O embaixador de Portugal junto da Santa Sé esteve com Francisco, em visita de despedida, após a exoneração do diplomata e nomeação como representante de Portugal na Haia, Países Baixos
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Que balanço faz deste percurso de quatro anos e meio como representante de Portugal junto da Santa Sé? Como foi a proximidade com o Papa Francisco?
O balanço que eu faço tem duas componentes. Aquela que interessa mais certamente ao público em geral é o balanço oficial, político, diplomático. Depois é, evidentemente, o balanço pessoal, humano. Tratando-se da representação junto do chefe da Igreja Católica, naturalmente que estas duas componentes, por vezes, se misturam, e bem.
Posso dizer que agradeci ao Santo Padre, quando me fui despedir, pelo facto de ele durante o meu mandato ter tomado decisões que reforçam a presença de Portugal na sua relação diplomática com a Santa Sé, e que exaltam de alguma maneira a nossa vocação e o nosso contributo como Nação e como indivíduos que fazem essa Nação. Falo, nomeadamente, da designação, a eleição de dois cardeais: o senhor D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, e o senhor D. José Tolentino de Mendonça, para o colégio pontifício.
Isso de facto, creio eu, é a primeira vez na história que Portugal tem cinco cardeais no colégio cardinalício e que muito admira muitos dos meus colegas que ficam impressionados com isso. Isso naturalmente é um facto que eu agradeci ao Santo Padre.
Soma-se a esse facto a escolha de Lisboa para sede da próxima edição da Jornada Mundial da Juventude. Isto é um sinal da atenção especial por Portugal? Sentiu esse carinho do Papa?
Desde o primeiro dia que me encontrei, quando apresentei credencias em novembro de 2017, e disse isso ao Santo Padre, que era uma grande honra poder ser o continuador de uma longa história de relações entre Portugal e a Santa Sé que tem 900 anos. E o Papa disse-me que tinha uma grande admiração por Portugal e pelos portugueses, até porque os conhecia pessoalmente na sua vida familiar em Buenos Aires, onde tinha contactado com colaboradores do seu próprio Pai que eram portugueses. E tinha ficado com grande respeito, com grande admiração pelo sentido de família, pela seriedade, pela entrega ao trabalho dos portugueses. E isso desde o início me marcou. Essa admiração do Santo Padre por Portugal e pelos portugueses. E como disse essa escolha de Lisboa para sede das próximas Jornadas Mundiais da Juventude, significa também isso. Temos de ler isso nesse sentido.
Houve muitos contactos, nos últimos meses, sobre os preparativos desta JMJ em Lisboa? A anunciada presença do Papa pode ser um estímulo para o país, no pós-pandemia?
Acho que sim. Eu tenho acompanhado ao longo destes anos a preparação, quer junto aqui dos dicastérios, quer junto do Patriarcado de Lisboa. Naturalmente que a pandemia veio aqui introduzir uma perturbação na organização. Esperamos que as coisas evoluam no sentido mais tranquilo e que nos permitam agora apressar mais essa preparação que é fundamental. E eu diria que vejo aqui um desejo imenso de retomar a normalidade e poder realizar as Jornadas Mundiais da Juventude – esse reencontro dos jovens com o Papa em grande massa – poder realizar-se efetivamente, e ser um bom sinal de esperança.
Mas estamos perante atrasos recuperáveis?
Sim, claramente. Esta é uma organização que não depende só do dicastério de Roma e do Patriarcado de Lisboa e das autoridades civis nacionais, nomeadamente municipais. Depende também das organizações que cada diocese no mundo vai fazendo em preparação para estas jornadas, porque o desejo é que venham o maior número de jovens possíveis do mundo inteiro. Naturalmente que as dificuldades, os efeitos que a pandemia tem provocado, e pode continuar a provocar em vários níveis, na vida das pessoas pode condicionar isso. E por isso, é que é preciso apressar a preparação para não perdermos mais tempo, mas isso cada diocese terá que o fazer na medida das suas circunstâncias, das suas capacidades e possibilidades. Vamos todos desejar que isso aconteça.
Há aqui um fator incontornável nesta equação que é a figura do Papa Francisco. Que mensagens fortes guarda das intervenções do Papa, em particular neste momento de várias crises?
Bem, eu diria que as intervenções de Sua Santidade são sempre pautadas por uma enorme experiência, uma enorme ponderação e uma enorme preocupação pelas grandes questões e os grandes problemas e grandes crises que a humanidade enfrenta. Repito muitas vezes em respostas a quem me faz perguntas sobre essas matérias que Paulo VI, quando foi à Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque nos anos 60, disse exatamente que a Igreja Católica é perita em humanidade. E é de facto essa preocupação, e essa experiência que o Papa Francisco transmite em todas as suas comunicações. A sua preocupação com as pessoas em concreto. A Igreja Católica e o Papa Francisco não têm, evidentemente, preferidos, não têm interesses investidos. A Igreja Católica, o seu interesse é tratar, não em conceitos abstratos, mas no concreto. A Humanidade são pessoas concretas, e, portanto, quando há um problema num país, numa região, uma pandemia, questões desse género; o Papa Francisco está ali para dizer palavras de justiça, palavras de respeito pela dignidade humana. Veja-se o que tem sido todo o discurso do Papa Francisco no que diz respeito às questões dos refugiados e emigrantes. É uma preocupação concreta e que vai contra muitos interesses instalados, de ambos os lados.
As preocupações apresentadas pelo Papa Francisco relativamente a cenários de guerra, fome, migrações forçadas, são acompanhadas por Portugal? Deveriam ser mais ouvidas pelos responsáveis internacionais?
Absolutamente. Eu percebo que cada país tem um conjunto de interesses a defender e nem todos estão nas mesmas circunstâncias; agora o apelo de uma voz com a autoridade moral que o Papa Francisco tem ao mundo em geral para as preocupações concretas das pessoas não devem ser ignoradas pelos responsáveis políticos, se querem cuidar do bem-estar das suas populações e do desenvolvimento do seu próprio pais.
Há um comentário extraordinário que eu ouvi há uns meses atrás do Dr. António Vitorino, diretor-geral da Organização Mundial das Migrações numa conferencia para a qual o convidei, na Universidade Antoniana, Universidade dos Franciscanos, a propósito exatamente dos 800 anos do encontro entre Santo António e São Francisco. O tema escolhido foi a migração e o acolhimento das migrações; palavra muito cara ao Papa Francisco. E nessa conferência o Dr. António Vitorino diz uma coisa extraordinária. Durante a pandemia se houve sector afetado foram evidentemente os migrantes e os refugiados porque muitos deles perderam empregos e rendimentos. Mas o que é certo é que a remessa de dinheiro que os emigrantes fizeram para os seus próprios países, e para sustentar as suas famílias permaneceram ao mesmo nível, não reduziram. Portanto, este sentido da solidariedade humana que os próprios migrantes têm, e nós portugueses sabemos o que isso é; é de facto comovente, porque mesmo em grandes dificuldades a essência básica das necessidades das suas populações de origem puderam ser de alguma maneira ajudadas com essas remessas dos emigrantes que não baixaram. E isso é um sentido de solidariedade extraordinário que o Papa Francisco tem falado muito.
Uma das situações para a qual o Papa chamou a atenção, numa das suas mensagens ‘Urbi et Orbi’ foi a crise humana em Cabo Delgado, norte de Moçambique, provocada pelo autoproclamado ‘estado islâmico’. Não chegou tarde à atenção da comunidade internacional?
Provavelmente, também houve preocupações imediatas, do próprio Governo português junto da União Europeia, pressionando para isso. A situação é muito delicada, até para Portugal, como ex-potência colonial, era sempre difícil estar a intrometer-se excessivamente nessa questão, mas manifestando as suas preocupações. É evidente que estivemos em absoluta sintonia com o Santo Padre, nessa altura, e estamos sempre. Aliás, faz parte dos primeiros artigos da Concordata esse entendimento comum entre a República Portuguesa e a Santa Sé, no que diz respeito à defesa da justiça, da paz, da dignidade humana. Temos estado em muita consonância.
Mas essa intervenção do Papa Francisco, em relação a Cabo Delgado, foi decisiva, do seu ponto de vista, na projeção que o assunto veio a ter perante a comunidade internacional?
As vozes autorizadas que falam sobre o assunto ajudam e a voz do Santo Padre, neste assunto, ajuda. Ele e a Santa Sé estão sempre atentos, porque estão preocupados. Todos sabemos que a capilaridade da Igreja fá-la chegar mais cedo e mais perto das populações do que a maior parte, senão qualquer um dos outros Estados.
Nesse aspeto há uma mais-valia da Igreja, neste caso da Santa Sé, em termos de conhecimento atual da realidade que a comunidade internacional deve aproveitar e tem aproveitado.
No seu último discurso ao corpo diplomático, a 10 de janeiro, o Papa lamentava a “crise de confiança” na diplomacia, pedindo uma aposta da comunidade internacional no multilateralismo. É um alerta cada vez mais válido…
Sim, aliás, também de novo em grande consonância com a nossa própria posição como país. Para nós, Portugal, é de todo o interesse apostar no multilateralismo, e nesse aspeto a advocacia papal em relação a essa matéria é fundamental. É um elemento essencial que mantenhamos vivas as instituições internacionais que promovem o entendimento entre as nações, a concertação, a cooperação internacional, é fundamental. Quando há todas estas tendências nacionalistas e populistas que afastam da centralidade da cooperação, é isso que nos preocupa. O Papa pode ajudar-nos bastante, nessa medida, e os seus discursos são ouvidos, com certeza. Por alguma razão a Santa Sé tem relações diplomáticas com cerca de 200 países, praticamente a totalidade da comunidade internacional. E nesses, cerca de 90 têm representação efetiva, permanente, e não são só os católicos nem os cristãos… Há um auscultar internacional muito vivo, muito atento àquilo que Santa Sé diz, sabe, conhece e promove.
É essa falta de diplomacia e de aposta no diálogo a principal responsável pelo acentuar da tensão entre Rússia e Ucrânia?
Não me vou referir em concreto a nenhum conflito no mundo, isso não é da minha competência, mas sei que o Papa se preocupa imediatamente com todos as erupções de conflito que acontecem no mundo e as catástrofes. Como sabem, não há oração do ângelus ou ‘Urbi et Orbi’ em que esses temas concretos da atualidade deixem de ser referidos…
Na quarta-feira o Papa convocou um dia de oração pela paz, lembrando a Ucrânia. As televisões repetiram a mensagem, voltaram ao tema ao longo da semana. Esta chamada de atenção pode despertar consciências para conflitos que são esquecidos?
Absolutamente, por isso é que o Papa o faz: sente uma pressão para o fazer, da consciência e do conhecimento que tem diretamente, das populações. Obviamente, não olha por cima desses temas, vai diretamente a eles, fala e pede orações. Na audiência geral de quarta-feira fê-lo com mais ênfase, rezou em conjunto o Pai-Nosso pela paz na região, há efetivamente uma preocupação atenta do Santo Padre em relações às crises que estão a rebentar, a surgir, e que podem ser devastadoras para as populações.
Como classifica as relações entre Portugal e a Santa Sé? Há algum tema que mereça uma atenção particular, em relação à aplicação da Concordata, por exemplo?
Felizmente, as relações estão estupendas. Não sou só eu a achar, a própria Secretaria de Estado do Vaticano menciona isso. O monsenhor Gallagher [D. Paul Richard Gallagher], o “ministro dos Negócios Estrangeiros” de sua santidade, se assim se pode comparar, esteve em Lisboa no último mês de novembro, a convite do senhor ministro Augusto Santos Silva. Era um desejo que tinha, que foi sendo adiado mas que, finalmente, foi realizado, e ele ficou muito contente com essa visita. Houve um grande entendimento de posições.
O presidente Marcelo Rebelo de Sousa esteve aqui em março de 2021. Em fevereiro, o substituto da Secretaria de Estado do Vaticano [D. Edgar Peña Parra] irá ao Porto e em maio vai presidir às celebrações em Fátima: será uma ótima ocasião, dadas as suas responsabilidades políticas e administrativas, dentro da Santa Sé, de falar com as autoridades portuguesas, com a Igreja em Portugal, sobre temas que nos interessam, nomeadamente a organização das Jornadas, obviamente.
Na sessão de cumprimentos de Ano Novo, com o corpo diplomático, Marcelo Rebelo de Sousa elogiou o “exemplo inspirador” do Papa Francisco, no seu combate pela dignidade das pessoas, a sua vida, liberdade e igualdade…. São características que destacaria na personalidade do Papa?
Claramente, até pela sua origem e formação como religioso latino-americano e jesuíta. No fundo, creio que é um sacerdote com vocação missionária, desde o início, o que faz dele uma pessoa atenta aos outros, atenta aos pobres, atenta aos marginalizados, o que tem sido a orientação das suas viagens pastorais, indo às margens do mundo, da Cristandade, visitando países onde há pequenas comunidades católicas. E também enfrentando as dificuldades de uma visita ao Iraque, contra a opinião de toda a estrutura da Cúria e de muita gente, mas na qual insistiu, pessoalmente, porque faz parte da sua vocação missionária ir ao encontro das pessoas e preocupar-se com os que mais sofrem.
Houve contactos com outros embaixadores lusófonos para procurar valorizar a língua portuguesa na Santa Sé? Que pode ser feito para que isso aconteça?
Procurei sempre manter com os meus colegas de língua portuguesa uma articulação sobre essa matéria, como os meus antecessores fizeram. Houve, inclusivamente, diligências concretas junto de dicastérios para que a língua portuguesa não deixe de ser uma língua de trabalho, que felizmente ainda é, em várias componentes da divulgação oficial das intervenções de sua santidade. Ainda há um caminho longo a percorrer.
Não podemos estar sempre à espera que seja a própria Cúria [Romana] a fazê-lo, temos de contribuir para isso, porque à Cúria, no fundo, é formado pelo contributo das próprias Igrejas, no mundo inteiro. Temos de estar disponíveis, também, para dar o nosso próprio contributo à Santa Sé, para que a língua portuguesa não seja tratada a um nível menos consentâneo com a sua dimensão. Nesse aspeto, compete aos diplomatas, religiosos, comunicação social poder chamar a atenção para isso, que também somos Igreja.