«Ad Limina» 2024: «Vamos com vontade de ouvir, mas também levamos a nossa experiência de Igreja» – D. José Ornelas

Os bispos portugueses vão iniciar esta segunda-feira a visita «Ad Limina», uma série de encontros com organismos da Santa Sé e com o Papa Francisco, com apresentações de relatórios sobre a vida da Igreja Católica em Portugal. O Presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, é o convidado desta semana da entrevista conjunta Ecclesia/Renascença

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (RR) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

Na última visita “ad Limina”, em 2015, tinha sido nomeado, mas ainda não tinha sido ordenado bispo.  Agora vai a Roma como presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Eu pergunto com que expectativa é que parte para este encontro com os organismos da Santa Sé e com o Papa Francisco?

A primeira é a expectativa de viver aquilo que se é, como Igreja. E, sobretudo, o encontro com o Papa Francisco dá-nos bem esse sentido de ser Igreja juntos. E é essa também a função dele, de nos juntar. Tenho ouvido muitos títulos da comunicação social que dizem que os bispos vão “dar contas” ao Papa, como se isto fosse uma vistoria a uma multinacional. Somos muito mais do que uma multinacional. E é um encontro, antes de mais, daquilo que se é como Igreja e com aquele que representa a unidade da Igreja, o ministério de Pedro, que o Papa está exercendo de uma forma que constantemente desafia a Igreja a este desafio de comunhão, de participação. Nós vamos certamente com vontade de ouvir, mas também levamos a nossa experiência de Igreja que é importante para o Papa, é importante para os organismos da Santa Sé que vamos visitar. E é esse encontro de irmãos que nós vamos fazer. Vamos celebrar nas quatro grandes Basílicas, as Basílicas dos Apóstolos e de Nossa Senhora.

 

Entre os vários acontecimentos que marcaram este período, destaca-se naturalmente a crise provocada pelos casos de abusos sexuais de menores. Será um tema incontornável na conversa com o Papa Francisco? 

Sim, isso está também na nossa vivência destes nove anos e não pode deixar de estar em cima da mesa. Não seria uma visão realista sem isso.

 

E está prevista alguma reunião de trabalho com a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores? 

Nós vamos estar com os dicastérios que têm essa responsabilidade, o dos Bispos e o Dicastério para a Doutrina da Fé, que é quem superintende a tudo isso.

 

E espera alguma indicação para o futuro, ou a validação do trabalho que tem vindo a ser feito? 

Nós, durante este caminho que fizemos sobre este caso, desde há dois anos, tivemos já uma reunião muito importante, na altura. Tivemos em Roma representantes da Conferência Episcopal para tratar de detalhes importantes, como o do acesso aos arquivos, e recebemos todo um incentivo dos organismos da Santa Sé e daqueles que estavam mais ligados a este assunto.

 

Depois do trabalho que tem sido feito e que foi feito em Portugal, há já sinais de alguma melhor compreensão e até de alguma pacificação com a sociedade em relação a este tema? 

Eu penso que, quem quer entender, entendeu que nós não estávamos simplesmente a fazer um faz de conta, um faz de conta que entendemos, faz de conta que escutamos, faz de conta que……nós tomamos isto a sério, porque achamos que não se brinca com os sentimentos e a dor das pessoas. Quem quer que tenha contactado com pessoas que sofreram injustamente este drama, sabe muito bem o que isso significa e, portanto, era para tratar a sério e é isso que nós estamos procurando fazer.

 

Um dos encontros mais significativos neste âmbito, até com as vítimas, ocorreu durante a Jornada Mundial da Juventude, quando o Papa Francisco esteve em Lisboa. De que a forma é que a preparação e realização da JMJ pode servir para projetar o futuro da Igreja Católica em Portugal? 

Serve em primeiro lugar a própria organização. Serve na metodologia de motivação das pessoas, em fazer e permitir e promover uma verdadeira experiência de Igreja das pessoas. Nós estamos habituados a fazer ritos e rituais e são importantes, mas há que fazer festa.

 

Houve muita Igreja na rua, nestes anos? 

Houve muita Igreja na rua e muitos jovens, porque quem realmente esteve na linha da frente foram os jovens e isto é para nós, para mim e para todos com responsabilidade na Igreja, é muito importante. Nós não podemos dizer que isto é uma geração rasca. Isto é uma geração que arrisca e é uma geração que é capaz de se deixar motivar. Mas é preciso também criar as condições para isso. Nós queremos muito os jovens na Igreja, sim senhor, mas é preciso na Igreja, quando eles estão lá, dizer para que é que lá estão.

 

E não lhe parece que está a demorar um pouco para se dar seguimento ao entusiasmo que foi gerado pela JMJ? 

Eu acho que em todas as dioceses se está trabalhando. E vejo também isso na minha. Mas também é preciso ter em conta que a grande maioria dos jovens que estiveram presentes na JMJ não foram portugueses. Eu espero que os jovens portugueses, que foram muitos, sejam semente, mas de facto não foi a grande multidão de jovens portugueses.

No entanto, dois estudos foram feitos, um pela Universidade de Católica e o outro pela Fundação Francisco Manuel Santos, concordavam nesses dados: 60% dos jovens portugueses dizem que têm referências religiosas que são importantes para a vida deles, e 40% diziam que até tinham a prática religiosa. Eu não discuto qual é o conceito da prática, mas há uma semente e fala-se de celebrações e de oração. Significa que estas pessoas, estes jovens, no pensar a sua vida, não pensam simplesmente no imediato, mas pensam também numa dimensão espiritual e religiosa da vida, e isso é muito importante. Significa que há um caminho, e um caminho para fazer junto com estes jovens.

Por outro lado, também é verdade que os jovens não se reveem em tudo o que a Igreja diz. Falta uma linguagem comum, e estas novas linguagens não são simplesmente uma questão da tradução, mas são um modo de estar com, de fazer com que os jovens tenham uma palavra a dizer, porque são eles que têm de retraduzir a linguagem de sempre.

 

Têm de ser eles próprios a criar novas linguagens?

Temos casos muito interessantes, fenómenos muito interessantes de serem os jovens a encontrar caminhos novos para a Igreja. E isto tem de ser… estamos a celebrar os 50 anos do 25 de Abril, e eu sou da geração que tinha 20 anos no 25 de Abril, tomamos responsabilidade muito cedo. Agora temos dificuldade de passar a bola para a frente.

 

Estes últimos anos foram marcados por várias mudanças a nível social e também eclesial, com destaque para a pandemia e também para os seus impactos. O regresso à normalidade está a ser difícil nas comunidades católicas? 

Depende do que se entende por difícil…

 

Ao nível da prática, por exemplo? 

A prática é importante, mas, por exemplo, durante a pandemia aprendemos que a presença não é simplesmente uma questão física e que há outras maneiras também de estar presente. Não tínhamos a possibilidade de vir à Igreja, mas fizemos igrejas em tantas casas. Eu lembro-me de ver, com muita emoção, famílias inteiras a rezar o terço, e a muitos quilómetros de distância. Grupos que se conheciam e que encontraram novos modos de estar, de ser presente e de partilhar vida, experiência e esperança. E isso não quer dizer que o digital vai substituir a presencialidade. Não, a Igreja tem de ser encontro. O Papa diz “não fiquem simplesmente à espera da imagem que chega de alguém, mas encontrem esse alguém, porque isso é que vai mudar a vida”. Nós precisamos disso, mas as duas coisas não se excluem. Depois, é preciso também entender uma nova forma de comunicar, e isso é que é importante. É verdade que muitas igrejas dizem que não recuperaram o ritmo do passado. E isso não é uma coisa que deixe de nos preocupar, mas também temos de encontrar hoje uma mobilidade nova. A Igreja sinodal em que estamos a pensar é uma Igreja que precisa de inventar, criar para o nosso mundo novos modos de contacto, de partilha, de corresponsabilização, porque isso é fundamental. Ou seja, devemos afirmar que esta é a minha Igreja e não a Igreja que fazem para mim.

 

Falou de um tema que é fundamental neste pontificado, que seguramente irão levar a Roma, que é a questão do Sínodo. Quero falar-lhe de outro tema que está muito no coração do Papa, que é a questão das migrações. Nós vemos nestes anos em Portugal uma mudança no ambiente, penso que isso é incontestável. Temos este problema com as filas enormes de migrantes para tentarem regularizar a sua situação… Que efeitos há na sociedade e que ações é que são necessárias? 

Este é um efeito que não se pode normalizar. Costumamos dizer que é normal que aconteça, mas não é normal… Quer dizer, é infelizmente normal que tantas vezes o desconhecido, e sobretudo a pessoa desconhecida, me suscite suspeição ou até a rejeição, porque aquela não é a minha forma de viver, mas há muita manipulação nisto tudo. E há pessoas e organizações que trabalham nisto, que trabalham nesta diferença para afirmar, como se a minha afirmação precisasse de ser rejeição para os outros.

 

São consequências também de extremismos ideológicos? 

Sim são também consequências de extremismos ideológicos, porque as crianças em si juntas num infantário, no dia seguinte estão a brincar e estão a comunicar. Mesmo sem se entenderem, no dia seguinte estão a brincar. Agora, o pior é quando a criança absorveu uma ideia de uma autoidentificação, ou identidade.

 

Significa, que de facto essas ideias estão a penetrar na sociedade, ao ponto de crianças da mesma idade terem estas reações? 

Isso é claro que existe, é o mais nocivo das coisas. Quando as crianças são assim educadas, a temerem e a demarcarem-se daquilo que é desconhecido, em vez de terem curiosidade de saber e alegria depois de descobrir a diversidade das coisas com que as rodeiam. E isso essa é a cultura que nós devemos criar. Nas nossas igrejas, já se vê, mesmo onde isto não era habitual, e falo por exemplo da Diocese de Leiria- Fátima, onde não era habitual termos muitos imigrantes. E é interessante ver, como agora, não é só nas cidades, é nas paróquias também.

 

Este é um desafio que implica as comunidades católicas?

Implica as comunidades, e aí nós temos a experiência de acolher e de querer acolher. Eu penso que a Igreja tem um papel, independentemente daquilo que devem fazer – penso que há muito a fazer – a sociedade portuguesa e a nível das instituições, para acolher bem estas pessoas. A nossa lei facilita a entrada das pessoas, mas isso não chega. É preciso depois que essas pessoas se sintam integradas. Eu penso que, quando uma pessoa num banco da igreja se senta ao meu lado, não é preciso muitas palavras para falar da inserção, porque estamos todos dentro da mesma igreja, estamos todos ligados pela mesma fé, e, portanto, esta capacidade de integrar que a Igreja tem é importante.

Depois, tantas vezes, e na minha experiência também aqui em Portugal nestes tempos, as instituições da Igreja, também estas de solidariedade, mais facilmente têm acesso à situação destes imigrantes, que têm um certo receio de contatar com as entidades oficiais, e, portanto, é bom ter um intermediário e alguém que facilite estes contactos. Penso que a Igreja e as instituições, muitas instituições da Igreja estão a fazer isso, é algo muito importante, ao nível do acolhimento da pessoa, porque é por aí que começa tudo. E depois é também a partir daí; da integração e da partilha da cultura e das crenças que cada um tem que podem ajudar a construir um país melhor.

 

Mas chegados aqui, e vendo esta realidade, significa que temos de exigir mais dos políticos, nomeadamente no combate a estas ideias que vão proliferando? 

Todos temos uma responsabilidade nisso, e é evidente que políticos que vão ainda acentuar discrepâncias dessas, não ajudam. Agora, é preciso que tenhamos convergências a nível do país, porque antes demais é preciso sublinhar que precisamos dessas pessoas. E sem essas pessoas o nosso país não seria funcional. Nós temos todos de trabalhar na integração. Sem saber quem é que mais ganha com isto, quem é que fica melhor na fotografia, todos temos de encontrar caminhos corretos, fraternos, e também, ao mesmo tempo, sérios, para que as pessoas que vêm e que assumimos, porque precisamos delas, também elas possam ter noção do reconhecimento e da própria dignidade para viverem neste país.

 

Volto ao tema do Sínodo. Vê as comunidades católicas em Portugal unidas à volta da proposta sinodal lançada pelo Papa? O balanço que é levado ao Vaticano vai ser bom?

Eu falo da minha diocese, que é aquela que conheço melhor. Sei que todos estamos empenhados nisto, sobre isso não tenho dúvida. Sei também que a nossa Igreja portuguesa, capilarmente, na maioria das paróquias, das organizações, da vida religiosa, comunidades, etc., toma parte e isto é motivo de reflexão, é motivo de oração, é motivo de encontros, é motivo de programação. Na minha diocese estamos a procurar fazer uma reforma mesmo da organização da Igreja, a partir desta sinodalidade. Há Igrejas que já estão mais à frente neste processo de corresponsabilização de leigos, de ligação entre paróquias, de fazer caminho em conjunto, que é isto que significa sinodalidade, e isto não pode ser simplesmente uma questão de padres. Nós estamos a trabalhar nisso, e eu acho que as pessoas quando falam disto, falam com um misto de alegria. Tantas pessoas que eu ouvi dizer, “pela primeira vez perguntaram-me o que é que eu pensava e fizeram um encontro comigo para eu também participar e falar”. Habitualmente os cristãos são destinatários de uma mensagem e não é que isso esteja mal, mas não pode ser só assim. O Espírito fala por todos, mas é importante destacar a dignidade de todos participarem naquilo que é a Igreja.

 

Alguns processos de nomeação episcopal têm sido assumidamente complexos e até, segundo alguns, excessivamente lentos. É um tema a abordar em Roma? 

Este tema está no Sínodo, foi várias vezes mencionado no Sínodo e sei que há uma comissão a trabalhar e nas conversas que tive com o Papa sei que também isso o preocupa. Mas isso tem de ser levado também com muito cuidado, porque é uma coisa importante. Não porque sejam simplesmente os bispos que são importantes, mas é também importante a forma de fazer participar também as comunidades no processo de discernimento daqueles que Deus manda para a frente deles. Temos de ter em atenção também outra coisa. Não pode ser simplesmente uma comunidade só que escolhe os seus. As coisas importantes da nossa vida, por exemplo os nossos pais, e os nossos irmãos não foram escolhidos por nós. Foram aqueles que nos foram dados como dom. Agora, trata-se de sabermos como é que nos organizamos e como é que reconhecemos esse dom e o fazemos funcionar de uma forma verdadeiramente útil para todos. E é isso que temos de fazer também na Igreja. E temos de saber que também a Igreja e aqueles que estão à frente da Igreja para o serviço dela são pessoas que têm de ser, por um lado, sensíveis e próximas desta Igreja, mas ao mesmo tempo têm de ser elementos de ligação com a Igreja na sua totalidade. E, portanto, o papel que o Papa concretamente tem, a igreja no seu todo, tem na escolha dos responsáveis de cada Igreja, isso não pode deixar de ser, isso não pode terminar. Isto não é simplesmente uma coisa que se põe na praça pública, mas temos de encontrar maneiras sinodais, mais participativas e mais ágeis também, porque o tempo que passa uma diocese sem bispo é sempre penalizador. É certo que o Espírito Santo está lá sempre, mas não tenho dúvidas de que para a organização da Igreja é sempre penalizador.

 

Volto à questão social para terminar. Sabemos que em muitas situações a Igreja Católica e as suas instituições funcionam como uma almofada para pessoas em muita dificuldade. Porém as próprias instituições têm vindo a público falar da dificuldade que estão a ter na sua sustentabilidade. Pergunto se esta é uma preocupação que levam a Roma e se espera uma maior articulação e um apoio mais efetivo a nível estatal? 

Bom, esta é uma situação aqui típica de Portugal, isto tem diversas expressões, e é o sentir da Igreja em relação às necessidades de um país e particularmente dos mais frágeis, mas é sobretudo a nossa situação aqui. E a realidade, entre IPSS diretamente detidas por paróquias, ou instituições religiosas e as misericórdias, mostra que mais de 60% das instituições de assistência no campo da solidariedade em Portugal têm ligação à Igreja. Recordo que o Estado tinha como seu propósito, no mínimo, colaborar em 50 % dos custos destas instituições com os seus utentes e neste momento, esse apoio do Estado não passa dos 38 %. Isto significa que estas instituições estão mesmo em grande dificuldade, e que temos de fazer alguma coisa. Lembro também que a atitude da presença da Igreja no meio daqueles que sofrem não se resume ao trabalho das IPSS. Em cada paróquia – e isto é capilar – as Cáritas Diocesanas e as Conferências Vicentinas revelam mais algumas dezenas de milhares de pessoas que estão ao serviço dos outros, e isto dá-me muito gosto de olhar para a Igreja desse ponto de vista.

 

E do ponto de vista estatal, no que diz respeito às instituições particulares, o que é que vai exigir, o que é que se deve exigir? 

Eu acho que para além de qualquer ideologia, no mínimo, é preciso reconhecer a constatação do papel destas instituições para o bom funcionamento do país, e perceber a grande dificuldade em manter todas estas instituições. O que estas instituições fazem, e não falo apenas das da Igreja, mas de muitas outras instituições de solidariedade social: isso tem de ser reconhecido como algo de presente e desejável no contexto da nossa sociedade e tem de ser devidamente sustentado para que não colapsem, como acontece com outras áreas da nossa vida, como o Sistema Nacional de Saúde, neste momento.

Se a gente não deita atenção a que isto possa ser sustentável, amanhã vamos ter problemas muito maiores para resolver. E não creio que estas sejam muitas pesadas ao Estado. Se fosse o Estado a ter de fazer tudo isto seria muito mais caro.

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