Celebrar a Trindade é acima de tudo um exercício de humildade

Em recente entrevista à Sala de Imprensa do Santuário de Fátima, José Maria Silva Rosa, membro da Comissão Cientifica do Congresso sobre a Santíssima Trindade e docente da Universidade da Beira Interior, aborda esta iniciativa Em recente entrevista à Sala de Imprensa do Santuário de Fátima, José Maria Silva Rosa, membro da Comissão Cientifica do Congresso sobre a Santíssima Trindade e docente da Universidade da Beira Interior, aborda esta iniciativa. José Rosa é o autor da tese de doutoramento “O Primado da Relação – Da Intencionalidade trinitária da Filosofia”, datada de Novembro de 2004 e precisamente sobre a Santíssima Trindade. 1- Que expectativas tem para a realização deste congresso? Celebrar a Trindade, seja como for, com a inteligência, com o coração, com a sensibilidade artística, etc., creio que é acima de tudo um exercício de humildade e de nada possuir. Tempos houve em que a Trindade foi celebrada triunfalmente, como uma espécie de glória do pensamento. Na linha de meditações bem antigas, cada vez mais me convenço de que a Trindade é antes o «mysterium» (celebração) que desafia todos os lugares feitos e os caminhos já trilhados quer pelo pensamento quer pela acção. Não é um «mistério» no sentido moderno e kantiano do temo. É antes o «mistério da existência», como gostava de dizer Jean Daniélou, em processo de abertura ao novo, como o vivia a mais primitiva tradição eclesial confessante. Deste modo, também este Congresso será aquilo que todos nós soubermos e formos capazes de fazer com ele. «Ubi caritas et amor Deus ibi est.» O mais importante, espero, é que nos encontremos uns com os outros verdadeiramente, não apenas para comunicar pretensos saberes, mas talvez para partilhar fomes e sedes. A propósito de Deus, Agostinho tem uma afirmação que o coloca na grande tradição da teologia negativa: «acerca de Deus, conhece-se melhor ignorando» («de Deo, quid scitur melius nesciendo…», De Ordine, II, 16, 44) 2- Sendo um congresso teológico, dirige-se à sensibilidade apenas das pessoas da área ou será de acessível entendimento a outras pessoas de outros ramos do saber? Uma das coisas que mais me maravilhou num processo de investigação que realizei durante alguns anos, foi verificar como a Trindade, e as simbólicas que para ela convergem ou dela partem, encontram tão diversas formas de recepção e de acolhimento, mais ou menos crentes (e até descrentes) que vão da matemática à literatura, da Filosofia e Teologia às Artes, da Psicanálise à Teoria da Literatura e à Teoria da Comunicação, do homem simples ao investigador erudito. Talvez isto seja uma cifra da fé cristã partilhada por Santo Agostinho e outros, de que, quando afirmamos que o homem é «imago Dei» (imagem de Deus), verdadeiramente, o que queremos exprimir é que ele é «imago Trinitatis» (imagem da Trindade»), i.e., um ser em relação, a fazer-se em constante «pericores». Não afirmava por exemplo o Pe. António Vieira, na Clavis Prophetarum, que o facto de os índios brasileiros conseguirem (apenas) contar até três, indicava a presença neles da imagem da Trindade que nenhuma ignorância conseguira apagar? Assim, estou convencido que vai haver espaço para todas as sensibilidades, até mesmo para quem, mais do que um saber, seja ele histórico, filosófico, teológico, busca apenas um momento de encontro espiritual. 3- A si, cabe-lhe apresentar, na tarde de 10 de Maio, o tema “St. Agostinho: o fascínio do Deus Trindade”. Como está a estruturar a sua conferência? Bom, estou a rabiscar umas coisas, pedindo ao Espírito Santo iluminação e inspiração. Devo confessar uma coisa: um dos momentos que mais me tocou, há vários anos, na leitura de De Trinitate de Santo Agostinho, foi quando vi no fim, no livro XV, que, depois de tanto escrever, Agostinho pedia a Deus que o libertasse das muitas palavras que padecia e lhe atormentavam a alma. Neste momento sinto algo parecido. Mas, para não fugir completamente à pergunta, estou a tentar esboçar brevemente o modo como a questão trinitária emerge no pensamento de Santo Agostinho (a origem é doxológica) e como o seu pensamento converge para a grande obra, uma das maiores do pensamento ocidental, que é a obra De Trinitate. Sublinhe-se o seguinte, a fim de equilibrar o título que me deram: se há em Agostinho um crescente fascínio pelo Deus-Trindade, há nele desde sempre, em simultâneo, o fascínio pelo Deus-Unidade, mormente desde a saída do maniqueísmo. O grande desafio de Agostinho, nunca cabalmente solucionado, e que, por isso, ele nos devolve tanto no pensamento como na acção, é como situar-se neste gume da navalha, sem cair nem para uma diferença que rompa a unidade (arianismo) nem para uma unidade que anule as diferenças (modalismo). Ora, este é um dos problemas maiores do nosso tempo, a braços com expressões políticas, sociais, filosóficas, culturais, etc., incapazes de se manter em processo de relação, oscilando ora entre identidades fracturantes e «assassinas» ora entre equívocos processos de homogeneização globalizante. Por isso considero que revisitar as simbólicas trinitárias (i.e.,, relacionais) é também um bom serviço ao mundo contemporâneo. 4 – Sobre a Lenda do Menino e do Teólogo – Pois fica sabendo que é mais fácil eu mudar o mar, do que tu descobrires o mistério que te atormenta –, o que quis Santo Agostinho dizer com ela? A lenda é pseudo-agostiniana. É uma lenda piedosa medieval, mais tardia, que projecta em Agostinho uma atitude «racionalista» que nunca foi sua. Teremos oportunidade de referir isso na nossa Conferência. Ironicamente, a história mostra-nos que os processos de recepção são muitas vezes processos de traição. Só os nossos seguidores nos podem trair. 5 – “A Santíssima Trindade é o maior mistério da Nossa Fé”, disse recentemente, em entrevista, o Prof. Noronha Galvão, presidente da Comissão Cientifica do Congresso… Não discuto esta afirmação. Sublinho apenas de novo o sentido antigo de «mistério»: não é um problema gnosiológico que está em causa, como se a fé andasse a tentar decifrar o enigma matemático ou edipiano do «um-em-três», mas é um «mistério» no sentido de uma celebração de vida e de amor. «Mistério» é aqui mais uma categoria da acção do que do pensamento. Dito isto, acrescento algo que extravasa a questão da fé: é que considero que a confissão trinitária é quem parece «ter acertado» por antecipação na formulação exacta da questão fundamental da filosofia: a do Uno e do Múltiplo, a da relação entre Unidade e Diferença. Esta é a «cruz dos filósofos»; por isso, muito me apraz a afirmação de um emimente filósofo contemporâneo, Jean-Luc Marion, que me permito não traduzir: «Que le jeu trinitaire reprenne par avance toutes nos désolations, y compris celle de la métaphysique, dans un sérieux d’autant plus serein et un danger d’autant plus grave qu’ils proviennent de l’amour, de sa patience, de son travail et de son humilité ¯ c’est seulement ce que nous tenterons de dire ici.» (L’idole et la distance. Cinq études, p. 10).

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Agência ECCLESIA

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