Alocução de D. Manuel Clemente sobre o 4º aniversário do pontificado de Bento XVI

Como sabemos, amados irmãos e irmãs, a missão de Pedro, agora exercida por Bento XVI, nasce duma dupla afirmação. Da afirmação do Apóstolo de que Jesus é o Messias, o Filho de Deus vivo, definindo assim a fé cristã no que tem de essencial. E da subsequente afirmação de Jesus: “Tu és Pedro e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja”. Quer isto dizer, entre muitas outras e importantes coisas, que o sucessor de Pedro sustenta e alarga a comunidade a partir da confissão de Jesus como Messias (= Cristo). E na verdade assim é. Sobretudo o papado contemporâneo tem-se desdobrado em iniciativas de unidade e de paz entre os povos da terra, alargando o ministério para além das próprias fronteiras eclesiais estritas. E tem-no feito exactamente por reconhecer e indicar em Jesus Cristo a presença divina entre os homens e a assunção da humanidade por Deus. Nesta base se pode estabelecer uma unidade que a fé promove, como reconhecimento da dignidade absoluta de cada pessoa, tanto em humanismo forte, porque divinamente garantido, como isento de pressão confessional, porque é de serviço que se trata, a “todos os homens de boa vontade”. É a esta luz que relembro alguns trechos de Bento XVI na Mensagem para o Dia Mundial da Paz, que celebrámos a 1 de Janeiro passado. Na verdade, o tempo que se seguiu veio dar ainda mais oportunidade às reflexões do Papa, cujo 4º aniversário de ministério agradecemos a Deus nesta celebração. Vivemos em tempo de conjugação universal de problemas e expectativas; e o que antes poderia ser idealismo de alguns torna-se agora em dimensão indispensável de análise e projecção, como o vimos e ouvimos a propósito da recente cimeira de líderes mundiais. A globalização que se tomava, com maior aceitação ou crítica, como dinamismo económico e mediático, apresenta-se hoje qual quadro inelutável de actuação, para superar as graves dificuldades que se enfrentam no campo da economia e do trabalho, fluxos migratórios incluídos. E é precisamente neste contexto que Bento XVI se posiciona, ao lembrar a necessária referência humanista da globalização: “Uma das estradas mestras para construir a paz é uma globalização que tenha em vista os interesses da grande família humana” (Mensagem, nº 8). Mas o Papa não tem dúvidas – para não dizer ilusões – acerca deste objectivo inquestionável. A globalização só abarcará positivamente a humanidade inteira se orientada por “uma forte solidariedade global entre países ricos e países pobres, como também no âmbito interno de cada uma das nações, incluindo ricas” (ibidem). Não estranhemos esta inflexão interna da globalização, pois é absolutamente requerida pelos sentimentos e pelos factos. Quer isto dizer que dificilmente se projectará no mundo quem não se exercitar em solidariedade concreta com os seus próprios concidadãos e vizinhos. Há alguma circularidade entre estas duas dimensões, mas, normalmente, é assim que caminhamos. Na sociedade portuguesa sentimos fortemente os efeitos duma crise global da economia, com graves repercussões sociais. Mas, com todo o concurso que possa e deva advir das instâncias europeias e internacionais, devemos olhar para o que podemos e devemos realmente fazer nós mesmos para minorar e resolver os problemas que temos por perto e havemos de sentir como nossos. Oiçamos ainda Bento XVI no mesmo passo: “ – Porventura não sente cada um de nós, no íntimo da consciência, o apelo a dar a própria contribuição para o bem comum e a paz social?” (Ibidem). Ou seja: que as obrigações dos outros, em relação ao mundo ou ao país, sejam secundadas pela nossa responsabilidade pessoal. Aliás, não há políticos nacionais ou internacionais capazes de prosseguir na senda da globalização solidária, se não forem sustentados por cidadãos possuídos de igual motivação. O Papa sabe-o e por isso insiste neste ponto. Como sabe também que as comunidades cristãs, vivendo do Evangelho, devem ser permanentemente educadas nesse sentido. Perto ou longe, “a marginalização dos pobres da terra só pode encontrar válidos instrumentos de resgate na globalização, se cada homem se sentir pessoalmente atingido pelas injustiças existentes no mundo e pelas violações dos direitos humanos ligados com elas” (ibidem). O Apóstolo descobriu Jesus como Messias para todos e nessa mesma altura foi feito Pedro universal; assim Bento XVI, assim cada um de nós com ele, em solidariedade de aquém e além-fronteiras. Falo da solidariedade no sentido em que a toma a Doutrina Social da Igreja e precisamente como um dos seus princípios basilares, pois é “a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 193). Falo ainda da solidariedade repassada dos sentimentos do “Filho de Deus vivo”, que Pedro, Bento XVI e cada um de nós reconhece: “Jesus de Nazaré faz resplandecer aos olhos de todos os homens o nexo entre solidariedade e caridade, iluminando todo o seu significado: À luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si própria, a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da reconciliação. O próximo […] deve ser amado, ainda que seja inimigo, com o mesmo amor com que o ama o Senhor; e é preciso estarmos dispostos ao serviço por ele, mesmo ao sacrifício supremo: ‘dar a vida pelos próprios irmãos’” (Compêndio, nº 196). Infelizmente, repara Bento XVI na sua Mensagem, como o faremos decerto nós mesmos, nem a caridade, como virtude teologal por excelência, nem a solidariedade, como virtude moral indispensável, são universalmente verificadas, tanto nas práticas como nos desejos. Como referência central de milhões de crentes, a Sé Apostólica, na sucessão dos seus pontífices, tem-nos alertado para a necessária motivação pessoal em tudo o que se refira à vida social e política. Nenhuma proposta nacional ou internacional ultrapassará positivamente o actual contexto, sem uma autêntica conversão. Todos aceitaremos a seguinte análise de Bento XVI: “A própria crise recente demonstra como a actividade financeira seja às vezes guiada por lógicas puramente auto-referenciais e desprovidas de consideração pelo bem comum a longo prazo. […] Uma actividade financeira confinada no breve e brevíssimo prazo torna-se perigosa para todos, inclusivamente para quem consegue beneficiar dela durante as fases de euforia financeira” (Mensagem, nº 10). De motivação pessoal nos fala Bento XVI e todos concordaremos que esta crise lhe dá particular oportunidade e urgência. Mas, assim sendo, quer nacional quer globalmente, é essa mesma motivação que deve ser estimulada e apoiada para efectivar as necessárias respostas. Face à actual crise, como sempre aliás, a motivação solidária e caritativa de cada um tem de ser correspondida pela prática, especialmente por parte do Estado ou das instâncias internacionais, de outro princípio basilar da Doutrina Social da Igreja que dá pelo nome de subsidiariedade. “Com base neste princípio, todas as sociedades de ordem superior devem pôr-se em atitude de ajuda (subsidium) – e portanto de apoio, promoção e incremento – em relação às menores” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 186). Quer isto dizer que não é papel do Estado ou dos Estados reduzirem o lugar e o protagonismo que pessoas, famílias e iniciativas particulares devem ocupar, responsável e criativamente, rumo a uma sociedade mais conseguida. Muito pelo contrário, a experiência aí está a indicar o rumo justo e certo. A lúcida longevidade de Bento XVI não lhe deixa dúvidas: “A história do progresso económico do século XX ensina que boas políticas de desenvolvimento são confiadas à responsabilidade dos homens e à criação de positivas sinergias entre mercados, sociedade civil e Estados. Particularmente a sociedade civil assume um papel crucial em todo o processo de desenvolvimento, já que este é essencialmente um fenómeno cultural e a cultura nasce e se desenvolve nos diversos âmbitos da vida civil” (Mensagem, nº 12). Entre muitas outras qualidades pessoais, Bento XVI oferece-nos o contributo da sua capacidade de analisar em profundidade tanto o ser como a razão de ser das “coisas novas e velhas” com que nos deparamos, na vida pessoal e na vida do mundo. Por isso requer, para ultrapassarmos a actual crise, também esta globalizada, uma atitude “cultural”, que impregne a mentalidade de cada um e a conduta dos Estados. A sua Mensagem de Janeiro passado trouxe-nos assim, em torno de princípios maiores da doutrina Social da Igreja, como sejam o da solidariedade e o da subsidiariedade, indicações de grande justeza e oportunidade. Indicações “culturais” ou de mentalidade, que podermos traduzir por conversão. Agradeçamos tudo isto a Deus, que recompense e cumule de saúde e paz o actual Sucessor de Pedro, a quem o nome de Bento tão bem consagra e oferece à Igreja e ao mundo. Sé do Porto, 19 de Abril de 2009 + Manuel Clemente

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Agência ECCLESIA

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