CEPAC: presença Espiritana junto dos imigrantes

O Luís (nome fictício) é um jovem de 26 anos, natural de um dos novos países de expressão portuguesa. Vive há oito anos em Portugal e há três meses tem a rua como tecto, sendo a sua cama um conjunto de cartões que costuma estender debaixo de um vão de uma escada, numa determinada rua, desta cidade de Lisboa. O Luís é o mais velho de sete irmãos e, por isso, sentiu que poderia ajudar a sua mãe e os seus irmãos imigrando. Sempre ouviu dizer que “lá em Lisboa” as pessoas ganham bem e sempre conseguem mandar um “dinheirito”, que vai ajudar a família a ter uma vida melhor. Pensou-o, e porque é um rapaz valente, viaja rumo a Portugal, nunca pensando, nos seus 19 anos da altura, que a vida afinal tem contornos que ninguém pode prever. Na sua cabeça tinha apenas os seus irmãos e a sua mãe que iriam, com toda a certeza, ter, a partir daquela altura dias melhores. Chegado a Lisboa, facilmente arranjou emprego, nas obras. Altura de grandes construções em Portugal, a mão de obra era muito necessária, e o Luís, rapaz lutador e corajoso, soube deitar mãos ao trabalho duro. As motivações eram fortes e, afinal, que alegria não iria ter a sua mãe quando recebesse, lá na África, o primeiro fruto das sua economias! Rapaz de traços franzinos, mas de coração grande, não muito letrado, mas cheio de sabedoria e, sobretudo, com capacidade de vencer na vida! Mesmo sem ajuda de ninguém, trabalhou, desde logo a sua situação legal e, após pouco tempo de permanência no nosso país, ei-lo com “autorização de residência temporária”. Há tantos anos sem ver os seus, achou ser a ocasião de ir até ao seu país. Dizia a sua mãe, nas cartas que dela sempre foi recebendo, que as suas irmãs estavam mulheres feitas e que até já tinha um sobrinho. Lindo, lindo, que era o seu sobrinho, dizia-lhe a mãe. E ele que nem o conhecia. Afinal, as férias estavam aí, num mês teria muito tempo para matar algumas saudades, e até para “puxar as orelhas” a um dos seus irmãos, que um pouco desobediente, andava a preocupar o coração de sua mãe (e o dele!). Imaginemos a alegria que não terá sido hás uns tempos, naquele país e naquela aldeia durante as férias do Luís. Era só um mês, nem mais um dia, estava bem avisado. Pois é, mas, talvez por descuido, talvez por razões de complicações em arranjar viagem de volta, talvez porque a sua vontade fosse mesmo a de não mais deixar os seus, ou, o mais certo, por todas estas razões e mais outras que não me disse, o Luís chegou uma semana atrasado ao seu trabalho. Ele que até já trabalhava há quatro anos naquele patrão. Foi despedido! Ele nem queria acreditar que lhe fossem fazer tal coisa! Mas fizeram! A autorização de residência, por azar, tinha mesmo de ser renovada nessa altura, mas no desemprego não era mesmo possível. Sem trabalho não há “papéis”, mas sem “papéis” não há trabalho. Um círculo terrível, que pode transformar uma vida com sentido, num acumular de insucessos que conduz ao desacreditar que a felicidade é um direito. É que sem trabalho não se pode comprar comida, nem pagar renda de casa. E o Luís é um jovem que, como todos, tem direito a uma dignidade inerente à sua natureza humana. Não deixou de ser “imagem e semelhança de Deus”! Foi encontrado na rua, numa noite, por uma das equipas que, como o Centro Padre Alves Correia (CEPAC), pertencem ao Plano Lx. Não me atrevo a relatar todos os sentimentos que me invadiram quando, pela primeira vez, o atendi. Um misto de pena, não posso negar, mas igualmente de revolta contra não sei quem. Como é possível?! O Luís chorou, mesmo se na sua cultura, como na nossa, não fica bem a um homem chorar. Mas ele chorou, chorou porque tinha fome, chorou porque estava vestido como um maltrapilho e, porque cheirava mal, as pessoas se afastavam e o evitavam, mas, sobretudo chorou, porque os seus continuavam a precisar do dinheiro que todos os meses ia enviando. “Que a minha mãe não saiba a minha situação”, pedia-me com redobrada insistência. Imigrante porquê? Parece evidente que o Luís, como qualquer imigrante, avaliando as desvantagens da permanência na terra em que vive por comparação com as vantagens da migração para uma sociedade com melhores condições materiais de vida (salários mais elevados, mais garantias de emprego…). e procurando minimizar os custos da sua condição e maximizar os ganhos das oportunidades, escolheu aventurar-se porque a comparação lhe revela que a permanência representa um custo e a migração um ganho. Imaginando a pressão que as pessoas sentem nos países de origem (pobreza, conflitos, fraco acesso a bens essenciais, etc.), não será difícil deduzir que muitos são os que arriscam a sua sorte na esperança de encontrarem um espécie de “árvore de patacas” em outros países. Hoje, compreendo muito melhor aquilo que, em criança, ouvia dizer dos nossos compatriotas que partiam para o Brasil! Devemos ter em conta que neste cálculo, aparentemente racional, os potenciais imigrantes decidem com base naquilo que aos seus países vai chegando através dos imigrantes bem sucedidos, que aí vão passar as suas férias, ou, através das modificações positivas que verificam na vida dos familiares que permanecem. O Luís era muito fiel a enviar, todos os meses, parte das suas poupanças e, quando em férias, fez questão de mostrar que a vida aqui lhe corria bem. Afinal, também tinha direito a umas extravagâncias, ele que trabalhava habitualmente que nem um escravo! Os movimentos migratórios têm sido uma constante ao longo da história. Vão mudando as suas direcções, mas permanecem constantes. Permanecem porque há em nós, seres humanos, uma pulsão para a descoberta de coisas novas, mas igualmente uma vontade forte de melhorar as condições de vida. De tal forma é verdade que o artigo 13º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, diz que “toda a pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”. Por isso, quanto mais os mecanismos de controle se tornem apertados, mais os canais paralelos aumentarão e assistiremos, necessariamente, ao aparecimento das “máfias”. Porque, por maior que sejam os obstáculos não é possível parar os fluxos de imigrantes à procura de melhores condições de vida. É um bom sinal que os imigrantes nos procurem, pois eles vêm à procura do nosso sucesso. Todos sabemos que o crescimento da imigração em Portugal é, antes de mais, um reflexo do desenvolvimento económico do nosso país, mas é, igualmente uma das condições necessárias à sustentabilidade desse mesmo desenvolvimento. Os imigrantes trazem-nos muitas vantagens, a nível económico, de que são exemplo, a produtividade que geram (são responsáveis por 5% do PIB nacional) e pelas contribuições e impostos que pagam (são contribuintes líquidos positivos). As remessas que enviam para os seus países de origem em nada nos prejudicam e são fruto de desenvolvimento para esses povos. Outros benefícios advêm, e que ninguém pode negar, seja a nível cultural, seja a nível demográfico. As estatísticas, mesmo as oficiais, não escondem que, desde 2001, a imigração ilegal tem fortemente aumentado. Calcula-se que serão uns 53 mil os imigrantes irregulares que estão no nosso país. Quer-nos parecer que a questão fundamental não será o aumento da imigração irregular, mas, antes que tudo, será a imigração regular que tem diminuído. São várias as vozes que afirmam que o desequilíbrio está a ser provocado por uma ineficiência interna, provocada por leis irrealistas, com grandes consequências burocráticas que, pretendendo ser desmotivadoras da entrada de trabalhadores estrangeiros, mais não têm feito do que aumentar a imigração extra canais legais. Nova lei está, neste momento, em discussão pública e oxalá a realidade venha a modificar-se. Um novo conjunto de Fundos Estruturais se avizinham e Portugal não pode olhar os imigrantes como simples coisas descartáveis, ao sabor dos ciclos económicos. “Todos são iguais perante a lei e têm, sem qualquer distinção, a igual protecção da lei. Todos têm direito a igual protecção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação” (artigo 7º da Declaração Universal dos Direitos Humanos). Os Espiritanos são advogados dos pobres O Luís é apenas uma das situações, entre as três centenas de situações que o CEPAC segue com regularidade. São muitos os casos complicados, difíceis tantas vezes, sendo o Luís um caso paradigmático, mas não o mais dramático. As pessoas que nos procuram têm todas problemas semelhantes, mas, ao mesmo tempo, são todas distintas e é, por isso, necessário saber ouvir, tentando penetrar o sentido que as histórias de vida nos revelam, para, depois, com os próprios, ir tentando desenhar projectos de intervenção realistas. O Luís está neste momento em lista de espera, em dois centros de acolhimento. É preciso tirá-lo da rua! Em lista de espera? Verdade, as respostas sociais a este nível não abundam e o Luís tem o estigma de estar “clandestino”. Mas já está a comer refeições cuidadas e quentes, num dos refeitórios da cidade. Desde que nos conhece o comer não lhe tem faltado, mesmo se andou alguns dias a comer “não cozinháveis”, daqueles que o apoio alimentar do CEPAC podia proporcionar. Roupa também tem tido, andando limpinho e muito digno, porque as voluntárias do nosso Banco de Roupa, na sua grande generosidade, e criaram um autêntico pronto a vestir. Claro não tem ainda onde lavar a roupa, mas há-de ter, brevemente, tenhamos esperança. Será sempre uma dificuldade, neste trabalho, saber qual é o mais prioritário do prioritário. Comer, vestir, dormir, são necessidades, de tal forma básicas que, quando não satisfeitas, se perde a dimensão do humano. Mas há outras! Quem está na rua tem a sua saúde debilitada e a Enfermeira, articulando muito bem com os nossos dois médicos, tem feito maravilhas. Bonita relação, neste sector se vai igualmente estabelecendo. O nosso Luís tem sido assistido regularmente e as suas complicações de pele, naturais a quem dorme na rua e não pode ter os devidos cuidados de higiene, estão quase debeladas. E, claro, quem fornece os medicamentos? Se os temos, oferecidos, sai-nos mais barato… O emprego, não só o trabalho, é fundamental para conseguir a regularização que, no caso do Luís, até nem é difícil, uma vez que já esteve em situação regular. Mas é preciso passar por todo um processo de papelada e provas e vai ser preciso dinheiro, à volta de cem Euros, para pagar as coimas respectivas. Noutros casos, o daqueles que nunca estiveram legais, ainda bem mais complicados, é preciso utilizar a perícia da nossa Advogada, também ela voluntária, porque os pedidos de regularização extraordinária são muito difíceis de conduzir. Vai-se procurando trabalhar a integração dos imigrantes. Foi para isto que o CEPAC nasceu e é para isto que continuamos com esta presença Espiritana, no meio destas pessoas que precisam de uma mão que as ajude. Queremos tão somente que o Luís, como tantos outros, caminhem pelo seu próprio pé, tornando-se eles próprios elos de uma cadeia de solidariedade, para que as margens em nossa sociedade não vão engrossando as suas fileiras. Porque acreditamos que este é um trabalho missionário, continuaremos a dar do nosso melhor, no meio de alegrias e de tristezas, de muitos sofrimentos, mas sempre vivendo a esperança que o futuro do Luís há-de ser de vida plena e criativa, com liberdade e dignidade. Este tem sido o lema de todos: Direcção do CEPAC, dos dois funcionários e dos dezassete voluntários que connosco trabalham. Quem nos quiser visitar, será sempre muito bem recebido! Mário Faria Silva

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