CIBERCULTURA – O erro na tradução da palavra fé

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Num artigo; de opinião, o filósofo Domingos Faria procurou responder à questão — Jesus salva-nos de quê? — Vale a pena ler o percurso que faz, mas em síntese: Jesus salva-nos do pecado por nos inspirar a uma vida moralmente boa. Porém, e antes de pecarmos, Jesus salva-nos de quê? No livro de Ratzinger “No princípio Deus criou o Céu e a Terra” (3a Ed., Lucerna, 2020), e no âmbito do estudo da relação entre ciência e religião, aprendi que Jesus salva-nos de um mundo imerso em relações danificadas. Ambas as respostas acentuam aspectos de conduta pessoal e comunitária que considero independentes da crença. Isto é, não preciso de acreditar em Jesus para ter uma conduta correcta, desde que procure ser moralmente bom, ainda que siga o seu exemplo e promova relacionamentos saudáveis e respeitosos. Que razões temos que dêem sentido a uma fé religiosa no mundo cibercultural de hoje?

Imagem de Ronald Sandino em Pixabay

No diálogo que pude ter com pessoas sem fé religiosa, uma boa parte tem a ideia de que as pessoas com fé acreditam sem ver. Para eles, “ver” não se restringe aos olhos da cara, mas inclui os olhos da razão. Por isso, consideram-se pessoas sem fé religiosa por verem com os olhos da razão a realidade à sua volta e não terem motivos para acreditar em Deus. Porém, segundo; o teólogo e historiador John Alonzo Dick, essa experiência de noção de fé provém de um erro de tradução muito antigo.

A palavra fé teve o seu significado original na palavra grega pistis que significa confiança, compromisso e envolvimento pessoal. Ou seja, à fé associava-se uma vivência activa inspirada na vida de Jesus, uma ortopraxia. Porém, quando S. Jerónimo traduziu a Bíblia para o Latim, escolheu para a palavra pistis a palavra fides que significa crença em vez de confido, transformando “fé” numa questão de concordância intelectual.

O sentido de fé da ortopraxia (conduta correcta) passou a ser ortodoxia (crença correcta). É deste erro de tradução que provém a impressão distorcida que se propagou ao longo da história na experiência católica de fé religiosa como um ambiente que pretende controlar o pensamento, receando aqueles que ousam questionar esse pensamento. Na passagem do século IV para o V, a concordância dos fiéis começou a ser obrigatória e com a invenção de Santo Agostinho do “pecado original”, a Igreja sentou Deus num trono celeste de onde Ele pronuncia o Seu juízo sobre cada ser humano. E com a teoria de Anselmo de Cantuária sobre a visão de satisfação na expiação, a crucificação de Jesus entendia-se como uma exigência de Deus que estava muito ofendido com o pecado humano. Não é esta a visão que Jesus dá de Deus e que encontramos nos Evangelhos e Cartas.

Se ser cristão significa ser de Cristo, e se realmente acreditamos que Jesus é Filho de Deus, então, a primeira carta de S. João (4, 15) expressa como na experiência cristã — «Quem confessar que Jesus Cristo é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus.» — Ou seja, Deus está connosco e faz-Se presente no meio de nós pelo amor recíproco (Mt 18, 20). Não está num trono ou se manifesta como supremo juiz, mas revela-Se como Alguém que está mais próximo de nós do que nós estamos de nós próprios. Esta proximidade oferece uma oportunidade da nossa fé religiosa levar-nos mais à experiência religiosa pelo aumento da nossa sensibilidade à presença divina, do que pela exigência de crer nas “coisas certas”.

Um dos teólogos mais controversos pela insistência que fez desde os anos 1990 pela proximidade da vivência de Deus à realidade da cultura em cada época é Michael Morwood, chamado diversas vezes à atenção pela Congregação para a Doutrina da Fé por erros nos seus livros. Erros que surgiam do inconformismo à prática do assentimento inquestionável que hoje sabemos afastar as pessoas da procura incessante e profunda pela presença de Deus em tudo e em todos.

No seu livro “Chegou o Tempo: Desafios à Doutrina da Fé”, Morwood diz que — «Chegou o tempo de quebrar com a visão do mundo de há dois mil anos e a suas noções de um Senhor Deus Supremo que viveu nos céus e que desconectou o acesso a ‘Si” por causa de um suposto pecado do primeiro humano.» — O mundo cibercultural que habitamos pelo tempo que muitos passam a olhar para o seu ecrã quer saber cada vez menos deste medo incutido pela condenação ao tormento do inferno na linguagem de muitos quando testemunham a sua fé religiosa por via da “crença correcta”, em vez da “conduta correcta” inspirada em Jesus que não fazia acepção de pessoas, acolhendo o pobre e pecador para o transformar, por amor, a partir do seu interior.


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