Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve
Quando se passa aquele portão de ferro pela primeira vez somos impelidos ao silencio. Por ninguém. Por toda a Humanidade que, ali, verdadeiramente soube que tem a capacidade de se autodestruir, que tem a capacidade de acabar com a sublime obra da criação divina: o homem. Nesse momento, pensamos que não há nada mais aterrador, mas ali ao lado está o que resta de uma alta indústria de destruição, pela qual simples seres humanos eram incinerados, como se fossem lixo sem qualquer utilidade, ou até altamente toxico. Pensava que seria diferente da segunda vez. Não foi. Provavelmente não será na terceira, nem quarta, nem em todas aquelas em que lá entrar. O silencio não sai. Fica. E vem connosco, permanecendo durante muito tempo como a única resposta, o único sentido que conseguimos dar ao que está subjacente a tudo aquilo. Nem que seja para lembrar quem está por detrás de todo o sofrimento que se viveu em tão poucos metros quadrados, sem saber porquê.
Para quem ainda precise de revelação, relato o que vivi quando entrei no complexo de campos de concentração e extermino nazi de Auschwitz-Birkenau, na Polónia. Há muitos outros campos de concentração e extermínio nazi, mas sem dúvida e infelizmente, este será o complexo mais conhecido, o nome que todos associamos ao horror. E está na Polonia. Para que a Humanidade não se esqueça que se pode aniquilar.
Aliás, se há terra que presenciou sofrimento, morte, extermínio, perseguição é, precisamente, a Polónia. Sem entrar em debates históricos anteriores, aquela terra (a designação de país pode levar a equívocos, uma vez que os limites fronteiriços foram alterados com conhecida polémica) assistiu, para além da dor e morte do próprio povo, à dor e morte de judeus, ciganos, homossexuais e todos os demais que não eram dignos de existir, segundo o critério nazi. Após a II Guerra Mundial seguiu-se uma dolorosa perseguição a todos os que contrariavam a ditadura comunista, procuravam não ser escravizados pelo estado e lutavam pela democracia, na qual pudessem pensar e viver livremente. Para sobreviver a tudo isto, só mesmo com a ajuda de Deus e seguindo o exemplo de Jesus Cristo. Compreende-se, pois, porque é que a Polonia é o país mais católico da Europa. Foi o catolicismo que ajudou este povo a resistir e a ter força para superar mais de 50 anos de dor e morte, sempre presentes na sua história recente.
Porém, está na altura da Polónia se lembrar da parábola do bom samaritano, de se lembrar e perguntar como o Doutor da Lei (Lc 10, 25-37) a Jesus, fazendo da presença dos seus famosos campos de concentração e extermínio, não uma ténue lembrança do seu passado, explorada turisticamente, mas um sinal eficaz de que somos iguais aos olhos de Deus, TODOS SOMOS IGUAIS AOS OLHOS DE DEUS, porque somos o próximo de alguém. O Papa Francisco cita, no documento de Abu Dabi, o aiatola al-Sistani, numa frase que resume tudo isto: «Os homens são ou irmãos por religião, ou iguais por criação». Como podem os católicos polacos, entre eles os seus governantes, perseguir aqueles que, chegando à sua fronteira em busca de comida, bebida, de refúgio, pedem ajuda? Como podem os católicos polacos defender a construção de muros nas suas fronteiras?!… Esqueceram-se do que sofreram e viram sofrer. Auschwitz-Birkenau estão ao seu lado, cheios de um eloquente silêncio, que grita para que ninguém se esqueça do valor que cada vida humana tem, independentemente de qualquer etnia, origem ou condição.
Não consigo compreender como os católicos tradicionalistas polacos, em outubro do ano passado, em plena pandemia COVID-19, lançaram uma campanha pública contra a comunhão na mão nas celebrações eucarísticas. Serão, agora, os mesmos que estão na linha da frente contra o acolhimento dos refugiados, na fronteira deste país com a Bielorrússia… O mesmo Senhor que esta presente na Sagrada Eucaristia, que tanto apregoaram defender, está presente no irmão que nos chega em sofrimento. Está presente, também, naquele que dá auxílio, ajuda, acolhimento. Foi esse o exemplo que Jesus Cristo nos deu e narrou na parábola do bom samaritano, que serve de inspiração à encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco.
Não somos cristãos católicos se não recebermos quem chega à nossa casa e precisa de refúgio e de uma vida digna.
Comentário ao artigo: «Auschwitz-Birkenau grita: “Não se esqueçam do vosso passado!”»