«As pessoas têm de ser cuidadas e não é só com um prato de sopa» – Pedro Raúl Cardoso

Diretor de um dos centros sociais mais ativos em Lisboa, Pedro Raúl Cardoso fala das consequências dramáticas que a ausência prolongada de convívio e socialização está a ter em muitos idosos

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: Renascença/Miguel Rato

O Centro Social e Paroquial de Arroios tem sido pioneiro em vários projetos diferenciadores no apoio aos idosos. Como é foi voltar a abrir o Centro de Dia? Era um momento esperado?

Estamos ainda a estudar como fazer. Neste momento temos respostas acopladas, no mesmo espaço coabita uma outra resposta que é o Centro de Noite, e descanso do cuidador, que desde março do ano passado tem sido uma resposta altamente requisitada. Como damos um sem número de respostas a pessoas muito envelhecidas – estamos a falar de uma média de idades de 90 anos -, que mantinham a rotina de ir para o Centro de Dia, mas à noite iam para as suas casas, incluindo aos fins de semana e tudo mais, a verdade é que estando suspenso o Centro de Dia, essas pessoas nunca poderiam ficar sozinhas em casa, e portanto a resposta do Centro de Noite ficou lotada. Nesse sentido, ainda estamos a estudar a hipótese de como é que vamos abrir.

 

Então, na prática ainda não abriram?

Ainda não abrimos na totalidade, estamos a estudar a forma, porque não podemos cruzar as pessoas, e apoiamos muita gente com demência, o que é um enorme desafio. Como é que as pessoas não se cruzam umas com as outras? Como é que usam a máscara? Estamos a estudar essas hipóteses, até porque a Direção Geral de Saúde (DGS) também emitiu umas normas para os Centros de Dia acoplados, portanto, estamos neste momento a tentar responder de forma a que, pelo menos nesta primeira fase de reabertura possamos fazê-lo dentro de uma semana a 15 dias. Como também temos médico, temos um corpo clínico, decidimos em equipa que provavelmente não seria muito prudente reabrir já dia 5. E esperamos também para ver o que é os números nos vão dizer depois da Páscoa…

 

Como é que a situação pandémica vai evoluir?

Exatamente, até porque poderemos estar aqui a dar bombons às pessoas…

 

Que depois têm de tirar….

Estarmos a desconfinar e depois voltamos a confinar, do ponto de vista até psicológico, e do dia a dia das pessoas, altera muito. Também tenho conhecimento de que os centros de dia não estão a reabrir todos na mesma fase. Há uns que nem vão reabrir, há outros que, como nós, estão a estudar a hipótese de reabrir em equipas espelho, uma semana vai um grupo, outra semana vai outro grupo, precisamente para que não haja um amontoado muito grande de pessoas.

 

Com o Centro de Dia fechado as pessoas continuaram a ser acompanhadas?

Sim. Aliás, dobrámos. Todas as pessoas do Centro de Dia, sobretudo as mais dependentes, que faziam ali todas as suas atividades da vida diária – recordo que o nosso centro tem um horário alargado, portanto, havia pessoas que até jantavam no próprio Centro de Dia, tomavam banho, faziam a vida toda, só iam dormir a casa e voltavam. Tudo isso foi reforçado com as equipas do apoio domiciliário.

As pessoas foram e estão a ser acompanhadas, consoante o nível de dependência mais acompanhamento temos. Reforçámos a nossa linha solidária, para as pessoas não se sentirem sozinhas e terem o acompanhamento do Centro Social à distância de uma chamada, e acudimos, obviamente várias vezes, mesmo durante a noite, por riscos de solidão.

Estamos a falar de quantos utentes, no geral, em todas as valências que têm?

Neste momento temos 85 pessoas em apoio domiciliário, 78 pessoas em Centro de Dia, mais um grupo de 28 pessoas naquilo que nós chamamos as ‘Repúblicas Sénior’, que são domicílios partilhados entre eles.

Esses projetos pararam? Ou tiveram mais procura?

Tivemos mais procura. Aliás, abrimos uma nova República, a ‘República do Amor’, que é uma república assistida, onde efetivamente essas pessoas que não têm capacidade para estarem em casa sozinhas e isoladas, estão dentro desta República e têm apoio. É a única República que tem apoio presencial 24 horas por dia, tem um turno de colaboradores que se vão revezando entre si para que as pessoas não fiquem desacompanhadas. Essa foi uma resposta que emergiu no tempo da pandemia.

Já percebemos que os desafios foram e são muitos. Nestes meses o que é que foi mais difícil de gerir?

O mais difícil de gerir… Primeiro foram as emoções. Porque entrarmos dentro de um equipamento que tem muita vida, e de repente olhamos para os corredores vazios, a gestão das emoções é, de facto, complicada… Depois gerirmos as relações, porque os afetos não se cuidam à distância, e às vezes basta um toque, basta um olhar para sanarmos a solidão. E esse foi o principal desafio.

Há um ganho que eu acho que tem de ser objetivado, que é a forma como todos os colaboradores corresponderam, com muito sacrifício pessoal e com muita abnegação, com um sentido enorme daquilo que é o cuidar do outro. Se, por um lado, no início da pandemia ficámos com metade de uma equipa – porque tiveram mesmo de ficar em casa para cuidar dos filhos, porque as escolas também fecharam, e tudo o mais – em todos aqueles que ficaram, de facto, houve um sentido enorme de serviço comunitário, e isso é de saudar, sobretudo num setor social e solidário muito pouco reconhecido, e até com tabelas remuneratórias muito pouco apelativas.

Outro dos ganhos foi, de facto, podermos recorrer ao Instituto de Formação Profissional (IFP), com resposta até muito rápida, para podermos ter equipas de retaguarda que nos pudessem ajudar a apoiar as pessoas, para que ninguém ficasse para trás. Porque, dado este absentismo das pessoas, justificado, teríamos de garantir as equipas espelho, trabalharmos uns numa semana, outros noutra, e recorremos ao IFP e tivemos, de facto, uma resposta muito positiva, rápida, e que deu muitos bons frutos.

 

Dizia há pouco que os afetos não se cultivam à distância. Que impacto real é que se pode avaliar que tenha tido nos idosos a ausência prolongada de convívio, de contacto físico e de socialização? Agudizou o isolamento?

Sim, sim. Temos aqui vários desafios ao nível do psicológico, desde logo pelas relações mantidas que se deixaram de ter, os hábitos, as rotinas. E quando falamos dos hábitos e das rotinas, se nos custou a nós, que somos mais novos, e às famílias, podemos imaginar o que é para uma pessoa com demência deixar de ter uma rotina…

Elas são estruturantes, não é?

Exatamente. O que estamos neste momento a sentir – passo a expressão – é que estamos a apanhar os cacos disto. Estão a chegar pessoas ao nosso Centro de Noite que em março (2020) tinham uma rotina, eram perfeitamente autónomas do ponto de vista funcional, e neste momento a sua funcionalidade é muito reduzida, estão votadas a uma cadeira de rodas. Tenho uma situação de uma pessoa que deixou de comer, de ter hábitos de comida, e vai definhando diariamente, o que é um risco enorme. Tivemos um senhor, também com demência e que faleceu há pouco tempo, que a 13 de março (2020) a sua funcionalidade e autonomia física era ótima, e com este tempo de confinamento acabou por acamar…

 

É uma espécie de pandemia escondida, essa perda de autonomia nos mais velhos que perderam as rotinas?

Sim. E depois, do ponto de vista psicológico, houve pessoas que se desorganizaram imenso, quer na lida da casa, quer na forma como tomam a medicação. Embora tivéssemos redobrado e reforçado o serviço. Tivemos equipas a ser contactadas à uma, duas, quatro ou seis da manhã, e qualquer um de nós estava disponível, mas a verdade é que houve enorme desorganização, quer do ponto de vista psicológico, quer do ponto de vista da mobilidade, da funcionalidade, dos hábitos, das rotinas. E também para aqueles que vivem com os seus próprios familiares. Neste momento temos famílias em perfeita exaustão porque estão há um ano fechadas com pessoas com demência, estão em teletrabalho, umas têm de cuidar dos filhos e dos pais, outras só dos pais.

 

Será que se exagerou nas restrições impostas nos lares e centros de dia? Seria possível fazer diferente, tendo em conta estas consequências a que agora assistimos na população mais idosa?

Eu não arrisco uma resposta científica, até porque isso ainda não está estudado, quando estudarmos isso provavelmente vamos ter uma resposta. Do ponto de vista empírico, eu até percebo, porque nós somos atolados de muita informação – no início, então, ninguém sabia o que era isto, sabíamos só o mau da pandemia, e o medo de que as pessoas idosas apanhando a doença morriam. Eu acho que pecámos um pouco por excesso devido ao medo e ao zelo, e este sentido, às vezes exagerado, de proteção dos mais velhos.

Nós não conseguimos avaliar o que é ficar confinado num quarto 24 horas. Em algumas situações nos lares isso aconteceu. Só consigo imaginar porque tive um surto de Covid através de uma pessoa e tivemos de confinar as pessoas aos quartos…

 

É uma questão que queríamos saber, se efetivamente tiveram a doença na instituição?

Foto: Renascença/Miguel Rato

Tivemos esta experiência, lidámos com ela sem pânico, porque o pânico muitas vezes retira o discernimento. As pessoas ficaram confinadas naquela semana, por ordem da saúde pública, e quando dissemos às pessoas que já podiam ir para a sala e podíamos conviver, notou-se efetivamente aquilo que foi o sentido de liberdade. Ficarmos fechados num quarto é uma coisa que é perfeitamente inimaginável…

Como é que depois nós, do ponto de vista da prática, lidamos com isso quando entramos dentro dos quartos, completamente mascarados, e as pessoas quase que não nos reconhecem… Levamos os fatos completos, nas zonas de confinamento, porque há suspeita de Covid, e isso é completamente a descaracterização do profissional. Nos próprios quartos, devidamente vestidos com máscaras, toucas, viseiras, completamente tapados, com as pessoas a perguntar “quem és?”. Do ponto de vista da relação, emocional, até humano – porque além de profissionais, somos humanos, lidamos uns com os outros e acabamos por ter muita afinidade -, sentir esta rutura, muitas vezes, é muito doloroso.

 

O centro tem médico, como disse há pouco. Também tem psicólogo?

Tem médico, enfermeiro, uma psicóloga e somos quatro assistente sociais, mais uma terapeuta ocupacional, um animador. Todos nós envidamos uma série de esforços. Aliás, o que se notou, também aqui nesta pandemia, é que este trabalho salutar entre o social e a saúde trouxe enormes ganhos. Lidamos e temos lidado com esta questão da Covid e não só – porque há outras patologias – de forma até muito natural, muito rápida, porque temos quem nos dê este suporte da área da saúde, trabalhando lado a lado connosco, porque as pessoas não só sociais nem só saúde. Temos de trabalhar esta dimensão num conjunto.

 

Há  um ano dizia que estava na hora de rever o modelo de acolhimento aos idosos, que os lares e Centros de Dia também prestam cuidados de saúde, por isso não deviam estar só na alçada da Segurança Social, mas deviam ser também tutelados pelo Ministério da Saúde. Houve alguma evolução nesse sentido?

Creio que não houve evolução nenhuma, até porque o setor social e solidário tem um protocolo, tem as normas, a cooperação que definem muito bem qual é o âmbito das suas respostas. O que continuo a defender, a pensar, é que – dada esta alteração demográfica e aquilo que é a exigência, hoje, do ponto de vista da intervenção com as pessoas mais velhas, em situação de vulnerabilidade – estas respostas tenham de ser multidisciplinares. Que não sejam só geridas pela saúde ou só geridas do ponto de vista social. Quando falamos de pessoas, não podemos falar de uma intervenção apenas sectorizada. A pessoa é um todo.

Não podemos achar que só estamos a trabalhar a área social quando, no fundo, o setor social e solidário trata muito, também, a questão da saúde das pessoas.

 

A pandemia veio evidenciar muitas fragilidades nos equipamentos sociais de acolhimento  aos idosos. Essa é uma das lições que ficam?

Eu não diria lições, eu diria que, do ponto de vista empírico, nos provou aquilo que dizemos já há muito tempo. A pandemia veio destapar as fragilidades deste setor.

O que penso é que podemos ir mais longe: pensarmos no caminho que foi feito até aqui e de que forma é que queremos cuidar dos nossos mais velhos em Portugal, que modelo queremos, nesse cuidar. Não estamos aqui a falar, como início da pandemia se falava, em quem são os profissionais que tinham de gerir estas respostas – quase que houve alguns setores profissionais a colocar-se em bicos de pés. Até porque isso é o menos importante, o estatuto de quem gere estas respostas são as próprias pessoas. Os profissionais são apenas garantes dos direitos, na prestação dos cuidados às pessoas, sociais e de saúde. A mim pouco me importa que seja o profissional A, B ou C.

O que me interessa é que trabalhemos, efetivamente, em conjunto, e queiramos um modelo multidisciplinar, no cuidar das pessoas mais velhas, que seja coincidente com o que é o ato de cuidar. Quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista da saúde, porque não é só tratando das necessidades básicas da vida, necessidades de sobrevivência. Creio que, neste momento, uma das necessidades básicas é o acesso à relação, o acesso à comunidade, a uma rede que possa identificar a pessoa como pertença de um espaço, muito mais do que garantir-lhe uma sopa ou a higiene…

 

Ainda há pouco falávamos do impacto da falta de rotinas…

Justamente. A falta de rotinas e não só: esta relação com a própria comunidade, a comunidade envolvente, é muito importante. Ainda há pouco uma senhora, perfeitamente autonomia, me dizia: perdi-me na rua, eu já não sei andar na rua.

Esta relação com a comunidade é muito importante. Há aqui um desafio enorme, é preciso vermos o caminho que fizemos, o que é que é a pandemia veio dizer que nós – que já andamos nesta área há vários anos – já vamos dizendo, sobre esta enorme fragilidade, e que modelo vamos instituir. Podemos aprender com as coisas más e torná-las boas. O ato mais ignorante será permanecer no mal, sabendo que é mau. Penso que este é um desafio enorme, saber qual é o modelo.

 

Em termos de financiamento, o apoio que recebem do Estado é suficiente? Há necessidade de ser revisto?

Durante a pandemia, creio que o Ministério da Segurança Social foi garantindo que as IPSS não entrassem em colapso e pudessem até, sobretudo as que domiciliaram os Centros de Dia, ser comparticipadas como se tivessem apoio domiciliário, para não haver quebra de recursos humanos, desemprego. Houve essa sensibilidade.

Eu iria mais longe, na definição do modelo, na forma como vamos cuidar. Podemos efetivamente rever o que queremos comparticipar: só para que as pessoas tenham acesso a uma higiene diária e uma refeição? Parece-me um modelo muito precário do cuidar, se queremos que as pessoas sejam cuidadas em todas as suas dimensões…

As próprias IPSS foram o garante do Estado Social, preveniram muitos internamentos. Todas as que têm médico, como nós, por exemplo, prevenimos muitos internamentos e muitas idas ao Hospital. Há situações a que podemos acorrer, imediatamente, mas a grande maioria não tem.

 

Isso tem custos…

Foto: Renascença/Miguel Rato

Exatamente. Tem custos. Eu penso que é importante rever o modelo de financiamento, até para que este setor seja profissionalizado, no sentido de ser apelativo para os profissionais. Nós temos uma tabelas salariais, enfim, muito parcas. Temos ajudantes de ação direta – que andam de casa em casa e fazem um trabalho que, muitas vezes ninguém quer – a receber pouco mais do que o ordenado mínimo. Há aqui um estatuto de carreira, um estatuto profissional que as próprias ajudantes de ação direta também deveriam ter, ser reconhecidas, com um estatuto profissionalizado. Defendi isto há algum tempo e continuo a defender, porque não é qualquer pessoa que serve para cuidar de pessoas idosas. Deveríamos zelar para que estas pessoas tivessem uma carteira profissional, com uma formação sempre muito presente, de forma a podermos cuidar. O ato de higienizar uma pessoa não é só isso: se tiver uma úlcera de pressão, como é que se faz? Se tiver uma nódoa negra? Isto é indicador do quê?

Há aqui um sem número de tarefas, associadas a uma atividade em que é necessário ter um conhecimento prévio. As pessoas têm de ser cuidadas e não é só com um prato de sopa ou só mudando uma fralda, há muito mais do que isso.

 

Os idosos são uma referência constante das intervenções do Papa, que tem alertado para a solidão a que muitos são votados. O Vaticano defende no documento da Academia Pontifícia para a Vida, «A velhice: o nosso futuro. A situação dos idosos após a pandemia», a necessidade de se devolver os mais velhos a um ambiente doméstico e familiar, após a pandemia. É preciso mudar o paradigma?

Esse é o caminho: darmos às pessoas a oportunidade de escolher se querem ser cuidadas em casa ou se querem ser cuidadas em meio institucional. Depois há um trabalho a fazer, em sociedade, na forma como olhamos para o envelhecimento. Há algum idadismo, é verdade, mas as pessoas também não têm condições, na sua habitação, para cuidar dos mais velhos – e muitas vezes, aquilo a que chamamos ‘geração sanduíche’, cuidar dos filhos e dos mais velhos.

Hoje, os familiares, até por questão de saturação, a primeira resposta que querem encontrar é, efetivamente, a institucionalização. Por uma questão de segurança, também.

Cuidar três ou quatro, num espaço, é diferente de cuidarmos de cinquenta e sessenta, num outro espaço. É preciso tornar as coisas mais personalizadas, mais íntimas. Volto a dizer o que disse no início: à medida que envelhecemos, vamos também priorizando aquilo que são os afetos e as relações, porque também vamos tendo muitas perdas ao longo da vida. Essas perdas, muitas vezes, são suplantadas pelos afetos que vamos tendo com os outros, sobretudo com quem nos ajuda a sermos cuidados. Essa relação em meio mais intimista, é por aí o caminho, é por aí que devemos ir.

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Agência ECCLESIA

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