Entrevista a D. Carlos Azevedo D. Carlos Azevedo explica à Agência ECCLESIA quais as dimensões principais em que a vida e obra de D. António Ferreira Gomes continuam actuais, para a Igreja e a sociedade portuguesas. Agência ECCLESIA – D. António Ferreira Gomes continua presente na vida da Igreja em Portugal? D. Carlos Azevedo – A figura marcante que D. António foi para a história da Igreja portuguesa na segunda metade do século XX não se circunscreve a esse arco de tempo, mas nós temos geralmente pouca capacidade para aprender as lições do mestres. Em Portugal, desdenhamos muito daqueles que foram verdadeiros mestres, porque estiveram um pouco acima do seu tempo… AE – Está esquecido? CA – O pensamento de D. António Ferreira Gomes tem merecido estudo, não só publicações de obras inéditas. Ele foi, fundamentalmente, um Bispo, em tudo e sempre, tudo o resto parte daí. Foi como Bispo e homem da Igreja que ele tomou posição perante o Estado Novo, não como político, como alguns denegriram e acusaram e alguns Bispos incompreenderam. Como homem da Igreja, pensava o mundo e as realidades segundo princípios cristãos, ele que era filósofo de formação. Aliás, antes de ser Bispo ninguém falava dele e não publicou nada, a não ser um peça sobre a vida do Beato Nuno Álvares Pereira, porque achava que ele se tinha destacado por uma posição nova em relação às propostas do tempo, para Portugal. D. António disse que nunca ninguém pegou na sua visão do Beato Nuno, tinha desgosto por isso. AE – Como compreender o pensamento deste Bispo? CA – A sua visão do papel da Igreja assenta na comunhão episcopal. Não é por acaso que as “Cartas ao Papa” (um género literário que utilizou muitas vezes), o seu testamento espiritual, são um texto desafiador, porque ele passou o drama de ser acusado de não respeitar a comunhão na Conferência Episcopal. Quando em 1956, ele propôs uma carta pastoral colectiva do episcopado sobre a questão do Estado Novo, os Bispos não acolheram a ideia. Fruto dessa recusa em tomar uma posição colectiva, ele viu-se obrigado a tomar uma posição individual, pela obrigação de ser Bispo. Ele soube distinguir entre comunhão colegial e uniformidade calada. Isso é fundamental: um Bispo está em comunhão com o Evangelho, está em comunhão com Cristo, está em comunhão com a Igreja e, por isso, não pode deixar de falar em determinadas circunstâncias e fazer a denúncia crítica daquilo que, dizendo-se católico, não é segundo a Doutrina Social da Igreja (DSI). Ora, o corporativismo do Estado Novo, apesar de ser considerado por muitos como de influência católica, foi denunciado por D. António como contrário à DSI, a sua grande luta nos anos 50, até ao exílio. AE – E depois do exílio? CA – Depois dá-se o Concílio, no qual ele tem intervenções sobre a liberdade religiosa e a dignidade da pessoa humana, que serão editadas brevemente. As suas intervenções, com as de D. Sebastião Soares de Resende, foram as únicas de interesse dos nossos Bispos, no Concílio, sinal de uma reflexão que era feita. Na altura não tínhamos teólogos capazes – a Faculdade de Teologia só começou a funcionar de pois do Concílio – e não havia pessoas preparadas para acompanhar os nossos Bispos. Há uma fase de magistério rico e abundante, entre 1969 e 1989, ano da sua morte, em que ele tenta, fundamentalmente, aplicar o Concílio à Diocese. Aí com órgãos de co-responsabilidade pioneiros em Portugal: criou o Conselho dos Leigos, que depois foi extinto; criou o Conselho Presbiteral; o semanário “Voz do Pastor” passou a ser “Voz Portucalense” – uma atitude nova em relação a um órgão que não deve ser a voz do Bispo, mas a voz da Igreja; criou a Comissão Diocesana Justiça e Paz mesmo antes de haver uma Comissão Nacional. Destaco ainda a sua concepção do papel da Igreja na sociedade, como uma proposta de educação da liberdade e para a paz. As suas homilias para a paz, que estão reunidas num volume, são uma doutrina larga sobre a paz, que foi estudada já em três teses de doutoramento. Após o 25 de Abril, ele reflecte sobre o valor da democracia e os limites para a liberdade. Essa reflexão merecerá ser lida e revisitada, ainda hoje. AE – Há discípulos deste mestre nos nossos dias? CA – Penso que aqui, como ele não se preocupou por ter um pensamento inovador – ele teve foi uma intuição, para ser capaz de aplicar os princípios para aplicar à realidade do presente – aqueles que ele formou, os que ficaram marcados por ele, lembram a sua atitude de homem de Igreja. Essa é a sua maior herança e o maior legado que ele deixou: não tanto as suas ideias, mas a atitude com que ele foi Bispo, a atitude com que ele foi homem de Igreja. Esta atitude profética, corajosa, de liberdade com raízes profundas, conquistada, construída e pensada, de um homem que se obriga a pensar os problemas da Igreja, é aquela atitude com que alguns, certamente, ficam marcados e procuram seguir o caminho aberto por ele, de frontalidade, de verticalidade granítica, como gosto de dizer, que não se deixa torcer pelos mecanismos do poder, por favores e compromissos facilitadores dos princípios. É essa energia vigorosa na defesa dos valores e dos princípios do Evangelho e da vida cristã que transparece da sua vida, tendo consciência da complexidade humana e estando muito atentos – algo que era muito próprio de D. António, que procurava sempre ler a realidade e os sinais do tempo, não no vago, mas procurando responder às questões. Quem tem princípios orientadores bem radicados, não tem medo de certas expressões e ele dizia mesmo que não tinha medo, sequer, de quem não acredita, mas procura a verdade, porque se a procura, estamos no mesmo caminho. AE – Uma abertura de espírito que apaixona… CA – Esta confiança no ser humano, como capaz da verdade, de sinceramente a procurar, fez com que muitos se aproximassem dele. Foi graças à sua inteireza de carácter que antes e depois do 25 de Abril que muitos não entenderam. Alguns apoiaram-no porque parecia que ele era contrário ao regime de Salazar, mas quando D. António disse ao regime do pós-25 de Abril que havia limites às atrocidades, parecia que era do antigo regime. Aí se viu que era homem de um só parecer, que não fazia cedência às cores da época, mas mantinha sempre a sua fidelidade à Igreja. AE – E se vivesse hoje? CA – O seguimento que podemos ver nalgumas pessoas que admiram D. António é sobretudo o da atitude de abertura ao mundo, de acompanhamento do que se passa, sendo capaz de pensar o país, de problematizar as questões e de as iluminar com reflexão, para que não andemos continuamente a reboque da realidade, mas orientemos e influenciemos os diferentes poderes para que eles actuem de modo mais correcto. Esta sua atitude é que continua a ser provocante.