Cinema: O Evangelho segundo um homem que desejava ser crente

Pier Paolo Pasolini assina um filme que é a sugestão de Margarida Ataíde para a Semana Santa

Não se trata de uma estreia desta semana, mas de há quase cinco décadas atrás. “O Evangelho Segundo São Mateus” do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975) está, desde há muito, disponível em DVD e é, sem sombra de dúvida, o filme que convido a (re)descobrir nesta Semana Santa! 

Cronologicamente próximo (1964) mas intimamente distante das idílicas super-produções bíblicas da época, com Hollywood a engrandecer-se em nome de Deus e da Palavra, desdobrando-se em décors aqui, deleitando-nos os olhos ali, com momentos ora de um dramatismo pungente ora de uma aleria delicodoce, surge este mediterrânico e despojado Jesus de Pasolini. Sem artistas de carreira nem efeitos visuais.

Despojado, num registo escorreito, aparentemente minimal, porém, carregado de um simbolismo fortíssimo, plano a plano, instante a instante, sequência a sequência. A leitura dos rostos profundíssima, o movimento dos corpos harmoniosamente coreografado, cada linha de texto criteriosamente escolhida.

Não se enganem os olhos nem, de novo, a cronologia, com o que parece próximo do registo documental, com o verismo do neo-realismo italiano, tão expressivo no cinema: pois a verve cinematográfica de Pasolini nada tem a ver com este movimento seu contemporâneo e não se encontra em todo a sua riquíssima e muito peculiar imagética, nada igual.

O Jesus de Pasolini é, definitivamente, Emanuel, Deus entre nós, um de nós: o Jesus que conhecemos pelos rostos humanos que interpela; o Jesus divino, Mensageiro da Boa Nova que aprende a sorrir como um comum mortal; o Jesus a preto e branco, carismático, radical; o Jesus entre múltiplos registos musicais, que a todos convida a sentarem-se à mesa do Pai; o Jesus que suscita amor incondicional e o ódio mais profundo, a coragem e o medo, a certeza e a dúvida, a harmonia e a perturbação… um Deus que nos toca, nos acalma e nos comove mas incomoda e desinquieta, desacomoda, sem cessar!

Impressionante, sem dúvida a forma como Pasolini nos convida a descobrir este novo Jesus e com Ele o nosso verdadeiro Deus: o Deus do silêncio e da intimidade, O que está para além do ruído e da espetacularidade com que dia-a-dia nos atabafamos.

E saborosamente curioso que este Jesus, este Deus, nos chegue por um cineasta “não crente com o desejo de o ser”, como o próprio Pier Paolo Pasolini, afirmou!

Margarida Ataíde

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