As Feridas do homem de hoje

Intervenção do Bispo de Santarém – 5 de Outubro – na apresentação da Carta Pastoral «Bendigamos o Senhor que cura as nossas feridas» à Assembleia Diocesana. As doenças com o seu cortejo de sofrimento têm acompanhado a história da humanidade. Com o avanço da medicina muitas foram vencidas. Mas surgem sempre novos flagelos que ameaçam a vida humana: Cancro, mutilações causadas por acidentes rodoviários, sida, terrorismo, conflitos, infidelidades e rupturas familiares, traições, injustiças, desemprego, toxicodependência, doenças psíquicas, etc. São inerentes à condição humana. Parecem um mal sem remédio. O pior mal que nos pode atingir e que, por isso, a todos mete medo. As doenças e as feridas parecem contradizer as grandes expectativas criadas pelo progresso científico e pelo controle da natureza do século XX. Acreditou-se que a ciência resolveria todos os problemas da humanidade, incluindo a doença. No entanto, apesar do avanço da medicina, o homem continua uma presa fácil de muitas feridas que constantemente nos espreitam e não nos deixam esquecer o domínio da morte. Numa sociedade de bem estar e de gozo da vida sem limites, as pessoas parecem não estar preparadas para as doenças, para o sofrimento ou para a morte, sobretudo quando acontecem em idades activas. Abrem feridas dolorosas e causam dramas profundos que atingem muitas famílias. Se Deus é o autor e o Senhor da vida humana, qual a resposta que a religião dá à doença, qual o remédio que apresenta às feridas da humanidade? Os doentes procuram, por todos os meios e caminhos, a cura. Que respostas oferece a Igreja católica aos crentes? A doença questiona sempre a fé. Presta-se actualmente muita atenção às feridas psicológicas, possivelmente porque grandes mestres e autores de vida espiritual associaram, na análise do sofrimento das pessoas de hoje, os princípios da psicologia com a perspectiva da fé (Por exemplo Henri Nouwen e Anselm Grün). De facto, detectamos actualmente muitas fragilidades psicológicas e uma necessidade maior de recorrer aos psicólogos para alcançar a cura. Feridas como a alienação, a depressão, o isolamento e a solidão parecem alastrar e atingir todas as idades e condições. O êxito de um livro de H. Nouwen, em que ele próprio se apresenta como um “Curador ferido”, mostra como muitos leitores se identificam coma a experiência do autor. A solidão é uma das feridas mais comuns: “Vivemos numa sociedade em que a solidão se tornou numa das feridas humanas mais dolorosas. A competição e a rivalidade que impregnam as nossas vidas criaram em nós uma percepção muito acentuada do nosso isolamento. Esta percepção deixou, por sua vez, muitas pessoas com uma ansiedade exacerbada e um desejo imenso de experimentar a unidade e a comunhão (…) e cria expectativas devastadoras, [uma vez que] nada nem ninguém é capaz de satisfazer inteiramente as nossas expectativas absolutistas (…). Muitos casamentos são destruídos porque nenhum dos cônjuges foi capaz de preencher a esperança, muitas vezes escondida e inconfessada, de que o outro afastasse definitivamente a solidão”(H. Nouwen,”O Curador ferido, Paulinas 2001, pg.113-115). Várias doenças têm a ver com a “patologia do desejo” (desejo pervertido, incontrolado, de alcançar poder, êxito ou protagonismo). Muitas pessoas sofrem porque criaram expectativas acima das suas possibilidades. Quando se vive em função da importância ou da posição pessoal, quando se cria uma hipertrofia do ego, facilmente se gera um vazio interior que conduz a alienações (em relação ao poder económico, ao êxito social, ao vedetismo). Na mesma patologia se pode considerar a sexualidade alienante, orientada pelo desejo pervertido que escraviza. Estas feridas são de todos os tempos, vêm referidas já no Novo Testamento. Por exemplo por São Tiago: “Onde há inveja e ambição, aí reina a desordem e toda a espécie de maldade…de onde procedem os conflitos e as lutas que se dão entre vós? Não é precisamente dessas paixões? (Tg 3, 16; 4,1)”. Assim chegamos à relação entre as feridas e o pecado. Bastantes feridas têm a ver com o pecado, com a fragilidade humana. Descobrindo as raízes do pecado e combatendo-as poderemos alcançar a cura das feridas? A fé vence o pecado e contribui a alcançar a saúde. Ministério da reconciliação e da cura na Igreja. Muitas pessoas podem testemunhar que a fé cura as doenças. O dom da cura, um carisma atribuído ao Espírito Santo, manifesta-se ainda hoje na Igreja. Para além das curas miraculosas, raras mas reais, reconhecidas por equipas de médicos, para além das promessas ilusórias de curas nos novos movimentos religiosos, cresce igualmente a convicção e a experiência de que a fé, a oração, o acompanhamento humano e espiritual dos que sofrem e, como coroa, os sacramentos da cura contribuem ao restabelecimento da saúde. A Igreja não oferece exclusivamente a salvação da alma para o outro mundo mas contribui igualmente para a harmonia da pessoa no seu todo e no seu mundo, para a vida plena com qualidade humana e espiritual. A acção curativa da Igreja, portanto, não se dirige só aos doentes e idosos mas também a todos os que sofrem no corpo ou no espírito. O Evangelho de Jesus converte do egoísmo ao amor, ajuda a aceitar com humildade e confiança os limites da natureza humana, oferece consolação e esperança, proporciona integração na comunidade cristã. Estes remédios espirituais da fé cristã têm, naturalmente, uma dimensão humana terapêutica. Deste modo, a Igreja é enviada às pessoas feridas para lhes comunicar o bálsamo da fé que cura. Antes de mais, enquanto ajuda a compreender e a aceitar as feridas como uma expressão inerente à condição humana. Lembra ao homem a sua condição mortal e vulnerável, orientando no reconhecimento desta condição e vencendo as ilusões da imortalidade e invulnerabilidade. A aceitação e o diálogo sobre os sofrimentos e as feridas e a sua compreensão numa perspectiva de fé, são o primeiro passo para a libertação. Como escreve Nouwen:” Uma comunidade cristã é uma comunidade curativa não apenas porque as feridas são saradas e os sofrimentos aliviados, mas porque as feridas e os sofrimentos se tornam em janelas ou ocasiões para ver com novos olhos” (o.c., pg 127). Assim, os que em nome da comunidade se colocam ao serviço dos que sofrem precisam de conhecer a aceitar as suas próprias feridas. Pelas feridas de Cristo fomos curados, afirma São Pedro na sua primeira carta (Cf 1 Ped 2,24). Também os curadores que têm consciência das próprias feridas e experimentam a fragilidade humana, podem, com maior profundidade, compreender e solidarizar-se com os que sofrem. As feridas pessoais podem tornar-se uma fonte de cura na medida em que permitem conhecer e aceitar a condição humana, numa atitude de humildade e de simplicidade, sem perder a esperança e a fortaleza que vêm da fé e da força do Espírito Santo. Nesta óptica compreendemos o conselho de São Francisco da Assis na carta que escreveu a todos os fiéis: “Procuremos ser simples, humildes e puros. Nunca devemos desejar estar acima dos outros, mas devemos antes ser servos e súbditos de todas a criatura humana por amor de Deus. Sobre todos aqueles que assim procederem e perseverarem até ao fim repousará o Espírito do Senhor, que neles fará a sua habitação e morada”. A virtude da humildade permite que o curador adopte uma atitude de misericórdia para com os que sofrem. Não precisa de exibir as feridas pessoais mas sim apresentar-se humilde, próximo, disponível e atento. Este património espiritual da fé cristã com dimensão terapêutica precisa de ser oferecido aos que sofrem através da pedagogia evangélica da misericórdia que se mostra na proximidade, na solidariedade, no perdão e na compaixão. O curador aproxima-se e debruça-se sobre os feridos como o bom samaritano, presta-lhes atenção, dedica-se ao seu serviço, sem se deixar porém envolver pela mesma doença. Nouwen caracteriza esta atitude do curador e da comunidade com o conceito bíblico da “hospitalidade” que consiste em abrir as portas do coração e da vida aos estranhos prestando-lhes atenção e oferecendo-lhes um espaço livre onde possam encontrar-se com eles mesmos: “A hospitalidade é a virtude que nos permite superar a estreiteza dos nossos próprios medos e abrir as nossa casas ao desconhecido… À semelhança dos nómadas semitas vivemos num deserto com muitos viajantes solitários que buscam um momento de paz, uma bebida fresca e um sinal de estímulo, de modo a poderem continuar a sua busca misteriosa de liberdade” (o.c. pg 121). Em certa medida, todos os fiéis recebem a missão de colaborar na cura, de participar no ministério da cura confiado à Igreja. Uns ajudam a curar pelo sentido de humor, outros pela compreensão, outros pela dedicação ao serviço, todos através da humildade, da simplicidade e da “hospitalidade”. Todos podem irradiar à sua volta a paz, a serenidade, a harmonia e exercer assim uma influência positiva, se reconhecerem as suas ferias e vencerem as suas alienações. Nesta perspectiva, o ministério da reconciliação e da cura tem um campo de aplicação mais amplo e mais vasto do que os respectivos sacramentos. A comunidade cristã, através dos seus membros mais responsáveis, ordenados, consagrados ou leigos, é chamada a colaborar na reconciliação e na cura das feridas da humanidade. D. Manuel Pelino Bispo de Santarém

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