Bento XVI e as dinâmicas de evangelização na Europa

A escolha do nome Bento pelo cardeal Ratzinger foi geralmente interpretada como um sinal de prioridade da Igreja em relação à Europa. S. Bento é padroeiro da Europa e o velho continente, outrora maciçamente cristão, tem hoje vazias as suas igrejas. Daí o imperativo de re-evangelizar a Europa. O continente europeu destaca-se pelo contraste da situação actual com o passado de “cristandade” e de influência fortíssima da Igreja na vida das pessoas e das instituições. No entanto, observa-se um recuo do catolicismo mesmo em regiões de grande predominância da Igreja Católica até há pouco, como a América Latina. Nos próprios Estados Unidos – onde a religião conta muito mais do que na Europa – o número de católicos não está a aumentar, pelo contrário. Poderá então perguntar-se, e muita gente o tem feito nos últimos dias, se a Igreja e o mundo moderno estão em fatal rota de colisão. Contradição necessária É verdade que houve, sobretudo a partir do iluminismo, um embate severo entre a Igreja e o pensamento moderno. Em boa parte, tal aconteceu porque, ao longo da história, a Igreja tomou posições que, no fundo, nada tinham de cristãs – como assumir poder temporal ou aliar-se a regimes monárquicos não constitucionais. Em resposta, muitos intelectuais europeus elegeram a Igreja como inimigo a abater. O Concílio Vaticano II ultrapassou em larga medida esse desencontro. E João Paulo II não se cansou de pedir perdão por responsabilidades da Igreja. Mas o essencial não está aí. Há necessariamente, e sempre houve, uma contradição entre a mensagem cristã e o “mundo”. Cristo morreu numa cruz porque os homens não o aceitaram. O viver para os outros, que Jesus revelou como sendo a verdadeira face de Deus, não é programa que as pessoas adoptem com naturalidade. O individualismo egoísta e o hedonismo são incompatíveis com uma vivência cristã. Sempre o foram – apenas hoje há mais quem actue como materialista prático. A “ditadura do relativismo”, que Bento XVI denuncia, é muito visível na Europa pela quantidade de gente que actualmente abrange. Na sua raiz, porém, é antiquíssima. Basta lembrar os sofistas da Grécia, a quem não interessava a verdade. Ou David Hume, no séc. XVIII, que não via qualquer fundamento para a moral. O relativismo ético de contemporâneos como R. Rorty não é novidade – excepto no ter-se tornado filosofia de vida, ainda que implícita, de muitos europeus. Os valores ditos cristãos tinham maior vigência social na Europa do passado. Mas tal acontecia sobretudo por pressão sociológica, não por uma autêntica conversão dos corações. Hoje muito mais minoritária, a fé tem condições para ser mais autêntica: ninguém é pressionado a ser cristão na Europa. É uma escolha livre e pessoal. E isso é bom. Fé e “marketing” Se o espalhar a fé – o anúncio da Boa Nova – fosse uma questão de “marketing”, a escolha de Ratzinger para suceder a João Paulo II seria certamente errada. O novo Papa tem colada a si uma imagem, ou um “cliché”, de conservadorismo e intolerância teológica que não ajuda na atracção de eventuais crentes. A verdade, porém, é que – nesta perspectiva de “marketing” – as mudanças que muitos apontam como necessárias para a Igreja (casamento de padres, ordenação de mulheres, moral sexual e familiar mais flexível, etc.) não parecem ter obtido grande êxito na conquista de fiéis pelas confissões protestantes que as adoptaram. Não digo que não seja desejável aí evolução – aponto apenas um facto. Mas não é de “marketing” que se trata. O problema é de comunicação – comunicar a fé. O que envolve uma dimensão intelectual e doutrinária, exigindo um diálogo com os descrentes. Descrentes em tudo, depois dos horrores da primeira metade do séc. XX europeu e das desilusões do progresso. Na Europa há muita gente que se apaixonou por ideologias aparentemente libertadoras e que, perante o fracasso dessas ideologias, vive num grande vazio de referências e valores. Para esses, a Igreja já não é o inimigo, mas algo indiferente, irrelevante. Há que torná-la uma fonte de sentido para a vida. Bento XVI conhece bem tal situação, que várias vezes analisou, e mostra ter capacidade e gosto para um confronto construtivo com agnósticos e ateus. João Paulo II conseguiu progressos importantes no diálogo inter-religioso e no ecume-nismo (recorde-se o acordo de 1999 que pôs fim a quatro séculos de querelas com os luteranos em torno da “justificação pela fé). Atrevo-me a pensar que a novidade de Bento XVI será o diálogo com os não religiosos. E a maioria dos europeus está hoje nessa categoria. No entanto, o dom da fé é muito mais de que uma moral ou uma doutrina. É adesão a uma pessoa, Cristo. E porque o Deus que Cristo revela é amor, doação de si, viver em função dos outros, a conversão dos que estão longe da Igreja depende, antes de mais, da nossa própria conversão. Só a santidade da Igreja – Papa, bispos, padres e leigos – levará a que a luz da fé ilumine um maior número dos nossos irmãos europeus. Francisco Sarsfield Cabral (Director de Informação da Rádio Renascença)

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