Atrever-se a acreditar na família como dom

Estamos a encerrar a peregrinação arciprestal ao Santuário da Penha. Devemos ter diante de nós que a peregrinação deve ser momento para reflectir para partilhar o que vivemos. Peregrinar, reflectir, partilhar é o trinómio que tem norteado todas as peregrinações da Arquidiocese. Peregrinando, estamos a aceitar que a Igreja é o Povo de Deus em caminho não ao lado da história humana mas integrado nas vicissitudes dum mundo que nos envolve. Não nos identificamos com o mundo mas estamos no mundo e, segundo o Evangelho de hoje, não para ser um exército declarando guerras e condenando quem vive dum modo diferente. Queremos construir uma torre, ou seja, algo visível e que possa mostrar com clarividência quem somos pondo, deste modo, em questão tantas outras maneiras de interpretar a vida. Esta edificação da torre exige muita reflexão e ponderação. Os cálculos nunca estão efectuados. Necessitamos de os actualizar para que as intempéries não destruam quanto vamos edificando. Não pensar pode ser sinónimo de fracasso e desilusão. A peregrinação ao Santuário da Penha acontece, sempre, no início do Ano Pastoral. É uma coincidência feliz para que o arciprestado reinicie a caminhada dum novo ano pastoral em sintonia com a diocese e entre todas as comunidades. Sabemos que o Programa Pastoral não é opção facultativa. É algo normativo que os cristãos assim como as comunidades paroquiais e todas as instituições eclesiásticas, nomeadamente as Irmandades, devem interpretar. Celebrar 60 anos da dedicação deste Santuário é mais um motivo para dar atenção à história e tornar-mo-nos fiéis aos apelos da Igreja nos tempos que passam. No itinerário delineado, de trabalho sobre a família, este ano queremos recolher quanto semeamos durante dois anos para dar profundidade a uma pastoral familiar verdadeiramente interpelativa. Se os anos anteriores foram de alheamento ou sonolência, infelizmente sei que é isto que acontece em algumas comunidades, devemos aproveitar o tempo perdido e acreditar que ainda vamos a tempo. Assim o queiramos. Temos diante de nós um novo Programa sintetizado no lema: «Família, dom e compromisso». Que poderá dizer isto aos casais e às paróquias? Será de mais, junto da Senhora da Penha, pedir às Famílias cristãs que parem um pouco, se sentem para dialogar, efectuem um pouco de silêncio para ouvir que Deus, no meio de tanta confusão comunicada por todos os meios e acreditar que a felicidade que as famílias pretendem se encontra num dom que Ele e mais ninguém quer fazer? Evidentemente que este dom suscita compromissos concretos que parecem anquilosados e doutras épocas. As coisas de Deus não se demonstram nem passam pela publicidade. Vivem-se e quanto mais se interiorizam mais felicidade proporcionam. Caríssimas famílias, parai e acolhei o dom de Deus. Também aqui, junto da Senhora, coloco todas as paróquias, em primeiro lugar do arciprestado de Guimarães mas, em simultâneo, de toda a Arquidiocese e peço-lhes que não iniciem o ano entrando na corrente do sempre igual. Que ousem parar para, em comum, em Conselho Pastoral, e envolvendo todas as pessoas empenhadas, compreender o que importa realizar para que as famílias todas, mesmo aquelas indiferentes, tenham o que é necessário para compreender o dom que Deus é para elas e empenhar-se em compromissos de quem acredita que o futuro da humanidade passa pela família. Sabemos que as nossas famílias navegam em águas inquinadas de diversa proveniência. Bastará refugiar-se numa pastoral do “sempre o mesmo” que já não convence ninguém? Pode parecer que as forças adversas são superiores. A primeira leitura alerta para o essencial. «Quem poderá conhecer, Senhor, os Vossos desígnios, se Vós não lhe dais a Sabedoria e não lhe enviais o Vosso Espírito» (Sab. Primeira leitura). Para deixar-se conduzir pela Sabedoria teremos de suscitar um encontro com a Palavra de Deus. Estamos, na verdade, a verificar, que na confusão dum subjectivismo, muita gente está a descobrir a Palavra de Deus. Se muitos a desconsideram, muitos a procuram. São verdadeiras as palavras de Amós: «Dias virão em que vou mandar a fome sobre o país: não será fome de pão nem sede de água, mas fome de ouvir a palavra de Deus» (Amós 8,11). Sabemos que persiste a fome de pão mas o mundo necessita – e começa a manifestá-lo – da Palavra. É esta que a comunidade deve anunciar e celebrar. A condição para que as famílias acolham o dom de Deus está no compromisso duma Pastoral que oferece mais Palavra de Deus e menos moralismos. Só a Palavra liberta e sugere caminhos de autêntica realização humana. A Segunda Leitura dá-nos um exemplo elucidativo. S. Paulo escreve a um seu discípulo (Filemon) para que acolha o seu escravo que o tinha abandonado. Não era costume e a lei condenava. S. Paulo ultrapassa os raciocínios humanos e pede que o receba «como a mim próprio» pois ele, na fé, tornou-se «irmão muito querido». A mentalidade hodierna manifesta o critério da defesa da dignidade pessoal em confronto com os outros. Vale o que “penso e quero” e os outros devem submeter-se à minha maneira de pensar e viver. Daqui surgem as violências domésticas, a autonomia dos filhos perante os pais, a emancipação da mulher, a desconsideração da vida a nascer. Há fórmulas de autêntica «escravatura» camuflada em muitas famílias. Atenuaram-se as aparências e, em muitos casos, pretende-se impor a imagem de famílias exemplares. Acontece, porém, que a realidade é totalmente diferente. Se os cristãos forem capazes de seguir o conselho de S. Paulo o cenário amargo de muito sofrimento dentro de muitas casas desaparecia. Aqui está a força da Palavra de Deus. A comunidade familiar deve ser, efectivamente, esta convivência quotidiana entre pessoas que consideram os outros como «irmãos muito queridos» a quem se faz ou deixa de fazer algo «como a mim próprio». Esta regra de ouro pode tornar as famílias geradoras de felicidade. É esta a missão da Igreja. Há aqui uma novidade desconhecida. Quase sempre ostentamos a bandeira das obrigações, com exigências permanentes, e não pensamos naquilo que a comunidade paroquial deve proporcionar. Há comunidades paroquiais que só esperam, quando deveriam ir ao encontro de todas as famílias com iniciativas estimuladoras da vivência da vocação matrimonial para este viver, na alegria, como “irmãos muito queridos”. Se a família é um dom de Deus e deve tornar-se compromisso na Igreja e na Sociedade, a Igreja tem a obrigação de ser dom para a família. Como o fazer? Maria, em Caná da Galileia, mostrou um carinho e uma ternura muito grande por aquela família. Que Ela suscite em todos os sacerdotes e em todos os cristãos empenhados, individualmente e em grupos, uma paixão pela família. A família é a torre a edificar pelas comunidades paroquiais. Como fazer? Paremos, reflictamos, troquemos ideias, respeitemos os ritmos de crescimento. O Espírito suscitará as respostas oportunas a problemas candentes que teimamos em não querer ver. A lei de «ver-se» no outro é o caminho a seguir. Sejamos intérpretes dum Programa Pastoral que, sendo Arquidiocesano, deve encontrar caracterizações em todas as paróquias. Não será esta a melhor maneira de recordar quantos deram vida a este Santuário? Eu quero agradecer a todos, vivos ou falecidos, o amor pela Penha. Espero que o Santuário seja esta Torre esplendorosa a mostrar os dons de Deus e a suscitar compromissos para, através das famílias, criarmos um mundo melhor. Que Nª. Sra. da Penha agradeça a todos e nos dê força para continuar a construir uma Igreja, corpo de Cristo, visível. Peregrinação à Penha – 09/09/2007 † Jorge Ortiga, A.P.

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