde os anos cinquenta até agora, e dar voz ao silêncio. É esse o nosso lema. Eu diria que o mais importante nesta comunicação é ouvir o que não foi dito, porque de fato há muita coisa que não foi dita sobre este assunto. O silêncio imperou durante anos nas vítimas destes abusos.

É muito importante perceber o vosso papel. Não é possível que este estudo se realize sem que a vossa colaboração se mantenha, como já disse, e quando digo que se mantenha, ela tem de ser reiterada. Não basta agora, como esperamos quando divulgam o nosso site, o nosso telefone, mas têm que manter, na minha opinião, um acompanhamento desta situação. Comprometemo-nos a dar-vos conta dos trabalhos, de tempos a tempos, como já foi dito, mas a vossa atenção sobre este assunto é, absolutamente, primordial. É provável que nos próximos dias haja alguns testemunhos, logo, mas depois também ocorre, muitas vezes, durante um tempo, há silêncio.

É preciso que este assunto seja trazido para a comunicação social para que as pessoas digam: ainda não testemunhei, já algumas pessoas testemunharam, agora é a minha altura de testemunhar. Ora é fundamental que vocês mantenham, na vossa área, nos jornais, na televisão, nas rádios gerais e locais, esta voz e possam continuar a dar voz ao silêncio. Portanto, isto que vai acontecer hoje e nos próximos dias, com as vossas notícias, vai ter que ser reiterado, várias vezes, para que possamos ter a certeza que uma pessoa que, durante muito tempo, ficou em silêncio e que não teve coragem ainda de testemunhar porque é muito difícil de testemunhar: Mexe profundamente, muitas vezes, com toda uma vida de uma pessoa. Nós temos que sentir que essas pessoas são acarinhadas pela comunicação social e que a comunicação social está interessada também em estudar este assunto.

Queria dar-vos dois exemplos concretos do papel decisivo que teve a comunicação social nesta área. Chamo a atenção para o filme «O caso Spotlight», que é um filme de 2015, que é facilmente de encontrar na internet, já foi exibido em Portugal, que é um exemplo do jornalismo de investigação. O «Boston Globe», que era um jornal de Boston, decidiu investigar a questão dos abusos sexuais na Arquidiocese de Boston. Encontrou inúmeras resistências. Encontrou uma cortina de silêncio. Foi muito difícil prosseguir esta investigação. Houve muita resistência. Resistência não só da Igreja, mas resistência de entidades que estavam, de alguma forma, a recear que este assunto fosse trazido. Os jornalistas que fizeram esta investigação, fizeram uma investigação tão persistente e tão brilhante, que lhes foi atribuído o prémio «Pulitzer». Pode ser que algum de vós tenha, não o prémio «Pulitzer», mas o prémio da imprensa, se de fato, como eu espero, haja jornalismo de investigação que tanta falta faz neste caso.

Então o que é que estes jornalistas de Boston descobriram? Descobriram abusos sexuais no seio da Igreja Católica de Boston. Descobriram, por exemplo, que um padre era responsável pelo abuso de 130 crianças. Um único sacerdote e que havia uma cortina de silêncio à volta desta situação. O principal responsável da arquidiocese de Boston, o cardeal Bernard Law, tinha conhecimento desta situação mas, como acontece muitas vezes, não deixava prosseguir a investigação e procurava que ela não fosse para à frente.

Curiosamente, este cardeal resignou em 2002, devido há pressão que foi exercida sobre ele e sobre a sua falta de ação nesta área. Mas curiosamente, também em 2004, foi transferido para Roma onde passou a ter um papel relevante, em Roma, num mundo completamente diferente, num país completamente diferente.

Esta situação foi uma situação que existiu porque houve jornalistas que tiveram a coragem de investigar e ir até ao fim. Não desistiram perante as pressões.

Muito mais recentemente, o jornal espanhol «El País» fez por si próprio uma investigação também sobre os abusos sexuais na Igreja espanhola. E fê-lo, através de um email, abusos@elpais.es. Foi muito persistente na sua investigação. Foi sempre publicando notícias à medida que a investigação ia decorrendo. Então conseguiu identificar 1237 vítimas que atingiram 251 membros do clero espanhol. Este relatório do jornal foi já entregue no Vaticano e está agora a seguir os tramites da investigação no âmbito da Igreja.

O ponto importante é que o «El Pais» não foi acompanhado por outros órgãos de comunicação em Espanha. Parece ter havido um receio que outros órgãos de comunicação acompanhassem o «El País». Mas o que interessa aqui é que de fato o jornal caminhou sozinho, caminhou com enorme persistência, com muita coragem e conseguiu levar a cabo esta investigação.

Portanto, eu renovo o apelo para que os senhores jornalistas aqui presentes e os vossos colegas possam manter esta informação atualizada e possam, se acontecer, também poderem fazer investigação jornalística ligada a este tema que me parece, absolutamente, crucial para termos êxito neste estudo. Muito Obrigado.

 

Filipa Tavares

O meu nome é Filipa Tavares. O meu percurso profissional foi marcado pelo trabalho, enquanto assistente social no Centro Dr. João dos Santos «Casa da Praia», na área da saúde mental-infantil. O âmbito da minha intervenção passou, sobretudo, pelo acompanhamento de famílias de crianças com problemáticas do foro emocional e comportamental, mas também pelo trabalho com a comunidade escolar na rede de suporte social e familiar. Fiz parte como membro da equipa multidisciplinar de vários projetos de investigação-ação na área da infância, educação e saúde.

Enquanto elemento desta comissão independente cabe-me, agora aqui, falar sobre o atendimento às vítimas e a forma como o poderão fazer para dar o seu testemunho. Todas as pessoas, qualquer que seja a sua idade hoje, que tenham sido vítimas de abusos sexuais por parte de elementos da Igreja Católica, leigos, pessoas que trabalhavam em organizações, escolas, instituições e iniciativas tuteladas pela Igreja Católica podem testemunhar, fazendo ouvir a sua voz da seguinte forma: Ir ao nosso site darvozaosilencio.org e preencher o inquérito online, fazer uma chamada telefónica para o número 917110000. Esta linha telefónica funcionará todos os dias úteis das 10h00 às 20h00 a partir de amanhã. Para pessoas que não consigam ou não queiram preencher o questionário online e que precisem da nossa ajuda para o esclarecimento de alguma dúvida no âmbito e no propósito deste estudo.

Esta não é uma linha SOS, não é uma linha de apoio clinico ou psicológico. Esta linha é destinada à receção de testemunhos de pessoas que não queiram ou não consigam fazê-lo online. Poderá ainda enviar um email para geral@darvozaosilencio.org. Escrever-nos por correio tradicional para o apartado que será divulgado o endereço no site da comissão nos próximos dias.

Para além de testemunhos escritos, podem também fazer-nos chegar documentos que possam ser úteis para este estudo.

Por último, poderá testemunhar através de uma entrevista presencial ou via Zoom mediante marcação prévia. Todos os testemunhos são anónimos e confidenciais. Só serão utilizados em contexto, apenas deste estudo.

Estas cinco formas de atendimento estão dirigidas a todas as vítimas, assim como a todas as pessoas que queiram testemunhar situações de abusos sexuais a crianças por parte de elementos da Igreja Católica. Pretendemos dar voz ao silêncio, convidando a pessoa a testemunhar acontecimentos. Acolhendo e respeitando o que quiser ou puder contar. Deixando o silêncio, ajudaremos outras pessoas a dar o primeiro passo.

A voz de cada pessoa, de cada vítima, é única e conta. Obrigado.

 

Catarina Vasconcelos

Eu chamo-me Catarina Vasconcelos e fui convidada pelo doutor Pedro Strecht para fazer parte desta comissão.

Eu estou nesta comissão enquanto membro da sociedade civil. Os meus colegas apresentam as competências para tratar do estudo dos abusos da Igreja Católica contra crianças. Da minha parte, trago questões, dúvidas, espanto e revolta perante estes casos.

Eu nasci depois do 25 de abril de 1974. Cresci e tornei-me adulta a saber que a liberdade é a coisa mais importante da vida porque sem ela todos os outros direitos não existem, como é o caso do direito à infância. Algo que estes abusos retiraram a várias pessoas.

Como é também um direito a ser-se visível e não ter de viver na solidão do silêncio e da invisibilidade. É enquanto cidadã da sociedade portuguesa que integro esta comissão, esperando que as muitas questões que tenho possam contribuir para que este estudo dê voz a todas as pessoas que passaram por questões de abuso.

 

Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa – Perguntas e Respostas

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