Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
O que é a realidade? É o que podemos experimentar com os nossos sentidos ou começa a tornar-se aquilo que a informação consumida realiza dentro de nós? Romano Guardini escreveu nas suas Cartas a partir do Lago Como que — «o anseio pela natureza intocada é, em si mesmo, um produto da cultura com origem na existência supra-artificializada.» — Creio que se referia a um desejo interior de um mundo sem ”artificialidades”. Um mundo que precisa da sabedoria do coração.
«A sabedoria do coração é a virtude que nos permite combinar o todo com as partes, as decisões com as consequências, as grandezas com as fragilidades, o passado com o futuro, o eu com o nós.» — escreveu o Papa Francisco na sua Mensagem para o 58º Dia Mundial das Comunicações (58ºDMC) onde retoma o tema da Inteligência Artificial. Já na Mensagem para o Dial Mundial da Paz, o Papa escrevia que — «o mundo não precisa realmente que as novas tecnologias contribuam para o iníquo desenvolvimento do mercado e do comércio das armas, promovendo a loucura da guerra. Ao fazê-lo, não só a inteligência, mas também o próprio coração do homem, correrá o risco de se tornar cada vez mais «artificial». — Artificializado, o nosso coração pode ficar frio como o metal que suporta a máquina, ameaçando a visão que temos de nós próprios. Não é a primeira vez que me cruzo com esta percepção.
No livro que dedica à ”Grande Invenção — A linguagem como tecnologia. Das pinturas rupestres ao GPT-3” (não traduzido ainda para português), o franciscano Paolo Benanti reflecte a um dado momento sobre a revolução da infosfera habitada por inforgues. Os inforgues são organismos informacionais interconectados connosco que estão a alterar a compreensão que temos da realidade. Por exemplo, a versão que muitos conhecem de inforgues são os bots das redes sociais. Com eles partilhamos cada vez mais um ambiente feito de informação (infosfera). E a compreensão da realidade que se transforma ao interagirmos com estes agentes informacionais possui uma subtil relação com a compreensão que temos sobre nós próprios.
A transição entre ambientes experienciada nos últimos anos, onde a atenção das pessoas se dirige mais para os ambientes digitais, levará a que deixemos de considerar a infosfera como um espaço de informação, tornando-se antes sinónimo de realidade. Mas como afirma o Papa Francisco na mensagem do 58ºDMC — « A informação não pode ser separada da relação existencial: implica o corpo, o situar-se na realidade; pede para correlacionar não apenas dados, mas experiências; exige o rosto, o olhar, a compaixão e ainda a partilha.» — E mais à frente salienta a importância do uso das ferramentas de Inteligência Artificial para devolver em cada pessoa a capacidade crítica da própria comunicação. Este ponto é crucial e espelha o tipo de relação que muitas pessoas demonstra ter com a informação. Partilhamos tudo, sempre e em todo o lado.
Alguma vez aconteceu teres partilhado algo num grupo WhatsApp e, quase logo de seguida, aqueles que habitualmente “metem coisas” enchem o mural com as “suas coisas” sem dar qualquer espaço às restantes pessoas do grupo para conhecerem o que alguém como tu (que raramente partilha) quis partilhar? Temo que muitas pessoas tenham perdido a capacidade crítica sobre a sua própria comunicação porque a realidade infosférica em que vivem domina os seus impulsos, a sua pessoa e a sua realidade. É o que o filósofo italiano Luciano Floridi refere sobre as Tecologias de Informação e Comunicação (TIC) — não estão a reconstruir o mundo, mas a re-ontologizá-lo. Isto é, estão a mudar a natureza da nossa existência (ontologia).
As pessoas que comunicam tudo, sempre e em todo o lado tornaram-se alimento para os algoritmos. Os inforgues que se alimentam da ausência da capacidade crítica humana, levam muitos a sobre-valorizar os meios que lhes permitem informar, sem realmente comunicar. O Papa Francisco convida na mensagem do 58ºDMC a nutrir o coração de liberdade, sem a qual esse mesmo coração não consegue crescer em sabedoria.
O Papa termina dizendo que — «Esta sabedoria amadurece valorizando o tempo e abraçando as vulnerabilidades. Cresce na aliança entre as gerações, entre quem tem memória do passado e quem tem visão de futuro.» — Algo que exige presença real e não virtual. E a procura por esta sabedoria que des-artificializa o teu coração passa através do coração puro. Na sua ”Arte de purificar o coração” (não traduzido ainda para português), o Cardeal Špidlík dizia que o modo como no Oriente se relacionam com a realidade é diferente do modo Ocidental. Nós, ocidentais, concentramos a nossa acção na relação entre causa e efeito, mas os orientais perguntam-se antes diante daquilo que acontece — ”O que significa aquilo que observamos? De qual realidade escondida pode ser símbolo?” — Neste sentido: que significado tem o bater do nosso coração diante da possibilidade de espiritualmente se artificializar? Eu diria: muito. Veremos.
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