Arquitectura religiosa: tradição e modernidade

Recente polémica em torno da igreja do Restelo e a exposição «Made in Germany: Arquitectura + Religião» trazem o tema para a ordem do dia

A história da arquitectura religiosa nos últimos anos tem sido marcada de forma constante pelo conflito, mais ou menos latente, entre renovação e repetição, modernidade e tradição.

A recente polémica em torno da igreja do Restelo ou a chegada ao nosso país da exposição “Made in Germany: Arquitectura + Religião” (parceria da Ordem dos Arquitectos e o Goethe-Institut Lisboa) trazem para a ordem do dia esta temática, que está no centro do dossier do semanário Agência ECCLESIA.

A nova igreja de São Francisco Xavier, projectada pelo Arquitecto Troufa Real para a paróquia homónima (Restelo) do Patriarcado de Lisboa, viu-se envolta em polémica desde o início da sua construção, em finais de 2009. O projecto é apresentado pela paróquia como baseado na vida do apóstolo do Oriente, S. Francisco Xavier, da Índia ao Japão, e na aventura portuguesa dos Descobrimentos. Inclui uma torre de cem metros de altura e paredes pintadas em várias cores. O edifício tem, num dos lados, a forma de um barco assente numas cornucópias que imitam ondas. A nave será metálica e o interior será branco.

Contactado pela Agência ECCLESIA, o pároco local, Pe. António Colimão, assegurou que a comunidade permanece empenhada em levar por diante a obra e não quis alimentar polémicas sobre um projecto com 15 anos que seguiu “todos os trâmites”. A nova igreja, aliás, avança a olhos vistos.

Sobre este tema também se pronunciou D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa, quando em entrevista à Agência ECCLESIA lembrou que a contestação “se deu quando está tudo irremediavelmente decidido, é que este projecto é conhecido há 15 anos”.

“Eu fui lançar a primeira pedra há mais de 10 anos e o projecto estava exposto nessa altura. E existia um entusiasmo generalizado pela sua beleza”, recorda.

“É um projecto pelo qual não morro de amores, mas que percorreu todos os passos normais da aprovação: foi aprovado pelo nosso Departamento das Novas Igrejas e pela Câmara Municipal de Lisboa. Houve um vasto diálogo com a comunidade e com o pároco… E eu não posso dar o dito por não dito”, acrescentou.

Frisando que o projecto “tem uma simbólica escolhida pelo arquitecto, de acordo com a paróquia”, D. José Policarpo admite que “uma pessoa como eu, que fui entusiasta do Movimento de Renovação da Arte Religiosa em Portugal”, sente nele a falta da “gramática que eu aprendi: a inspiração do Mistério em cada pedra que se põe, em cada parede que se faz”.

Nesta edição da Agência ECCLESIA, o arquitecto e jesuíta João Norton escreve que “o erro da polémica igreja do Restelo não está, primeiramente, no estilo próprio do arquitecto, mas no facto da comunidade não ter sido o sujeito do processo, quem escolheu a tipologia litúrgica, a expressão do edifício e o arquitecto”.

Em editorial, o Pe. Tolentino Mendonça, director do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, sublinha que “a Igreja em Portugal precisa de um virar de página nesta matéria. Há ainda demasiados subprodutos que circulam, numa espécie de contrafacção estética e de ruído. Urge uma estação de exigência e o celebrar de um compromisso capaz de dar à nossa Evangelização uma estética consistente, coerente e contemporânea”.

Exemplo alemão, realidade portuguesa

O Pe. João Norton, comissário da exposição “Made in Germany: Arquitectura + Religião” escreve que “a igreja-edifício é uma metáfora na cidade secular, pronunciada na linguagem do seu tempo. A sua estrutura poética e paradoxal deve surpreender crentes e descrentes, conduzi-los ao silêncio do mundo, despertar uma atenção inhabitual”.

Também comissário da mesma iniciativa, João Alves da Cunha afirma, por seu lado, que “no acto de criação de uma igreja, o arquitecto deve ter bem presente que esta não é um fim em si mesma nem um meio para a expressão solitária da sua vaidade, mas um instrumento que deve estar, desde o primeiro esboço, ao serviço da comunidade”.

Há ainda tempo para um olhar atento sobre o que se poderá esperar da exposição “Arquitectura+Religião”. “Com este encontro de culturas, pensamentos e ideias, dedicado a um programa arquitectónico tão pouco debatido em tempos mais recentes, espera-se catalisar novas abordagens, novas perspectivas e novos passos para a arquitectura religiosa portuguesa do presente século, promovendo a qualidade artística e arquitectónica dos edifícios religiosos, referências incontornáveis na construção da identidade e fisionomia das nossas cidades”, assinalam os organizadores do evento.

Já o Pe. Paulo Franco fala do projecto da nova igreja de Nossa Senhora dos Navegantes e respectivo complexo paroquial, que está a nascer na zona Norte do Parque das Nações, em Lisboa. Uma obra que desafia convenções estabelecidas ao mesmo tempo que retoma elementos dos espaços litúrgicos das primeiras comunidades cristãs.

“Na edificação da nova Comunidade Paroquial do Parque das Nações e na programação da construção do seu Templo, a teologia de comunhão e de povo de Deus desenvolvida pelo Concílio Ecuménico Vaticano II teve uma implicação central. Assim, o Templo teria de ser a casa e a escola de comunhão”, escreve o pároco.

Arte e Igreja

Para lá dos materiais e formas de construção, a questão que tem permanecido é a de saber se a arte que serve a Igreja deve revestir-se exclusivamente de um conjunto de modelos pré-determinados ou se existe a possibilidade de uma renovação constante, geradora de formas, sentidos e imagens novas, mas igualmente válidos.

A utilização de materiais tradicionalmente considerados como menos nobres (com destaque para o betão) e o primado da funcionalidade nas edificações são apenas a face visível de um fenómeno de renovação que em Portugal deu os primeiros passos com o trabalho de Pardal Monteiro e a sua igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, edificada entre 1934 e 1938. Obras como esta ou a sua homónima, no Porto (Cunha Leão, Fortunato Cabral e Morais Soares, 1935) e os seus opostos revivalistas de Santo Condestável (1951), São João de Deus (1953) e São João de Brito (1955), em Lisboa, lançam uma viva discussão e originam as tomadas de posição muito antagónicas, entre o conservadorismo e o desejo de renovação.

Surge, a meio do século passado, uma nova vaga de criação artística, dentro da Igreja, no amplo movimento de renovação litúrgica e pastoral que se iniciou no pós-guerra e culminou na realização do II Concílio do Vaticano. A igreja do Sagrado Coração de Jesus (Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, 1961-70), em Lisboa, constituiu-se como uma referência para as gerações futuras, marcando definitivamente uma nova imagem no equipamento religioso, aberto e participado.

A linguagem passou, então, da ideia de “igreja-templo” para a de “centro paroquial”, enquanto conjunto de espaços em redor da igreja, entendida como domus ecclesiae (casa da Igreja).

Intervindo no 6.º “Itinerário temático em Igrejas de Lisboa”, dedicado às novas edificações do Patriarcado, José Manuel Fernandes indicava que, por esta altura, já se tinha conseguido “introduzir a igreja moderna”, um pouco por todo o país. O paradigma moderno transformou-se assim no “modelo corrente de produção das igrejas, em qualquer território”.

Progressivamente, o espaço da igreja passava a ser multifuncional, diluindo todas as barreiras para melhor cumprir a sua função de pólo dinamizador da vida da comunidade. A diversidade de abordagens pessoais viria dominar uma época subsequente, em que se destaca a proposta de Pedro Vieira de Almeida para a paroquial de Nossa Senhora da Conceição, Olivais Sul (1976-88), onde a inserção urbana se combina com um sentido renovado do espaço de reunião e de celebração.

Para José Manuel Fernandes, os anos mais recentes mostram uma fase mais simbolista, pós-moderna, com regresso a valores tradicionais. O “conflito” continua em aberto, latente. As novas propostas e edificações surgiram tão rapidamente que foi impossível uma assimilação adequada e se deu origem a uma fase de reacção.

Em busca de modelos

Na passagem do século XX para o XXI, as igrejas procuram afirmar-se pela procura de limpidez formal e espacial, com maior desenvolvimento programático na igreja Conventual (2005), e Centro cultural dominicano, em Lisboa (Paulo Providência e Fernando Gonçalves) e no complexo paroquial de Marco de Canaveses, de Álvaro Siza Vieira (1990-95). Nestes e noutros casos, a “caixa” de betão (branca ou não) traduz uma arquitectura que procura a abstracção e a essencialidade geométrica.

Destaque também para a igreja de Santo António (1993-2008), no bairro dos Assentos, em Portalegre, da autoria de João Luis Carrilho da Graça. Segundo o próprio, propõe-se “a extrema simplicidade do espaço, da linguagem arquitectónica e do desenho dos objectos” para criar um espaço de liberdade. Pode dizer-se que estamos perante igrejas que fazem mais sentido quando “habitadas” pela comunidade.

Em boa verdade, hoje é legítimo afirmar-se que não existe um “modelo” de igreja para o século XXI. No referido itinerário “Igrejas Modernas de Lisboa”, João Alves da Cunha referia que o minimalismo, a construção de interiores em comprimento e o trabalho da luz como elemento fundamental da arquitectura são marcas de muitas das novas construções, embora estas propostas originais não se enquadrem, efectivamente, em qualquer tipo de modelo.

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