Bairro da Bela Vista no «Le Monde Diplomatic»

Em artigo de opinião, pároco do Bairro, Pe. Constantino Alves, fala das causas que levaram aos picos de violência e do futuro das populações  Pela primeira vez em Portugal um bairro foi notícia durante vários dias pelos piores motivos: carros incendiados, contentores de lixo, esquadra da polícia baleada e apedrejada, "estado de sítio" local.

A morte dum jovem deste bairro ocorrida no Algarve, baleado pela GNR, após perseguição decorrente duma tentativa de assalto a uma caixa de multibanco, foi o rastilho que incendiou os ânimos e petardos.

O governo ficou perturbado e enviou reforços policiais para impor a autoridade.

As explicações para os primeiros acontecimentos pecaram pela superficialidade: Meia dúzia de jovens desordeiros e violentos, por isso, um problema de polícia.

A população sentiu uma vez mais os holofotes da comunicação social transmitindo do local notícias e reportagens que desnudavam a sua intimidade. Exposta pelas piores razões sentiu a sua vida a andar para trás.

Vários jovens presos, apontados como autores e líderes, trouxeram uma acalmia.

Até quando? Perguntamos.

Uma leitura simplista dirá que sim e que criará a falsa ideia de que o aumento da acção policial resolverá o problema. Isso é uma análise de quem não palmilha o terreno deste bairro e não conhece as suas gentes.

Se é verdade que a maioria da população, numa riqueza intercultural impressionante, é pacífica e trabalhadora, não deixa de ser verdade que há aspirações e direitos abafados, tensões contidas que explodem e conduzem a atitudes aventureiras e de desespero quando menos se possa esperar!

Considero que estes picos de violência (em dois meses e meio, três jovens morreram violentamente), são "excrecências" de cancros e tumores sociais em evolução permanente e que além do tratamento é necessário remover suas causas. Existe um "sufoco" que recai sobre um parte significativa desta população e particularmente dos jovens.

Famílias numerosas quase enjauladas, e sobrepostas, em reduzidas habitações, que já perderam a esperança duma casa, pois há dezenas de anos que não se constrói habitação social em Setúbal, que educação podem dar a seus filhos?

 

A minha experiência Bairro da Bela Vista

Faz nove anos que na minha função de padre percorro o Bairro da Bela Vista.

Posso dizer que subo e desço constantemente as suas escadarias escuras, entro nas casas das pessoas, falo com grupos de jovens de dia e de noite.

 Conheço os recantos mais problemáticos, calco o lixo nas escadas e sinto o odor de dejectos e esgotos a céu aberto.

Desde o inicio me habituei a ir ao encontro de quem não conhecia, particularmente dos jovens, tomando a iniciativa em cumprimentá-los e apresentar-me. Por vezes, quando passo junto a um grupo pergunto se alguém me conhece e há sempre um jovem que diz: "Conheço". Peço-lhe que me apresente aos seus colegas enquanto estendo a mão a um e outro e ele diz: "É o padre!". A partir daí estou aceite. Cumprimento-os de acordo com os seus código. Isso me familiariza.

Entrei em casas verdadeiros tugúrios, onde a pobreza extrema era patente. Casas com os colchões no chão, já velhos e rotos, salas sem uma mesa nem cadeiras, janelas sempre fechadas por que estavam podres, doentes acamados há vários anos dormindo em enxergas, sem frigorífico nem fogão (a comida era feita sobre um grelhador de peixe). E apesar disso tudo, nem as Assistentes sociais, que já conheciam o caso, faziam mais do que atribuírem o subsídio de reinserção social. Foi preciso mobilizar os nossos recursos para oferecer mesa, cadeiras, frigorífico, televisão, fogão, cobertores e lençóis aquelas duas mulheres desgraçadas, uma com uma paralisia infantil e a mãe com uma forte anemia.

Vi quatro famílias a viverem numa única casa, vinte e duas pessoas ao todo, num ambiente escuro e doentio

Vi casas negras pela humidade, janelas podres e sem vidros tapadas a papelão há vários anos.

Vi o abandono duma família a quem a casa ardeu com tudo o que lá havia dentro e que esperou sete meses para que a Câmara viesse colocar janelas e portas apesar de promessas sucessivas de que na próxima semana lá iam…

Vi casas onde a água escorria do tecto descendo pelos fios das lâmpadas. Vi casas sem água há vários meses.

Vi casas com as janelas e portas fechadas com tijolo para ninguém as ocupar e a população sem saber porquê.

Vi postes derrubados com os fios eléctricos pelo chão semanas e semanas.

Vi montureiras e lixo de vários anos nos vãos das escada, e os serviços de limpeza a passarem ao lado,

Ouvi o queixume dos pobres já desesperados de quem tanto espera

Ouvi a raiva incontida de famílias que acusam as autoridades de não lhes prestarem atenção.

Vi grupos de adolescentes dias e dias em pequenos grupos desocupados e presa fácil de outros mais aventureiros.

Vi a droga a ser vendida às claras nos locais sobejamente por todos conhecidos e a preocupação de famílias por não verem acções dissuasoras ou repressivas.

Vi a insegurança estampada no rosto de muitos que á noite não saem das suas casas para participarem em reuniões ou conviverem

Vi as frases agressivas e ofensivas à polícia escritas nas paredes meses e meses a fazerem a sua acção psicológica sem ninguém perceber que isso ia minando as relações com as forças da autoridade

Uma massa enorme de casario

São 1259 fogos, cerca de 6500 pessoas, que formam as três unidades urbanas pertencentes á Câmara Municipal e divididas por cores: "Os Azuis", "Os Rosa" e os "Amarelos".

Construídos há cerca de trinta anos para serem habitados pelos operários provenientes das várias regiões do país para as diversas empresas de Setúbal: Setenave e várias fábricas do sector automóvel e químico. Todavia logo após o 25 de Abril e dando eco ás legítimas aspirações dos "sem habitação" que moravam em barracas e no "quartel de S.Francisco", retornados de África, além da comunidade cigana estes bairros foram-lhes destinados. Sem um necessário enquadramento e acompanhamento técnico-social aí foram instaladas estas centenas de famílias.

Por ironia do destino, este bairro da Bela Vista construído nas margens da cidade situa-se hoje quase no centro da cidade, atendendo à construção das unidades educativas do Instituto Politécnico e da anunciada "Nova Setúbal" no Vale da Rosa!

Há questionamentos sobre o tipo de arquitectura:

Segundo os autores deste projecto, muito peculiar, com varandas compridas, pátios interiores, isso favoreceria a convivência entre as famílias.

Outros, pelo contrário, olhando para os resultados, discordam totalmente.

Os números da pobreza

O índice de desemprego cifra-se à volta dos 29 por cento e os níveis de pobreza pelos 50 por cento.

Muitas são as famílias que se dirigem à Paróquia a solicitarem apoio alimentar, pagamento de medicamentos, roupas, água, luz… Outras para desabafarem suas mágoas e problemas. Outras a suplicarem que intervenha na Câmara pois precisam duma habitação. Outros a pedirem o meu apoio para uma acção de protesto e reivindicação.

Há muitas famílias desestruturadas afectivamente e muitas pessoas idosas a viverem em grandes dificuldades.

Grande parte das profissões é de baixa qualificação, construção civil e limpezas.

O trabalho precário fragiliza a vida das famílias e impede os jovens construírem com solidez o se projecto de vida. São, por isso, muitos os jovens os que permanecem em casa dos pais até muito tarde impossibilitados de terem casa própria e por isso mantendo relações afectivas ocasionais ou semi-estáveis, ora na casa dos pais do rapaz, ora na da rapariga.

A percentagem de alunos que ingressam no ensino superior é muito reduzida e as taxas de abandono precoce da escola muito elevada.

A emigração, principalmente para Espanha, em trabalho sazonal, Inglaterra, Suíça e França tem sido uma porta de escape para muitos deles.

Estigmas da Bela Vista

"É da Bela Vista!", lá são só "pretos e ciganos", "aquilo é só violência". São preconceitos destes que criam uma ideia distorcida e redutora da vida nestes bairros.

O bairro que não beneficiou de qualquer pintura desde a sua construção tem uma cor feia e descolorida.:pichagens, graffitis de mau gosto, portas sem fechadura, gradeamentos partidos, jardins ao abandono, electricidade lúgubre ou inexistente nos pátios interiores e nas escadarias das habitações.

De fora ninguém passa pelo bairro com interesse a não ser para visitar algum familiar ou amigo. Nada há de atractivo: zonas de lazer e convivência, iniciativas culturais, comércio atraente ou oficinas que dessem resposta a necessidades da vida local. Nem mesmo o lindo Parque Verde da Bela Vista consegue disfarçar esta grande ausência de pólos atractivos.

Taxistas recusam-se a ir ao centro do Bairro durante a noite. Jovens escondem a sua morada, dando a de familiares noutras zonas da cidade, quando respondem a ofertas de emprego.

Nos "Azuis, por exemplo, não há um único parque recreativo para as crianças, apenas um café frequentado quase só por uma etnia.

Entre os moradores, por vezes com dificuldade de entrelaçamento intercultural tenta-se não criar problemas e conflitos, numa coexistência forçada.

O forte índice de analfabetismo e o abandono precoce da escola, deixam a faixa etária entre os 13 e 16 anos desprotegidos, abandonados a si e à rua, vulneráveis a aliciamentos apara a marginalidade.

Uma sociedade de consumo que acena com ilusões e padrões sociais propostos a que muitos destes adolescentes e jovens não podem aceder criam a tentação do risco e do arranjar dinheiro como puderem alguns enveredam pelo consumo ou tráfico de droga e roubos.

 Sem vislumbrarem perspectivas de vida, surge-lhes um futuro e horizontes sombrios que não os estimulam a ser protagonistas do seu futuro. Os baixos salários e o trabalho precário desmotivam-nos.

Confrontados com a incúria ou desleixo, muitas vezes, pelas várias instituições públicas que sentimentos podem fazer germinar dentro dos adolescentes e jovens?

Sinais portadores de esperança

O elevado número de crianças, adolescentes e jovens que frequentam a escola são um sinal de esperanças para os tempos futuros. Quase como flores lindas no meio do pântano muitos jovens delineiam projectos de vida e esforçam-se acumulando estudo e trabalho.

Muitos são os vizinhos que se entreajudam com alimentos e prestação de serviços de vizinhança.

Muitas são as horas passadas junto de doentes ou de famílias a viverem situações de luto. É de notar, por exemplo, na comunidade de origem africana que todos as noites na primeira semana de luto, vizinhos estão junto da família, ora conversando, ora rezando com ela.

Há um sentimento nos jovens muito marcado pela amizade e solidariedade. Embora discordando de comportamentos que condenam, roubos, violência, droga, eles são "seus amigos". Isso viu-se nos últimos acontecimentos da bela Vista.

É uma população que responde facilmente a desafios para acções de luta em prol, do bairro, portadora de dinamismos transformadores.

Após o atropelamento mortal dum homem quando a travessa uma das avenidas beneficiada há vários meses com um tapete de alcatrão, mas onde não foi colocado qualquer sinal de trânsito e passadeiras a população organizou-se a apresentou um baixo assinado de protesto e reclamação de medidas urgentes. Feita a promessa para sua efectivação num curto prazo de poucas semanas foi preciso esperar meio ano.

Como solidariedade para com uma família com ordem de despejo, formada por uma mãe desempregada e duas filhas deficientes os vizinhos organizaram-se e fizeram outro baixo assinado dirigido à Câmara.

O desafio às instituições

Várias são as instituições com acção ou influência no bairro, destacando-se, a Escola, a Caritas, a Câmara, a ACM, a PSP, a Paróquia, a Associação Cabo-verdiana, o Club desportivo "os "Amarelos", entre outras. Cada uma desenvolvendo a sua actividade própria, encontram dificuldades para acertarem estratégias comuns e formas concertadas de acção.

Sectores como a Juventude, a exclusão social, o meio ambiente, a segurança no bairro, a educação, a cultura. A terceira idade, a diversidade étnica e cultural bem necessitam disso.

Que futuro para a Bela Vista?

A Bela Vista é um problema, mas também um desafio e uma oportunidade de se desenvolver uma acção transformadora

Aos moradores, uns já desencantados outros em vias disso urge apresentar sinais rápidos e visíveis.

Já há estudos e diagnósticos que cheguem. Às vezes até parece que alguns, uns atrás dos outros, servem para técnicos ganharem dinheiro e para políticos apresentarem conclusões.

Soluções radicais? Um processo de transformação?

Demolir o bairro da Bela Vista à semelhança do que foi feito noutros países e transferir a população para novos bairros construídos com dinheiro da venda dos terrenos? Requalificá-lo com intervenções também no interior das habitações? Demolir partes do Bairro apenas?

Problemas muito difíceis, atendendo ás dimensões do bairro e ao facto de várias das habitações pertencerem já aos respectivos moradores.

Não há soluções fáceis. A responsabilidade é de todos, embora em graus diferentes, instituições públicas e cidadãos, pois estão em patamares e responsabilidades diferentes. Mas nenhum por si mesmo, sem um projecto aglutinador poderá ensaiar respostas que erradiquem as causas profundas da exclusão social e da violência.

E assim, há que saber quais e como articular medidas e acções de curto, médio e longo prazo.

Sem o envolvimento da população nada de estável e promissor será feito. E isso implica um plano de proximidade dos poderes responsáveis, um ouvir os problemas e soluções propostas pelos moradores. Com eles iniciar-se ou ampliar-se uma cor responsabilidade organizada, comissões de moradores, de condóminos e dum conselho geral do bairro.

Mas também e torna claro: poderes públicos, autarquia (proprietária do bairro) e governo têm de fazer mais e melhor. Suspenso o Proqual (Plano de requalificação das zonas sub urbanas) o bairro foi votado ao esquecimento pelo governo.

 A autarquia incapaz de proceder a uma requalificação de fundo reclama do governo a sua imediata intervenção.

 Só o esforço conjugado dos vários poderes públicos, instituições que trabalham no bairro e população poderá aurir uma esperança duradoura.

Começar já!

É necessário dar uma cara nova ao bairro, pintá-lo e proceder a pequenas e fáceis reparações, cuidar dos espaços verdes nos pátios interiores; seriam passos que trariam o sinal de que algo vai mudar! A mão-de-obra procedente do bairro seria prioritária na constituição de equipas de trabalho.

Teremos de esperar por novos focos de violência para que se acorde de vez? É que os tumores e os cancros sociais podem rebentar de forma fatal.

O bairro está doente. Os cuidados paliativos são inadequados. É preciso ter a corarem e de ir às suas causas e removê-las.

 Quanto ao povo, um já desencantado outro habituado, vai contendo o seu sufoco e perde a oportunidade única de viver com alegria o resto dos dias da sua vida.

Constantino Alves (Pároco da paróquia de Nª Sr.ª da Conceição)

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