CIBERCULTURA – Atentos ao Coração

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

O coração é mais do que um órgão que bombeia o sangue pelo corpo. É uma experiência física do tempo. Quando caminhava pela floresta, a subida era íngreme e exigia algum esforço físico. A um dado momento existe um pequeno patamar onde parei para recuperar o fôlego. O silêncio era profundo. E foi ali que comecei a ouvir — tum…tum…tum…. O coração batia fazendo-me tocar o tempo sequencial. Estar atento ao coração na actual cibercultura é gerar tempo oportuno de contactividade com a realidade física, tomando maior consciência da experiência transformativa do tempo profundo.

Imagem do DALL-E com prompt de Miguel Panão

Num mundo em que a virtualidade começa a influir na informação que entra pelos olhos, cada vez mais se espera tomarmos contacto com o que vemos, mas não existe. Ao contrário da realidade virtual ou aumentada, o bater do coração não se vê, mas existe. E quando pensamos na atenção ao coração, na prática, é natural sentirmo-nos gratos pelo bater físico, mas parece-nos que existe algo que está para além daquele ritmo. Quando Jesus disse — «Felizes os puros de coração porque verão a Deus.» (Mt 5, 8) — penso em tantas pessoas (crentes e não-crentes) que querem ver Deus. Quantos são aqueles que se dão conta de como ver Deus depende da atenção que dão ao seu coração? Ainda vamos a tempo de mudar e alguém que viveu há 700 anos pode-nos ajudar.

Nicéforo, um monge de origem italiana do século XIII, escreveu sobre uma motivação concreta de prestar atenção ao coração. Na “Pequena Filocalia” (Paulinas, 2017), Nicéforo reconhece haver muitas interpretações sobre a acto daconcentração. Segundo ele, existem santos que falam da concentração com custódia do coração, ou sobriedade vigilante, entre outros nomes. Dar nomes diferentes não significa referirem-se a coisas diferentes. Nicéforo dá o exemplo do pão. Podemos falar de fatias de pão, nacos de pão, mas tudo diz respeito a uma só coisa: pão. O mesmo acontece com a concentração. E a perspectiva que ele dá da concentração tem muito a ver com o tempo de conversão que vivemos. As características da concentração parecem-me ir muito para além daquilo a que estamos habituados. — «Dela se pode dizer que é signo do verdadeiro arrependimento; a restauração da alma; o menosprezo do mundo e o regresso a Deus; a recusa do pecado e a emergência da virtude; a indubitável certeza do perdão dos pecados e o introito (antífona) da contemplação (ou antes, o seu fundamento).» — escrevia Nicéforo. E eu que pensava que a grande característica da concentração era estar focado em alguma coisa. Mas na visão de Nicéforo, a concentração é a serenidade da mente que se manifesta através de uma transformação do nosso interior a partir da atenção que prestamos ao nosso coração, purificando-o. Mas como?

Há 700 anos, Nicéforo descreve o método e vale a pena ler na íntegra para nos apercebermos dos tesouros escondido na sabedoria humana milenar,

«Sabes perfeitamente que o ar que respiramos, uma vez inalado, sai pelas nossas narinas sob a forma de sopro. Ora bem, ao respirá-lo respiramo-lo tendo em vista o coração. Efectivamente, o coração é a fonte da vida e do calor do corpo. O coração chama, pois, a si o sopro, a fim de, através da expiração, exalar o seu próprio calor e manter para si mesmo uma boa temperatura. O autor — ou antes, o executante de uma tal ordem — são os pulmões. O Criador criou-os capazes de se expandirem e de se comprimirem, como se fossem um fole, fazendo com que o ar entre e saia. Deste modo o coração, ao chamar a si o ar frio pela aspiração, e ao expelir o ar quente, está a cumprir, sem nunca a transgredir, a ordem para que foi estabelecido, e dominar desse modo a natureza do vivente.»

Não poderia haver descrição mais prática de como prestar atenção ao coração usando a respiração.

O mundo anda fascinado com as técnicas de mindfulness que usam a respiração para atingir um bem-estar físico, emocional e intelectual, diminuir o stress, etc., mas a originalidade da prática de concentração usando a respiração que encontramos há muito presente na vida monástica antiga, é que o seu propósito não está na respiração em si, mas na intenção de chegar ao coração e prestar-lhe atenção.

O bater do coração é somente uma manifestação física daquilo que por “coração” realmente queremos dizer: a totalidade da vida interior. Conservar, como Maria, qualquer coisa no coração, significa que jamais a esqueceremos. No coração está a totalidade do nosso ser. E nessa totalidade, coração e alma são um só. Andamos a correr atrás do tempo por fragmentarmos a vida em pedaços associados às tarefas que temos de cumprir. Mas se em vez de cumprir uma tarefa, escutássemos melhor o bater do coração, estando mais focados em fazer bem cada tarefa por amor, aproximar-nos-íamos da pureza de coração capaz de ver o coração dos outros como aberto. E como dizia o Cardeal Špidlík — «dado que o coração é purificado sobretudo pelo amor, só quem ama o outro o compreende.» Num mundo onde as balas ainda param o bater de muitos corações, quem sabe quantos actos de amor provenientes de uma maior atenção ao coração, não possam gerar um efeito em cadeia que impeça o disparo de ao menos uma bala. Não precisamos de testemunhar o final de uma história assim. Basta acreditarmos que cada acto de amor de um coração atento começa uma história interminável de renovação interior, e exterior, de um mundo que tanto precisa de amor.


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