Decisão marcou pontificado, concluído em 2013
Cidade do Vaticano, 31 dez 2022 (Ecclesia) – O pontificado de Bento XVI, que faleceu hoje aos 95 anos de idade, foi marcado pela renúncia, em 2013, assumida pelo próprio como uma “novidade” e um facto virtualmente sem precedentes, na história da Igreja Católica.
“Dei este passo com plena consciência da sua gravidade e também novidade, mas com uma profunda serenidade de espírito”, disse o Papa, em italiano, na última audiência pública do pontificado, a 27 de fevereiro de 2013.
Este discurso traça uma espécie de balanço dos quase oito anos de pontificado, “um pedaço de caminho da Igreja que teve momentos de alegria e luz, mas também momentos não fáceis”.
“Senti-me como São Pedro com os Apóstolos na barca no lago da Galileia: o Senhor deu-nos muitos dias de sol e brisa suave, dias em que a pesca foi abundante; mas houve também momentos em que as águas estavam agitadas e o vento contrário – como, aliás, em toda a história da Igreja – e o Senhor parecia dormir. Contudo sempre soube que, naquela barca, está o Senhor; e sempre soube que a barca da Igreja não é minha, não é nossa, mas é dele. E o Senhor não a deixa afundar”, disse.
A Igreja Católica não tinha visto qualquer Papa resignar desde 1415, com a abdicação de Gregório XII e segundo o jornal do Vaticano, ‘L’Osservatore Romano’, “a reconstrução histórica dos casos em que um pontificado foi interrompido antes da morte do Papa conduz a pouquíssimas figuras e em nenhum caso a uma situação como a que se verificou com a decisão de Bento XVI”.
Em abril de 2009, Bento XVI realizou um gesto simbólico ao depositar o pálio – insígnia pessoal e de autoridade – junto da porta santa da Basílica de de Collemaggio, de L’Aquila (Itália), que lhe fora imposto no dia do início de pontificado, em cima do relicário com os restos mortais do Papa Celestino V (1215-1296), pontífice que governou a Igreja Católica apenas durante uns meses, em 1294.
Ambrogio Piazzoni, autor da obra ‘A história das eleições papais’, explica que nem todos as situações dos bispos de Roma que abdicaram do pontificado são iguais: “Alguns [saíram] mais ou menos obrigados, outros de livre vontade”.
O primeiro caso foi o Ponciano, em 235, condenado a trabalhos forçados na “minas de metal” da Sardenha, seguindo-se Silvério, no ano de 537, obrigado a abdicar por Belisário, general bizantino, e exilado para a Ásia Menor.
São Martinho I, eleito em julho de 649, foi exilado após julgamento em Constantinopla, situação que alguns consideram como renúncia.
Outros casos são o de João XVIII, que terminou o pontificado em 1009 e o de Bento IX, em 1044, que renunciou voluntariamente, mas voltou a ser Papa noutro período.
São Celestino V, eleito após um longo período de Sé vacante, levou a cabo uma “investigação jurídica” sobre a possibilidade de renúncia do Papa, antes de apresentar a sua resignação, cinco meses após a sua eleição, em 1294.
O último caso antes da renúncia de Bento XVI tinha sido o de Gregório XII, em 1415, no Concílio de Constança (Alemanha), abrindo caminho à eleição de Martinho V para resolver o cisma do Ocidente, divisão entre católicos que obedeciam ao Papa de Roma e ao ‘antipapa’ de Avinhão, fomentada por questões políticas.
No total, em mais de 260 Papas, as situações que podem configurar uma abdicação acontecem menos de uma vez a cada 30 pontificados.
Bento XVI anunciou a sua decisão de resignar ao pontificado a 11 de fevereiro de 2013, num encontro com cardeais, no Vaticano.
“Cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino”, referiu, em latim.
O Código de Direito Canónico, prevê a possibilidade jurídica de renúncia por parte do Papa e esta renúncia não precisa de ser aceite por ninguém para ter validade, como indica o Cânone 332.
Vaticano: O dia em que Bento XVI se despediu como simples «peregrino»
Bento XVI despediu-se dos fiéis como um “peregrino”, na última aparição pública do pontificado, que se concluiu às 20h00 (menos uma em Lisboa) de 28 de fevereiro de 2013.
“Sabeis que hoje é um dia diferente dos outros, já não sou Sumo Pontífice da Igreja – sou-o até às oito da noite, depois já não -, sou simplesmente um peregrino que inicia a última etapa da sua peregrinação nesta terra”, declarou, desde a varanda do palácio apostólico de Castel Gandolfo, arredores de Roma, propriedade da Santa Sé.
“Obrigado, boa noite, obrigado a todos vós”, foram as palavras finais do pontificado, iniciado em abril de 2005.
Em 2016, Bento XVI falou no livro-entrevista ‘Últimas conversas’, do jornalista Peter Seewald, sobre a sua renúncia ao pontificado, em 2013, explicando que esta uma decisão amadurecida, que não vê como um fracasso.
“Não me posso considerar um falhado. Durante oito anos prestei o meu serviço. Houve muitos assuntos difíceis durante esse período, se pensarmos por exemplo no escândalo da pedofilia, no disparatado caso Williamson ou ainda, também, no Vatileaks. Contudo, no geral, foi um tempo em que muitas pessoas despertaram de novo para a fé e houve uma enorme movimentação positiva”, indicou.
O Papa emérito escolheu como momento do pontificado o Ano da Fé (outubro de 2012-novembro de 2013), no qual desafiou a “redescobrir Deus” e “reencontrar a centralidade da fé”.
Bento XVI considerou-se como um pontífice entre “duas eras”, que precisou de ser “renovador e conservador”.
“Há que renovar e foi por isso que tentei fazer avançar, a partir de uma reflexão moderna sobre a fé. Simultaneamente, também é preciso assegurar a continuidade, não deixar que a fé acabe, seja destruída”, explicou.
O Papa emérito afirmou ainda que “nunca esteve em causa” a sua obediência a Francisco, ao qual agradecia pela “benevolência” com que tratou.
OC