«As pessoas sentem que já não têm muito a perder, só juntas encontram saídas para a crise»

A tensão acumula-se nas ruas, à medida que o poder de compra desce e sobem os protestos e as greves. A presidente do Movimento de Trabalhadores Cristãos da Europa (MTC), em entrevista à RR e à Agência Ecclesia, avisa que o custo de vida “aumentou brutalmente”, as famílias “têm medo de perder a casa” e o trabalho já não garante a fuga à pobreza

Entrevista conduzida por Sandra Afonso (RR) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 

Estamos na véspera da comemoração do 1º de maio. Como olha para o atual cenário social em Portugal?

A situação em Portugal não é única, é uma situação abrangente, não só na Europa, mas também em todo o mundo. Assiste-se, no pós pandemia, a uma escassez e ao aumento do custo de alguns bens essenciais. Por outro lado, há alguma desregulação das condições de trabalho e dos horários de trabalho.

Também começa a sentir se de forma mais forte, sobretudo em pessoas que trabalham no sector informal, que muitas vezes nem têm acesso à segurança social, que não têm seguro de acidentes de trabalho. Aquilo que nós consideramos que são condições básicas para ter um trabalho digno.

 

Nos primeiros 100 dias deste ano, Portugal registou mais de 300 greves. O privado apresenta o triplo das paralisações, é um recorde desde 2016, altura em que os dados começaram a ser recolhidos. Isto é um sinal de que os trabalhadores estão no limite e de que esta tensão pode escalar?

É um sinal de que as pessoas estão cansadas. É um sinal de que o custo de vida aumentou brutalmente, o aumento das taxas de juro também fez com que as pessoas começassem a ter receio de perder a casa, o direito à habitação. Por outro lado, as casas também aumentaram brutalmente e, por isso, as pessoas sentem que também já não têm muito a perder, que só juntas é que é possível encontrar saídas para esta crise.

Depois do esforço que o covid trouxe em termos de crise sanitária, um esforço do qual não há memória, foi necessário reinventar formas de mobilização dos trabalhadores, que estão a revelar-se em greves um pouco por todo o país. Mas a situação ao nível da Europa, por exemplo, em França, é bem mais abrangente.

 

Os trabalhadores cristãos da Europa consideram que o apoio financeiro dos governos não foi suficientemente direcionado. É preciso ir mais além na resposta à crise, incluindo em Portugal?

É, sim. O esforço financeiro tem de ser direcionado no sentido de dignificar cada uma das pessoas, porque muitas vezes o que está à frente é a parte económica e não a pessoa humana, o trabalhador individual.

«Vemos que em todo o mundo o foco não está no trabalho digno, não está no trabalhador, nem nas condições de trabalho, nem em garantir que cada pessoa tenha acesso a um salário que lhe permita ter uma casa, que permita viver dignamente e que permita sustentar a sua família. Em vez disso, vemos muitas pessoas sem acesso ao trabalho e outros trabalhadores com horários e condições laborais completamente desregulados. Por isso é que, por exemplo, ao nível europeu, defendemos a questão do domingo livre de trabalho.

 

Essa é uma das prioridades que a Pastoral Operária tem vindo a apresentar na Europa, que já tem esta missão desde 2020. Além do domingo livre já falou dos baixos salários, da precariedade laboral, são preocupações dos movimentos católicos da Pastoral Operária na Europa. Teme que a situação se venha agravar nos próximos tempos?

Se nós olharmos para trás, quando começaram a surgir estas novas tecnologias, todos nós acreditámos que era possível reduzir o horário de trabalho e que era possível os trabalhadores ficarem com mais tempo livre. Mas, a realidade foi um bocadinho diferente.

Existe um conjunto de trabalhadores com horários extenuantes, desregulados, e outro conjunto de trabalhadores que não tem acesso ao trabalho ou que não tem acesso ao trabalho de forma digna. Se o trabalho fosse distribuído de outra forma, era possível termos um salário digno suficiente para cobrir as necessidades das famílias. Por outro lado, claramente não parece ser uma prioridade a eliminação da pobreza. Acabamos por encontrar soluções mais parciais para os problemas, respondemos muito com respostas imediatas.

Claro que as pessoas têm fome e é preciso resolver o problema! Mas se apostamos numa política de salários muito baixos, com pessoas que trabalham à noite, ao fim de semana, em dois ou três lugares distintos para conseguirem pagar as suas despesas, depois falamos em baixa natalidade.

 

Para este combate à precariedade laboral, a redução da jornada semanal para quatro dias pode ser uma solução? Defende esta alteração, que já está em discussão?

No fundo, essa proposta muitas vezes significa trabalhar muito mais tempo aos outros dias. É uma proposta interessante, que já está em teste em alguns locais, mas o que eu defendia sobretudo, em termos de movimento, era que existisse um dia de descanso comum. Porque, se as pessoas trabalharem quatro dias, mas os três dias livres não coincidirem com os dias livres do resto da família, acaba por ter muito pouco impacto. Os dias livres têm de ser em comum.

 

Este dia de descanso comum inclui a paragem de comércio, serviços, tudo o que normalmente está aberto ao domingo?

Exceto aquilo que é essencial para a vida humana. O trabalho, por exemplo, na área da saúde ou trabalho em lares, farmácias, hospitais.

 

Esta questão do domingo livre é um debate antigo da Pastoral Operária, que engloba uma frente comum de várias organizações. Há bons exemplos que têm chegado do resto da Europa, já que tem estado também envolvida na direção do movimento Trabalhadores Cristãos?

Sim. Quando era adolescente foi-me dado a entender que o comércio estava aberto em toda a Europa, exceto em Portugal. Nós é que éramos uns privilegiados. Na prática, aquilo que acontece é quase o contrário. Ou seja, o comércio geral está fechado ao domingo em praticamente todos os países da Europa. É o que acontece, por exemplo, na Alemanha, na Suíça, em Espanha. Ou seja, nós é que somos quase um exemplo único, porque nós é que temos tudo aberto ao domingo. Se calhar também depende de nós, enquanto consumidores, fazer a opção por, se possível, fazer as compras noutro dia.

 

Isso leva a uma outra questão, de que falou ainda há pouco. É possível fazer isso com os ritmos de trabalho que existem, com o tempo que as pessoas perdem em deslocação. Ou seja, isto é uma mudança estrutural, tem de ser muito mais ampla, não é?

Sim, é uma mudança que tem de começar, se calhar, com cada um de nós. No fundo, cada um de nós é consumidor. Além de ser trabalhador, também é consumidor. De uma forma geral, se antes conseguíamos fazer as compras ao sábado de manhã – porque ainda sobra o sábado, até o sábado à tarde- porque é que agora tem de ser ao domingo? Até mesmo como saída familiar, é muito discutível.

Eu trabalho com crianças, também, no MAAC [Movimento de Apostolado de Adolescentes e Crianças], que é um movimento da Pastoral Operária, e alguns dos meninos que eu acompanho falam: “Ao domingo costumamos sair para ir às compras”. Ok, tudo bem, mas enquanto saída familiar também não me parece ser aquilo mais marcante, mais interessante a fazer em família, quando existem tantas outras possibilidades, quer do ponto de vista cultural, quer do ponto de vista de natureza ou simplesmente ficar em casa tranquilamente em família.

 

E até há opções que não são dispendiosas e outras que nem implicam dinheiro. Há uma questão que condiciona muito a vida dos portugueses, já falámos dela, que é a questão salarial e os baixos salários em Portugal. Ser trabalhador deixou de garantir a fuga à pobreza no nosso país?

Deixou de garantir. Por isso mesmo é que muitos trabalhadores, em vez de terem um trabalho, têm dois trabalhos, fazem mais horas e deslocam-se de locais para locais. Porque, no fundo, com o aumento do custo da habitação e também com o aumento do custo dos bens essenciais – arroz, massa, leite, coisas básicas – tornou-se difícil alimentar a família e garantir o direito à habitação.

 

O governo tem avançado com muitas medidas populares nesta área: apoios a quem tem créditos à habitação, o famoso IVA zero. Como é que vê estas medidas?

Tudo contribui para minorar, mas não me parece que seja suficiente, porque no fundo são situações mais estruturais. Também reconheço que seria mais fácil de resolver se fosse um problema simplesmente português.

 

Essa questão da guerra e o impacto que teve em toda a Europa também é sentida no Movimento? Há preocupação com o facto de serem muitas vezes os trabalhadores a pagar a maior fatura?

Sim, os trabalhadores e não só a nível na Europa. No final de março, tivemos um encontro mundial e foi partilhado um bocadinho isto: a subida generalizada da inflação e também outra dificuldade para muitas pessoas, que trabalham no sector informal e, por isso, foram as mais sacrificadas durante a pandemia, porque no fundo não tinham qualquer sistema de proteção. Foram obrigadas a trabalhar, durante a pandemia, mesmo correndo riscos, porque não tinham outra forma.

Aliás, em Portugal, por exemplo, o setor das mulheres a dias é um setor que vive um bocadinho isto. Na zona onde eu vivo, existem muitas mulheres que trabalham nas limpezas, em casas particulares, mas a maioria não tem Segurança Social. Durante a pandemia, a maior parte delas ficou sem qualquer rendimento porque não ia trabalhar, por isso não recebia. Simples.

 

Essa é justamente uma das várias alterações, são cerca de 70, que vão entrar em vigor agora no dia 1 de maio, na legislação laboral. Por exemplo, passa a ser considerado crime a não inscrição deste trabalho na Segurança Social, estamos a falar de mulheres a dias, de tudo o que é trabalho precário. Imagino que seja uma alteração positiva…

Sim. Eu diria que são muitos milhares de pessoas – aqui na cidade de Coimbra, a realidade que eu conheço bem, são sobretudo mulheres. Nós vemo-las, vão de transporte público até à cidade.

Isto pode significar que todas estas mulheres vão ter acesso a coisas básicas como o direito a uma baixa, quando se magoam, o direito ao subsídio de desemprego, quando a pessoa deixa de estar interessada na prestação de serviço, etc.

 

Além dessas mudanças legislativas de que falamos, é impossível hoje falar de trabalho e de emprego sem comentar o impacto da Inteligência Artificial, da robotização dos postos de trabalho. A mudança, em muitas profissões, será inevitável e algumas já se estão a transformar. Perspetiva que esta seja uma mudança positiva e, sobretudo, como é que os trabalhadores se podem preparar para ela?

À partida seria uma mudança positiva, no sentido em que poderia permitir que o trabalho mais rotineiro, menos criativo, fosse feito por máquinas e que aos homens coubesse o trabalho mais criativo, digamos assim. Agora, voltamos à questão do que é que está à frente, o que é que o que nós pretendemos como economia – fala-se da Economia de Francisco, baseada em Francisco de Assis – uma economia que pretenda pôr os trabalhadores à frente, a natureza, o ambiente, uma economia de paz ou uma economia que não se importa em destruir os recursos naturais dos povos, que põe em perigo a sobrevivência até das gerações futuras?

Aqui na Europa, fala-se neste momento da chamada lei da cadeia de abastecimento, que é ainda uma proposta. Eu acho que pode ter uma importância fulcral no futuro, porque poderá permitir, se for aprovada, que os bens que consumimos na Europa, onde quer que sejam produzidos, respeitam o meio ambiente, o trabalho digno e os salários dignos de todos os trabalhadores.

Esta lei penso que pode criar mudanças para melhor, nas condições de vida dos trabalhadores, não só na Europa, mas no mundo inteiro.

 

Tenho uma última pergunta, que se relaciona com uma referência à Economia de Francisco e ao movimento, sobretudo levada a cabo por jovens católicos, por desafio do Papa Francisco. Nós estamos a menos de 100 dias da JMJ Lisboa 2023. Consideraria importante que o programa inclua o debate sobre a precariedade laboral das novas gerações, destes jovens com empregos incertos e inseguros, sem contrato de trabalho efetivos?

Deveria. Afinal, quem vai lá estar são os jovens do futuro. São eles que vão viver num mundo, espero, que seja mais respeitador dos seus direitos, enquanto trabalhadores; num mundo que permita mais tempo livre, mais tempo para a família, que permita, de facto, aumentar a natalidade. Sem tempo para a família, se as pessoas não sentirem que têm a possibilidade de garantir aos seus filhos tempo, educação e disponibilidade interior, não é possível reverter o envelhecimento a que se está a assistir.

Por isso, o fulcral é o trabalho digno para todos e espero que faça parte do programa das Jornadas, sinceramente.

 

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Agência ECCLESIA

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