CIBERCULTURA – Que tipo de linguagem teológica encontramos em Francisco?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Esta semana celebrámos uma década do pontificado de Francisco. Na eucaristia a 13 de março, o sacerdote referia na homilia como o papa Francisco permeou o seu pontificado de ideias muito simples, mas com significado profundo. Por isso, foi com algum espanto que ao ler uma entrevista; ao La Croix Internacional feita ao Cardeal alemão Gerhard Müller, percebi haver pessoas do clero com a ideia de que Francisco se afastou da sua missão como papa. Para Müller, — «A missão de um papa — como o princípio e visível centro da unidade da Igreja através da fé em Cristo, a Palavra de Deus feita carne, como lemos na Constituição Lumen Gentium do Vaticano II — é, por isso, mais ao nível teológico do que sociológico ou nível social.» O Cardeal Müller refere que o papa fala demais sobre assuntos sociais e demasiado pouco sobre assuntos teológicos “transcendentais”. Em que século vive este Cardeal?

Foto de Nacho Arteaga em Unsplash

Uma vez estava a fazer uma comunicação em ética ecológica e referi um termo que havia introduzido num artigo; para a revista Brotéria em 2008 sobre um novo relacionamento entre pessoa e natureza centrado na sua comunhão, um communiocentrismo. No final, uma irmã teóloga disse-me que não estava muito de acordo com o modo como eu havia usado a palavra comunhão, pois, essa está mais associada à eucaristia, ao que eu respondi — «Talvez o problema não seja o modo como usei a palavra, mas o modo como os teólogos a entendem.» — Mais tarde apercebi-me que nem todos os teólogos pensavam como aquela irmã. Ao ler os escritos de Thomas Berry, padre e teólogo passionista, dei-me conta que não estava sozinho. Pois, Berry havia ampliado a palavra comunhão a uma dimensão para além da eucaristia.

Os assuntos “transcendentais” separados da vida concreta das pessoas produzem discursos vazios que não atingem o coração de quem precisa de conversão. Quando estava em Cabo Verde numa missão jovem, um seminarista ao saber que estava a estudar Engenharia Mecânica dizia-me a brincar — «Devias vir para cá. Concertamos primeiro a cabeça das pessoas e depois rezamos com elas.» — O que entendi daquela frase foi que o seminarista estaria a dizer-me que a dimensão humana é distinta da divina, mas que a sua unidade é fundamental. Uma não pode existir sem a outra. Se quisermos que alguém acolha o evangelho no coração, precisamos de cuidar primeiro do corpo e da mente. O que o papa Francisco tem feito nestes 10 anos de pontificado consiste em unir a dimensão física à espiritual para experimentarmos a presença de Deus em tudo e em todos. Por que razão custa tanto a teólogos como Müller darem-se conta disso? Mas as críticas do Cardeal, na verdade, não têm fundamento.

Em junho de 2022, o papa Francisco dirigiu-se aos membros do Jornal La Scuola Cattolica por ocasição do seu 150º aniversário e disse que — «A Teologia é serviço à fé vivente da Igreja.» — onde salientaria a palavra “serviço”. Mas o papa vai mais longe ao dizer que — «a comunidade precisa do trabalho daqueles que tentam interpretar a fé, traduzi-la e retraduzi-la, de modo a torná-la compreensível e poder expô-la em novas palavras: um trabalho que precisa de ser levado vezes e vezes sem conta, em cada geração. A Igreja encoraja e suporta este compromisso, o esforço de redefinir o conteúdo da fé em cada época, no dinamismo da tradição. E essa é a razão da linguagem teológica ter de ser sempre viva, dinâmica; não pode ajudar senão a evoluir e deve ter o cuidado de se tornar compreensível. Por vezes, os sermões ou catequeses que escutamos são maioritariamente feitas de moralismo, não suficientemente “teológicos”, isto é, não suficientemente capazes de falar-nos de Deus e responder às questões sobre o significado que acompanha a vida das pessoas, e que nós, muitas vezes, não temos a coragem de formular abertamente.» — Se a teologia não se aproxima da vida das pessoas, não toca as vidas que pretende transformar e pode tornar-se um entrave à abertura do coração a Deus.

Müller é apenas o exemplo de muitos cardeais e bispos que se afastam do estilo do papa Francisco com a desculpa de que falar de questões sociais não é um assunto que um papa deva tratar, mas devia antes focar a sua atenção na — «transcedental, dimensão divina que deve dar ênfase e elaborar.» — E um dos assuntos sociais referido por Müller é a Ecologia. No trabalho que tenho feito no âmbito da Plataforma de Acção Laudato Si’, entre os meus pares, tem surgido a partilha de que muitos bispos não leram ainda sequer esta Encíclica Laudato Si’ que aproximou num diálogo inédito, e sem precedentes, os pensamentos da Igreja e do mundo secular sobre Ecologia. Esta Encíclica construiu e constrói ainda diálogos culturais onde antes não existiam. Mas, como diz Müller (e que será a visão de outros)- «a coisa mais importante para a Igreja é proclamar a vontade universal do Evangelho de Deus para libertar todas as pessoas do pecado e da morte.» — Palavras que a mim, cristão convicto, e perdoem-me a franqueza, dizem-me pouco por estarem num registo que pertence ao século passado. É tudo uma questão de linguagem.

Andrea Riccardi, fundador da comunidade de Santo Egídio, recordava que o papa Francisco começou o seu pontificado com a Evangelium Gaudium, onde convida a sermos, diz Riccardi — «uma Igreja que sai à rua, que dialoga com todos e comunica o Evangelho. Um sonho antigo, que remonta ao Concílio, à Ecclesiam suam de Paulo VI: que consiste em “não separar mais a própria salvação da busca pela salvação dos outros (…).» — A Igreja sai à rua para se aproximar de cada pessoa, de modo a que essa se sinta livre e desejosa de se aproximar de Deus. Uma experiência de Amor que não passa. Um experiência de Amor misericordioso. A salvação que Jesus veio trazer foi a de reconcicliar os relacionamentos quebrados pela falta de amor que permeia o mundo.

Sei que não sou teólogo, nem tenho qualquer competência para fazer teologia. Mas alguém dizer que o papa fala palavras simples, tem a capacidade de chegar a todas as pessoas, não só teólogos e intelectuais, e depois diz — «mas é também necessário ser capaz de responder ao nosso mundo moderno» — sinceramente, não sei o que cardeal Müller quer dizer. Pois, não é com palavras simples e compreensíveis que a teologia chega a todas as pessoas, intelectuais ou não?

Cardeais e bispos são pessoas que dão a sua vida a Deus, e por amor a Deus que encontram em cada pessoa que se cruza no seu caminho. Conheço alguns que emanam uma humildade e sabedoria notáveis, e com ideias diferentes daqueles que partilham da opinião deste Cardeal Müller. Na Fratelli Tutti, o papa Francisco procurou preencher as lacunas deste mundo, fendas criadas pelas tensões da globalização, com uma tensão orientada mais para a fraternidade. No século XXI, dominado pela vida ciberespacial, onde a virtualidade nos afasta da realidade, qual a vontade universal do Evangelho de Deus? Libertar as pessoas do pecado e da morte? Ou aproximar as pessoas de Deus que é vida? Sentem a diferença na linguagem? Talvez seja isso que Deus quer, ao inspirar uma linguagem de amor ao papa Francisco nestes 10 anos de pontificado.


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