“A Igreja, Povo Sacerdotal”
O Povo que Deus deseja
1. A qualidade sacerdotal da Igreja, novo Povo de Deus, formado a partir da Páscoa de Cristo, valorizada pelo Concílio Vaticano II (cf. L.G. nº34), corresponde à convicção de que a Igreja é a última realização do desígnio de Deus na história humana, antes da escatologia. Esse desígnio de Deus está já anunciado na narração bíblica da criação. Deus criou o homem à sua imagem, para poder participar na plenitude da vida em Deus, que é comunhão de amor. É desejo inicial de Deus, de que Ele nunca desistiu, que toda a humanidade seja, na plenitude dos tempos, família de Deus, vivendo para sempre na contemplação da glória de Deus e na alegria do amor.
Criado à imagem de Deus, sem ser Deus, o ser humano tinha de querer, procurar e amar essa plenitude da vida e do amor. Ele tinha de ser livre, porque a plenitude da vida e do amor tem de ser querida, escolhida, procurada na fidelidade a Deus que nos criou e nos atrai. No desígnio inicial de Deus, esse Povo definitivo, reunido na Casa do Pai, tinha de percorrer o longo caminho da história, na qual aconteceu o pecado. A dignidade da vida supõe que ela seja vivida num grande combate, num longo caminho a percorrer, que se adensou com a experiência do pecado.
O desígnio de Deus, expresso desde o início da criação, torna-se pedagogia de salvação, para, no drama da história, salvar o seu desejo inicial de reunir, no fim, todos os homens num só Povo, que o louvem, contemplem a sua glória e experimentem a alegria do amor.
Por isso, para que toda a humanidade volte a desejar ser esse Povo do Senhor, essa família de Deus, Deus escolhe um Povo, faz com ele uma aliança de vida e de fidelidade. Desse Povo Deus espera que queira ser o seu Povo, e sentir já na história a alegria da intimidade com Ele. Quer que ele seja “fermento na massa”, para que toda a humanidade redescubra a sua vocação primeira. A expressão “povo sacerdotal” corresponde a “povo escolhido”, que Deus espera que seja “um povo santo”, porque o seu Deus é um Deus Santo. Os textos da Aliança chamam-lhe “povo sacerdotal” (cf. Ex. 19,3-8), por duas razoes: porque a santidade da sua vida é o verdadeiro culto que Deus espera do seu povo e porque Deus quer que esse seu Povo seja mediador entre Deus e toda a humanidade, para a realização última do seu desígnio.
Ao esperar que o Povo Lhe preste culto pela santidade de vida, Deus suscita no Povo mais a “atitude sacerdotal” do que a função sacerdotal. Esta podemos encontrá-la sugerida na mediação com toda a humanidade, na medida em que a mediação entre Deus e os homens é expressão da “função sacerdotal”. Esta função de mediação do Povo escolhido está já conscientemente expressa no Antigo Testamento, sobretudo nos textos dos grandes profetas, mas é clara sobretudo na Igreja, novo Povo de Deus, devido à sua identificação com Cristo, o mediador perfeito e definitivo. A universalidade da missão situa a Igreja nessa função de mediação salvífica com toda a humanidade. Ela nunca poderá conceber a sua verdade e a sua missão confinada às fronteiras da sua realidade visível. Ela é Povo Sacerdotal porque exerce, hoje, até ao fim dos tempos, essa função sacerdotal de mediadora da salvação para a humanidade como um todo. A sua mediação tem a universalidade e a fecundidade salvífica da mediação de Jesus Cristo. Só Cristo faz dela “sacramento” da sua mediação salvífica e a Igreja, para a exercer, tem de se identificar com Cristo, na santidade de vida e no louvor da Santíssima Trindade.
Uma longa caminhada
2. O centro decisivo da atitude sacerdotal desse Povo que Deus quer, o seu Povo escolhido, é a sua fidelidade à Aliança que Deus celebra com ele. Deus compromete-se totalmente com esse Povo: “Vós sereis o Meu Povo e Eu serei o vosso Deus”. Deus quer, com a sua fidelidade amorosa, construir um Povo santo, um modelo de humanidade que corresponda ao ideal da criação. A própria existência do Povo escolhido glorifica o Senhor. Deus espera que o Povo O louve com toda a sua vida, que seja um Povo santo.
Perante a infidelidade do Povo e a rebeldia do seu coração, bem depressa se percebeu que esse era um ideal escatológico, a realizar-se no tempo do Messias prometido, anunciavam os profetas. Entre a manifestação deste desejo de Deus acerca do seu Povo, e a definitiva realização da assembleia dos bem-aventurados, que prestará o verdadeiro culto a Deus por toda a eternidade, definitivo Povo Sacerdotal, medeia a história da salvação. Aos pecados do Povo e à dureza do seu coração, Deus responde falando-lhe ao coração, envia profetas, institui sacerdotes que sejam mediadores entre Deus e o seu Povo, também eles, tantas vezes, infiéis ao ideal da Aliança. Os profetas insistem na promessa do Messias, o Justo e o Santo, que inaugurará uma nova Aliança e em que todo o Povo, conduzido por Ele à verdade da Aliança, encabeçará um povo finalmente sacerdotal. Não admira que, sobretudo depois do exílio da Babilónia, a expectativa messiânica se tenha transformado em esperança escatológica. A História da Salvação é a manifestação da persistência de Deus que não desiste de vir um dia a ter esse povo que Ele deseja, que O louve com toda a sua vida, único sacrifício de louvor que agrada a Deus e que possa ser mediador entre Ele e todos os outros povos, até que um dia toda a humanidade seja a única família de Deus.
Desta longa persistência da fidelidade de Deus, Jesus Cristo, o Deus que se faz Homem, para que todos os homens possam pertencer à família de Deus, é a expressão máxima e definitiva. No seu sangue, sela-se uma nova Aliança, na sua vida oferecida, a humanidade oferece, finalmente, a Deus uma oferta pura e santa, digna da sua santidade e da sua glória. A promessa messiânica realizou-se na encarnação do Filho de Deus em Jesus de Nazaré. O seu Povo não O reconheceu como o Messias prometido e esperado. Por Ele se considerar o Messias, condenaram-n’O à morte. Mas Ele sabe que o seu sangue derramado é o sangue da “nova e definitiva Aliança” (Lc. 22,20). Ele sabe que na sua Páscoa, o tempo definitivo (escatológico) foi inaugurado e a sua ressurreição dos mortos é disso a afirmação clara.
E se assim é, com a nova e definitiva Aliança, um novo Povo escolhido começa, e esse será povo sacerdotal. É composto por aqueles que acreditam na ressurreição e querem viver a vida ao ritmo de Cristo ressuscitado, conduzidos pelo Espírito, fazendo do amor-caridade a expressão da sua liberdade.
Segundo as correntes escatológicas do post-exílio, a glorificação do Messias (no caso de Cristo, a sua ressurreição e Ascensão aos Céus), correspondia ao fim da história e à inauguração do tempo definitivo. A surpresa cristã foi que, com a glorificação de Cristo, inaugurou-se o tempo definitivo, mas não se anulou a História. Neste mundo, como peregrinos da pátria definitiva, os discípulos de Cristo inauguram uma nova maneira de viver, centrada na fé e no amor, e podem oferecer, ainda neste mundo, o sacrifício pascal do seu Senhor e Pontífice, até que Ele venha. Por isso, eles são já um Povo Sacerdotal, o novo Povo Sacerdotal. O acento é posto na vida cristã, vivida ao ritmo do Espírito, de modo a poder ser oferecida para glória de Deus, no mesmo sacrifício perene de Jesus Cristo, que, glorioso no Céu, preside a ele, assim como e ao mesmo tempo, para a Igreja peregrina e para a assembleia dos bem-aventurados.
A Igreja é o novo Povo Sacerdotal
3. A Igreja é a última esperança de Deus de ter um Povo que seja santo, Lhe seja fiel, se ofereça em sacrifício de louvor, seja “sacramento” de salvação, fazendo a mediação entre Deus e a humanidade. E não há perigo de mais uma desilusão para Deus, porque a Igreja é Cristo, identifica-se com Cristo, a sua fidelidade é a de Cristo, a força que a move é o próprio Espírito de Cristo. O caminho da fidelidade da Igreja é a sua total e definitiva identificação com Cristo, não apenas ao nível do ser, mas ao nível da vida vivida. Os pecados da Igreja nunca anularão a fidelidade de Jesus Cristo. A fidelidade de Jesus Cristo, manifestada na acção do Espírito Santo, garantirá que a Igreja, apesar dos pecados dos seus membros, caminhe para a fidelidade perfeita e definitiva. Por isso, apesar dos seus pecados, a Igreja nunca deixará de ser um Povo Sacerdotal, porque oferece a Deus o sacrifício puro e santo de Jesus Cristo e, pela força da acção sacramental, será sempre, graças à acção contínua do Espírito Santo, “sacramento de salvação”, isto é, mediação de salvação para toda a humanidade.
É a identificação com Cristo que faz da Igreja um Povo Sacerdotal. O Novo Testamento é claro a esse respeito. São Pedro, na sua primeira Carta, escreve aos cristãos: “Aproximai-vos do Senhor, que é a pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de Deus. E vós mesmos, como pedras vivas, entrai na construção deste templo espiritual, para constituirdes um sacerdócio santo, destinado a oferecer sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo” (1Pet. 2,4-5).
“Vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus, para anunciar os louvores d’Aquele que vos chamou das trevas para a sua luz admirável. Vós que outrora não éreis seu Povo, agora sois Povo de Deus; vós que outrora não tínheis alcançado misericórdia, agora alcançastes misericórdia” (1Pet. 2,9-10).
É na fidelidade de Cristo que fomos resgatados, alcançamos misericórdia, e adquirimos a dignidade de Povo do Senhor, Povo Sacerdotal. O Apocalipse é ainda mais claro, quando diz a Cristo, Cordeiro Imolado: “Tu és digno de tomar o livro e de abrir as suas páginas seladas, porque fostes imolado e adquiriste para Deus, com o Teu sangue, homens de todas as tribos, línguas, povos e nações e fizestes deles, para o nosso Deus, um reino de Sacerdotes e reinarão sobre a terra” (Apoc. 5,9-10).
Expressões da Igreja como Povo Sacerdotal
4. Da Igreja, como Povo Sacerdotal, Deus espera a “atitude sacerdotal”, manifestada em toda a vida, na busca da santidade, e não a “função sacerdotal” exercida, na Igreja, pelo sacerdócio apostólico. Este é um dom de Deus à Igreja para que ela se possa exprimir como Povo Sacerdotal. Só o sacerdócio apostólico torna possível à Igreja exprimir a sua atitude sacerdotal no sacrifício de louvor, oferecendo os frutos da sua fidelidade a Jesus Cristo, unindo-se a Ele na oferta do seu sacrifício de louvor a Deus.
É por isso que a Eucaristia é para o Povo Sacerdotal a grande expressão dessa atitude sacerdotal. Ela é sempre oferta de Jesus Cristo, no dom da sua vida a Deus, para nossa redenção. Assim o louvor que o Povo presta a Deus é o mesmo que Jesus Cristo presta ao Pai, oferecendo-se continuamente por nós e connosco. A Eucaristia, oferta de Jesus Cristo, é também oferta da Igreja, Povo Sacerdotal, devido à sua comunhão com Cristo. Toda a vida vivida com Cristo, na busca da fidelidade e da santidade, a Igreja pode oferecê-la em união com a oferta de Jesus Cristo. A Igreja e cada cristão podem oferecer-se sempre de novo. Cristo não se sacrifica outra vez. A sua oferta pascal tornou-se perene, isto é, presente em cada tempo na caminhada deste Povo da nova Aliança.
5. Como irradiação da Eucaristia, todos os outros actos litúrgicos da Igreja, como a celebração dos sacramentos, a oração pessoal e comunitária, se tornam sacrifícios de louvor, oferecidos pelo Povo Sacerdotal, sob a presidência do único Sumo Sacerdote, Jesus Cristo, através da mediação sacramental do “sacerdócio apostólico”.
Até que Ele venha
6. Só quando, na última vinda de Cristo, a Igreja peregrina e a assembleia dos bem-aventurados forem uma só, o Povo de Deus será perfeitamente sacerdotal e Cristo o seu Sumo Sacerdote. A Igreja é a etapa peregrina desse Povo. É chamada a viver de Cristo, na fé e no amor. Para que seja Povo Sacerdotal, nesta fase peregrina, Cristo é Sacerdote através da mediação dos que receberem o “sacerdócio apostólico”, e agem “in personna Christi”. Chamados à fidelidade cristã como todos os outros membros da Igreja, são “sacramentos de Jesus Cristo”, forma de Este presidir ao louvor sacerdotal da Igreja.
Sé Patriarcal, 14 de Março de 2010
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca