Aborto: uma questão de Justiça e Paz

Talvez possa parecer desajustado que um órgão da Igreja que ostenta na sua designação as palavras justiça e paz intervenha no debate sobre o tema que a sociedade portuguesa está agora a fazer. Perguntar-se-á: o que é que a justiça e a paz têm a ver com o aborto? Aparentemente, pouco. No entanto, um exame mais detalhado do conteúdo de tais palavras diz-nos que há uma relação muito grande entre elas. Comece-se pela relação entre o aborto e a paz. Sabe-se bem qual é o objectivo daquela prática: o da destruição de uma vida que está em plena gestação. Ora, destruir uma vida é atentar contra a paz. Não importa o estádio de desenvolvimento em que essa vida se encontra. O que importa é que, se nada interferisse no desenvolvimento do embrião ou do feto, ele terminaria no nascimento de uma criança, isto é, numa pessoa detentora de uma dignidade. Pode parecer demasiado linear este raciocínio. Alguns dirão que ele revela, até, uma grande insensibilidade ao não considerar o quanto deve ser doloroso para uma mulher ter que desfazer-se de algo que lhe é tão íntimo, física e psicologicamente e, por outro lado, não atender às circunstâncias que a levam a tal decisão. A compaixão e a misericórdia são, sem dúvida, sentimentos que se deverão ter por alguém que sofre. Mas defender a vida, qualquer que seja o estádio ou situação em que ela se manifeste (no embrião ou no feto que está no ventre da mãe; no velho que, em casa, no hospital ou no lar, espera pelo dia que já não verá acabar; no esfomeado que, em campos de refugiados, aguarda as migalhas que os grandes deste mundo lhe vão dando; no condenado que aguarda, no corredor da morte, a sua hora) é tarefa que ultrapassa as meras opções religiosas, filosóficas ou sentimentais que cada um possa ter. Trata-se já de colocar as situações no plano do direito natural e da dignidade humana. Por isso, as guerras, as fomes e as doenças que, por incúria, desprezo e ganância dos poderosos, contribuem para a morte de milhões de vidas humanas e sendo estas, quase sempre, as mais desprezadas e mais fracas, devem merecer, igualmente, a nossa indignação. Mas o aborto que se pretende legalizar em Portugal, através de uma lei mais liberalizadora, tem, igualmente, a ver com a justiça. Numa primeira análise, surge um acto de alguém mais forte sobre um ser, com dignidade humana, mais fraco, que por aquele vai ser destruído. Ora, o desprezo dos direitos dos mais fracos pelos mais poderosos é o princípio de todas as injustiças. Por outro lado, ao fixar-se o limite das 10 semanas de gravidez para a mulher, a seu pedido, fazer o aborto e, depois, mesmo que seja só passado um dia desse limite, essa mesma mulher incorrer na possibilidade de ser presa, traduz, igualmente, uma grave injustiça em relação a ela. E essa grave injustiça decorre do facto desse limite de tempo nada ter que ver com critérios de natureza científica ou ética mas, simplesmente, de ter sido estabelecido segundo critérios meramente arbitrários, convencionais e utilitaristas. Ora, o Estado não deveria colocar como alternativa à mulher que se encontra com uma gravidez não desejada o fazer o aborto; o que ele deveria propor era se ela, perante condições físicas, psíquicas, médicas, económicas e sociais adequadas que a protegessem, inclusive da própria família, se fosse esse o seu desejo, se quereria ser mãe. O que está em causa neste referendo não é uma questão partidária que se discute entre quem é de esquerda ou de direita; nem, tão pouco, se trata de um assunto de natureza religiosa em que os católicos conservadores estariam de um lado e os católicos progressistas, os agnósticos e os ateus estariam do outro; nem, ainda, tentar encontrar relações entre o desenvolvimento económico e social dos países e as suas legislações referentes ao aborto; ou ainda se a mulher é ou não dona do seu próprio corpo, quando esse mesmo corpo encerra uma nova vida cujo desenvolvimento não depende da sua vontade. O que se debate é, fundamentalmente, uma questão civilizacional e de princípios que enraízam na própria existência humana. O que se pretende é, pois, que se tome posição sobre um problema de direitos humanos e de lei moral natural. Ora, esta encontra-se inscrita na consciência humana, ordenando que pratique o bem e evite o mal. E esta é universal, imutável e deve inspirar toda a lei positiva, designadamente as leis civis. É, pois, nessa lei moral natural que os nossos legisladores terão que apoiar-se para fazerem as normas que protegem os mais fracos, sejam eles quais forem e estejam onde estiverem! E teremos que ser nós, cidadãos de consciência livre, a criar as condições políticas para que a vida seja sempre respeitada e admirada no seu mistério. Portalegre, 19 de Janeiro de 2007

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