Final do séc. XIX. Numa região deserta e fustigada pelo vento, um velho homem habita uma casa decrépita com a única filha e um cavalo agastado.
Dia após dia, pai e filha vivem subjugados ao limiar de uma condição muito menos que humana, assegurando a rotina, enfrentando a adversidade, garantindo a sobrevivência. Na contingência, nenhum impacto aparente têm a visita ocasional de um vizinho longínquo e as suas interpelações apocalípticas, nem o acolhimento às dádivas surpreendentes da errância de um grupo de ciganos que por ali passa.
Aqui, a sobrevivência material parece ter há muito esquecido a possibilidade de plenitude humana. No entanto, noite após noite, é na janela que o velho pai perde o olhar, enquanto a filha adormece de olhar fixo no teto.
Lá fora, no estábulo, o cavalo emagrecido poderá ser o animal castigado com crueldade e desespero pelo seu dono. Aquele por quem o filósofo Friedrich Nietzsche revelaria imensa compaixão, pouco antes de sucumbir a presumível demência e, mais tarde, à morte.
Bela Tarr, cineasta húngaro que começou por encarar a carreira cinematográfica como um hobby, a intercalar uma causa maior nos meandros da filosofia, cedo se rendeu à inevitabilidade de entrosar ambas. Desse entretecimento, resultam todos os seus filmes, desde o seu primeiro “Családi Tüzfészek” (Ninho Familiar) – um olhar maduro sobre a realidade política e social da década de setenta na Hungria, aplicada à vivência familiar, realizado aos apenas vinte e dois anos de idade.
Hoje, “O Cavalo de Turim” é quase inexplicavelmente o primeiro filme de Tarr a estrear em Portugal. Mais que um retrato ou olhar, uma difícil e profundíssima interrogação sobre a condição humana, seus limites e possibilidades. Totalmente filmado a preto e branco, parcos e exatos são os diálogos e a narração que pontuam um estilo fílmico simultaneamente magnífico, cru e belo. Seis dias de luz e escuridão, de tempestade e bonança, que parecem evocar a Criação e o Apocalipse, o princípio e o fim da existência. Esteja o mundo ou não, para lá daquela paisagem, em mutação.
Margarida Ataíde