A vida humana. Aspectos biológicos

Intervenção de Laureano Santos nas Jornadas de Comunicação Social Jornadas da Comunicação Social da Comissão Episcopal das Comunicações Sociais Fátima, 23 de Setembro de 2004 A vida humana. Aspectos biológicos. 1 – Introdução O homem tem um corpo semelhante ao de muitos outros seres vivos. As estruturas e as funções dos seus órgãos têm muitas analogias com as dos animais que ocupam os lugares do topo da escala zoológica. De facto, todas as formas de vida têm estruturas básicas comuns. A célula constitui o suporte material da vida e os seres vivos unicelulares partilham muitas das funções existentes nos organismos muito mais complexos. A organização do corpo dos mamíferos, o seu ciclo vital e os comportamentos institivos de muitas espécies superiores reúnem muitas características que se podem reconhecer no homem. O salto da espécie humana relativamente às outras espécies dos mamíferos está ligado às possibilidades de racionalidade e de abstracção. Estas faculdades mentais permitiram-lhe a criação de uma cultura simbólica, na qual se inclui uma forma de linguagem abstracta que lhe permite partilhar os sentimentos, as ideias e os mitos, uma representação do meio onde vive e uma consciência de si. Permitiram-lhe também interpretar alguns dos seus próprios comportamentos e reconhecer os limites extremos do seu ciclo vital, isto é, o nascimento e a morte. Possibilitaram-lhe, ainda, ter consciência de não apenas ser mas de ser-se, isto é, de se situar em si, de ter consciência do passado e de estar na condição de prever um futuro possível e orientável. Procurarei, nesta minha intervenção, dar um contributo para um debate sobre a vida humana nas suas condições limite – isto é, no seu início e no seu ocaso. 2 – A desordem da vida. A hominização. No estado actual do conhecimento aceita-se que a primeira organização da matéria no sentido da vida começou logo que as condições de temperatura e de radiação o permitiram após a formação da Terra. Admite-se que o nosso planeta na forma actual tenha cerca de 4,6 mil milhões de anos. Os sistemas vivos formaram-se a partir de estruturas inorgânicas, admitindo-se que a formação dos primeiros biopolímeros (proteínas e ácidos nucleicos) tenha ocorrido durante um período de cerca de mil milhões de anos. O aparecimento dos primeiros microrganismos vivos teria ocorrido há aproximadamente 3,5 mil milhões de anos. Pode definir-se um conjunto de critérios de vida, tomando o ser vivo como um sistema aberto no meio envolvente com o qual estabelece equilíbrios de fluxos activos que permitem uma certa estabilidade, permanência, actividade autónoma e possibilidade de replicação. São características dos seres vivos: a) a existência de uma actividade metabólica orientada com permuta de matéria, energia e informação com o ambiente do qual se diferenciam e do qual dependem; b) a capacidade de resposta a estímulos exteriores no sentido de manter o equilíbrio do seu meio interno e alterar a sua forma e a sua estrutura através de mecanismos de “feedback”; c) a capacidade de actividade autónoma; d) a automultiplicação com o objectivo da criação de outros sistemas vivos semelhantes a si próprio, sem a qual a informação genética se perderia. A automultiplicação é sujeita a mutações sem as quais o mecanismo inicial da vida não teria sido possível e a informação genética não sofreria alterações que permitiram a diferenciação das espécies e a manutenção da vida. Em 1944, Erwing Schrödinger, um físico austríaco considerado como um dos fundadores da mecânica quântica, tentou um esforço de ligação entre a biologia e as leis fundamentais da termodinâmica. Considerou os seres vivos como estruturas altamente organizadas constituídas segundo uma ordem física diferente da ordem do universo sem vida. As substâncias estruturantes dos organismos vivos e a energia de que necessitam são retiradas do ambiente e organizam-se segundo uma ordenação funcional regida por instruções contidas no próprio organismo vivo. O conjunto de processos activos continuamente em modificação que é o suporte da vida constitui aquilo que os biólogos designam por metabolismo. Este tem duas fases: o metabolismo biossintético, anabolismo ou assimilação e o metabolismo bioenergético, catabolismo ou dissimilação. O elemento mais comum nos seres vivos, se se excluírem o oxigénio e o hidrogénio que compõem a água, é o carbono (cerca de 50 % da biomassa seca). Este carbono provém fundamentalmente do dióxido de carbono do ar nos seres vivos autotróficos (que sintetizam a sua matéria directamente a partir de matéria mineral, fundamentalmente as plantas); ou provém dos compostos orgânicos já sintetizados pelos organismos autotróficos de cuja vida dependem os seres vivos heterotróficos. Outro elemento fundamental na organização dos seres vivos é o azoto, a substância mais abundante no ar, constituinte das proteínas. O azoto é retirado da atmosfera por bactérias sendo fixado por estas em compostos orgânicos que, transformados, irão ser utilizados por outros seres vivos. A informação contida na estrutura de algumas moléculas muito complexas próprias dos seres vivos – o ADN, o tão celebrado ácido desoxibonucleico – ordena a organização própria da vida. Esta organização seria de uma ordem diferente da que domina no mundo mineral e inorgânico. A composição química e a estrutura do ADN constituem a garantia da preservação da ordem nos organismos vivos diferenciando-a da outra dominante no ambiente inorgânico. Em termos termodinâmicos puros esta “nova” ordem da vida seria altamente improvável de acordo com a segunda lei da termodinâmica. De facto, postulando esta lei que o universo caminha da ordem para a desordem e sendo a ordem mineral anterior à ordem biológica, o reordenamento biológico constituiria uma excepção à lei geral da degradação. A organização própria da vida constituiria uma ordem de outra natureza dentro da tendência para a desordem própria da matéria. Designa-se por hominização o processo dinâmico ainda incompletamente conhecido que, por aperfeiçoamentos sucessivos, conduziu ao aparecimento do Homem a partir dos Primatas. A hominização completa implica uma evolução biológica e uma evolução cultural. A primeira teve como resultado um conjunto de capacidades que se traduziram na posição ortostática, nas possibilidades dos movimentos das mãos e oposição do polegar aos outros dedos, na existência de um aparelho fonador e sobretudo no desenvolvimento do sistema nervoso central. A evolução cultural permitiu-lhe a abstracção e a criação de uma linguagem simbólica. A acção conjunta da evolução biológica e da evolução cultural tornou possíveis a reflexão, o autodomínio, a intervenção ordenada no meio ambiente, uma linguagem estruturada e uma organização social. As primeiras manifestações consideradas típicas do homem que chegaram até hoje foram os utensílios. Todavia, estes só podem tomar-se como manifestações indubitavelmente humanas quando neles existe um inequívoco aperfeiçoamento funcional e artístico. A manifestação humana mais característica é a arte sob qualquer das suas formas, sobretudo quando essa arte é simbólica, visto que implica a capacidade de abstracção e uma forma complexa de linguagem. A sepultura intencional dos mortos com os seus utensílios revela com a maior clareza manifestações espirituais e religiosas. Por estas razões apenas podemos considerar como pertencentes inequivocamente à espécie humana o Homo sapiens sapiens – o homem na sua forma actual – e o Homo sapiens neanderthalensis. Este último, o homem de Neanderthal, aceita-se como tendo tido o seu apogeu na última época glaciar (há cerca de 75.000 anos) tendo-se extinguido sem continuação na evolução posterior. Tinha uma constituição muito robusta, uma altura média de cerca de 160 cm, as pernas curtas, a nuca saliente e a zona frontal do crânio muito procidente. Fabricava utensílios de sílex e enterrava os mortos com arranjos florais. O Homo sapiens sapiens apareceu talvez na Ásia Menor ou no nordeste da África há cerca de 60.000 anos e difundiu-se por todo o mundo, com apuramento das suas capacidades físicas e intelectuais até atingir as formas actuais. Pode afirmar-se que a evolução do Homem resultou assim de mecanismos de interacção entre a esfera biológica e a esfera cultural, permitindo “a espécie terrestre de maior sucesso”. Um sucesso que desde a industrialização avançada ameaça todas as outras espécies vivas e os recursos do seu próprio meio envolvente. De qualquer modo, com os conhecimentos actualmente disponíveis, admite-se que apenas a partir da emergência da espécie Homo sapiens (nas suas duas subespécies Homo sapiens sapiens e Homo sapiens neanderthalensis) se encontraram manifestações da vida de alguém com preocupações de ordem superior exclusivas do Homem. Se se admitir, como a maior parte dos especialistas, que só o Homo sapiens pode ser considerado biologicamente como Homem, teremos que aceitar que o Homem é muito recente sobre a Terra (cerca de 100.000 anos ou provavelmente um pouco mais). O Homem conseguiu, portanto, evoluir muito rapidamente, criando uma cultura que o defendeu da acção desagregadora contínua do meio ambiente e o fez evoluir no sentido da criação de civilizações. O Homem de Neanderthal desapareceu por modificações súbitas ocorridas no ambiente ou por não ter conseguido uma cultura suficientemente evoluída para poder resistir. 3 – A vida humana nascente Todas considerações sobre o início da vida humana, qualquer que seja a via da abordagem, antropológica, filosófica, teológica, ou jurídica, não podem eximir-se a uma reflexão biológica. O tema da vida humana nascente adquiriu um novo relevo após os debates sobre a utilização das células primordiais (células do tronco comum ou células estaminais) na investigação básica ou prosseguindo objectivos terapêuticos. As questões ligadas à legalização do aborto, transversalmente presentes nas sociedades contemporâneas, estando embora mais relacionadas com estádios posteriores do desenvolvimento embrionário, referem-se ainda às etapas iniciais da vida humana e às condições do seu acolhimento. O primeiro facto biologicamente identificável na formação de um ser humano é a fusão de duas células altamente especializadas provenientes de cada um dos progenitores contendo metade dos cromossomas de um indivíduo adulto. Estas células são designadas por gâmetas: o óvulo e o espermatozóide. Fenómenos semelhantes estão na origem de todos os mamíferos e de outros seres vivos pertencentes a muitas outras espécies. Quando aquelas duas células se aproximam, envolvidas por um ambiente característico de cada espécie, após uma fase de reconhecimento segue-se a penetração do material genético do espermatozóide no óvulo e a formação imediata de uma barreira na membrana que o envolve, a qual impede a penetração de novos espermatozóides. Neste momento inicia-se uma nova cadeia de actividades sucessivas a partir dos materiais provenientes dos dois gâmetas que vão actuar como se fossem dois sistemas absolutamente complementares, com actividades coordenadas e interdependentes, com o objectivo da constituição de uma nova entidade que tem designação biológica de zigoto ou embrião unicelular. O zigoto é, na realidade, uma célula semelhante a qualquer outra célula de um ser vivo adulto contendo um número duplo de cromossomas relativamente a cada um dos gâmetas. O zigoto designa-se, por isso mesmo, como uma célula diplóide. O que vai seguir-se é um período de reduplicação sucessiva do número de células com genoma idêntico ao da célula inicial; estas irão distribuir-se radialmente e diferenciar-se no novo organismo pluricelular. Nas 15 a 20 horas posteriores à fusão dos gâmetas o zigoto humano vai comportar-se como uma célula orientada pela informação genética de que está dotada no sentido de uma evolução bem definida e precisa. Nos genes dos seus cromossomas está inscrito um plano-programa que distingue cada zigoto de todas as outras células (incluindo as células dos seus progenitores). Neles está incluída a informação constitutiva de um ser com uma identidade única que irá desenvolver-se se as condições ambientais forem adequadas – isto é, se se satisfizerem os pressupostos do metabolismo respiratório, das condições de nutrição e de temperatura de que o ser vivo em absoluto necessita para que se exerçam as suas funções vitais. Se assim acontecer o novo ser irá constituir-se num corpo com as características somáticas de uma determinada figura humana no qual todas as células terão um padrão cromossómico igual ao da célula original. Vai prosseguir o aumento exponencial do número de células – designadas agora por blastómeros – através de uma sequência de divisões com ciclos de 12 a 15 horas, constituindo um processo complexo que se realiza sob o controlo do genoma. O desenvolvimento vai condicionar um contacto recíproco entre as células através da existência de pontes citoplasmáticas e de microvilosidades. Tal contacto é estreitíssimo no estádio de 8-32 células – designado por mórula – no qual, devido à formação de conexões intercelulares complexas, se tornam possíveis as comunicações entre as células cuja interrupção provoca alterações graves no desenvolvimento do embrião. Nos mamíferos superiores até ao estado de oito células cada uma delas é funcionalmente equivalente e pode originar um ser adulto se for separada do conjunto original sob condições próprias e colocada num ambiente adequado; por isso mesmo se designa por totipotente. É o que ocorre na origem dos gémeos verdadeiros ou univitelinos que derivam de um mesmo zigoto e contêm, portanto, o mesmo genoma. Rapidamente irá seguir-se a organização e a diferenciação através das quais as células indiferenciadas se transformarão, por divisões coordenadas e sucessivas, nas estruturas primordiais dos órgãos e dos sistemas constitutivos de um corpo humano. Por volta da 5ª semana da gestação, quando as dimensões de um embrião humano são ainda inferiores a um centímetro, já estão presentes as primeiras estruturas cerebrais, os esboços bem definidos do coração, do aparelho respiratório, do aparelho digestivo e da área geníto-urinária onde já se iniciou o processo de formação do aparelho reprodutor; até à 6ª semana são identificáveis as extremidades dos membros e está avançada a formação do sistema nervoso central; até à 7ª semana a forma do corpo está completa e é inconfundível; até à 8ª semana o corpo está totalmente definido, com os seus órgãos e sistemas já constituídos. Os movimentos espontâneos (saltos, flexões, movimentos do tórax, da cabeça, das mãos e dos dedos) podem ser avaliados entre a 7ª e a 15ª semanas. Os estádios iniciais da vida dos mamíferos superiores e da vida humana têm fascinado todos os investigadores nestes domínios, tanto mais que existem actualmente muitas dezenas de milhares de embriões humanos que se encontram conservados artificialmente no frio, excedentários das intervenções de procriação assistida. O seu destino será necessariamente a destruição, visto que para eles não será possível encontrar acolhimento no seu natural meio de desenvolvimento – um útero materno preparado para a maternidade. Nestes termos, muitos propõem que estes embriões sejam atribuídos à investigação. Foi introduzido o termo de pré-embrião para indicar o período do desenvolvimento humano que vai desde o zigoto até ao décimo quinto dia de evolução. Foram feitas tentativas de integração deste termo no vocabulário diário e foi mesmo aceite por alguns organismos internacionais. A nova entidade – o pré-embrião – pretenderia designar um ser ainda não humano para justificar a manipulação dos embriões excedentários da fertilização “in vitro” e abrir caminho para a licitude da sua utilização para fins investigacionais ou outros. Não existe, deve afirmar-se, nenhum critério objectivo que permita diferenciar um embrião humano no período anterior e posterior aos quinze dias após a formação do zigoto. Ele tem todas as condições intrínsecas para se desenvolver se lhe forem facultadas as condições ambientais que lhe são próprias. Este é, na verdade, um ponto de extrema importância, porque está em jogo o sentido integral da vida humana, a sua protecção, a sua dignidade e os seus direitos. A reflexão sobre todos os dados até hoje demonstrados pelas ciências experimentais não pode deixar de conduzir à conclusão de que a fusão dos dois gâmetas inicia o ciclo vital de um novo ser humano. O seu corpo terá um desenvolvimento autónomo, contínuo e progressivo a partir das fases mais primordiais seguindo um programa que está inscrito nos seus genes. A realização desse programa está sujeita às condições que são características de cada ser vivo – dependência estrita das condições do ambiente em que vive, da adequada nutrição, da sujeição aos factores de doença e da exposição às agressões. E está sujeito à morte, muito comum nas fases iniciais em todos os seres vivos. O embrião humano, logo desde a fusão dos gâmetas, não é um ser humano potencial. É um ser humano real que iniciou a sua existência própria e definitiva. 4 – A clonagem humana O número de 27/02/1997 da revista Nature teve uma repercussão notável nos meios de investigação biológica. Wilmut e Campbell, do Roslin Institute, de Edimburgo, publicaram a metodologia que permitiu o desenvolvimento de um ovo de ovelha transformado por clonagem. A ovocitos de ovelha, as células que são percursoras dos óvulos (células sexuais femininas), foram retirados os seus núcleos naturais contendo apenas a metade materna dos cromossomas. Naquelas células foram introduzidos outros núcleos provenientes de células de glândula mamária de um animal adulto da mesma espécie. A ovelha dadora dos núcleos tinha o conjunto de cromossomas (o genoma) modificado no sentido da produção de um leite com uma proteína muito importante para tratar certas doenças da coagulação na espécie humana. O objectivo último era o da obtenção por clonagem de réplicas de animais excretores no leite daquela proteína no sentido da sua produção industrial, visto que a preparação daquela substância pelos métodos clássicos é cara e pouco rentável. Nessa ocasião foram feitas centenas de tentativas análogas no sentido da criação de embriões modificados com características genéticas idênticas às da ovelha clonante, os quais, criados em úteros preparados para os receber, poderiam originar animais produtores da valiosa proteína. Apenas a mediática Dolly atingiu a idade adulta; todos os outros embriões conseguidos por clonagem não lograram animais viáveis. A própria Dolly precocemente envelheceu e já não existe. Creio que não deixou descendência e não tenho a certeza se o poderia ter feito. A finalidade da Dolly era, portanto, a produção industrial de um certo tipo de leite a partir de animais geneticamente idênticos obtidos por clonagem. Muitas outras experiências paralelas têm sido feitas em animais de espécies inferiores com sucesso, confirmando o facto, há longos anos demonstrado no mundo vegetal e nos organismos animais simples, da existência de reprodução assexuada. De facto, este tipo de reprodução existe universalmente na natureza em muitos níveis: é o único mecanismo de reprodução nas bactérias; existe, frequentemente de um modo intermitente e descontínuo, nos animais inferiores uni e pluricelulares; existe natural e artificialmente induzida em múltiplos domínios da botânica; e nos mamíferos superiores ficou reduzida à situação excepcional dos gémeos verdadeiros. O objectivo perseguido obsessivamente pelos investigadores é o da produção eficaz e regular de um ou de múltiplos exemplares de um animal superior com a mesma informação genética no núcleo de todas as suas células. A utilização de métodos semelhantes nos mamíferos exige uma tecnologia muito evoluída e uma cuidadosa reflexão científica e filosófica. Estão a dar-se os primeiros passos na interferência intencional nos processos primordiais da transmissão da vida nos organismos vivos das espécies superiores, cujo aperfeiçoamento durou muitas centenas de milhões de anos, certamente através de mecanismos de adaptação por selecção natural semelhantes aos que designamos por “tentativa e erro”, gerando linhas de seres vivos inviáveis ou escassamente adaptados ao seu meio. O estudo da evolução da vida na terra demonstra que a reprodução assexuada (a clonagem) é uma forma primitiva de multiplicação dos seres vivos que foi sistematicamente substituída pela reprodução sexuada a qual permitiu a diversificação e diferenciação das espécies e a criação da enorme variedade genética das populações. Os mecanismos da reprodução sexuada, extraordinariamente complexos, constituem a principal garantia da evolução e da sobrevivência das espécies. Foi-se aperfeiçoando ao longo de centenas de milhões de gerações até se atingirem os processos de transmissão da vida próprios dos mamíferos actuais. O termo clonagem é um neologismo adaptado da palavra grega “klôn”, que designa “rebento”, “gomo”, “alporque”, significando o processo de criação e desenvolvimento de seres vivos geneticamente iguais. Estes seres vivos podem ter um organismo com uma única célula; podem mesmo ser apenas material genético que necessita de um suporte biológico permanente de outras células para se manter (vírus); e podem, em condições excepcionais, ser organismos do topo superior da escala animal. É do conhecimento geral o facto de, desde tempos imemoriais nos domínios da botânica, se conseguirem facilmente plantas semelhantes às de um modelo original dotado de certas características particulares. Nestes casos, os mecanismos naturais da reprodução sexuada não permitiriam a conservação dos caracteres favoráveis. Estes apenas podem persistir através de artifícios nas gerações subsequentes. Os organismos dos animais superiores são constituídos por biliões ou triliões de células que se desenvolveram a partir de uma única célula original. O ovo e as células resultantes das primeiras divisões celulares que irão gerar o embrião, são células totipotentes, isto é, com capacidades de diferenciação em todas as centenas de linhas celulares constituintes dos órgãos dos indivíduos adultos. À medida que se processa o desenvolvimento, as células vão-se diferenciando em cada tecido a seu modo para constituírem os múltiplos órgãos do organismo. Diferenciando-se, vão perdendo a capacidade de se transformar noutras linhas celulares, em parte por alterações cromossómicas ainda incompletamente esclarecidas. Algumas linhas de evolução celular durante a formação dos organismos perdem mesmo precocemente a capacidade de se multiplicar, como a maior parte das células do sistema nervoso. Nalguns animais, as células geradoras das células sexuais femininas – os ovocitos ou oócitos – portadoras apenas da metade materna dos cromossomas dos indivíduos adultos, são susceptíveis de permitir a viabilidade de um ser vivo obtido por clonagem, substituindo-se o seu núcleo (dito haplóide por apenas conter metade dos cromossomas do indivíduo adulto), por um núcleo com a carga genética completa (dito diplóide) obtido a partir de uma célula de um organismo constituído (embrião ou adulto). Foi o que foi tentado com êxito no Roslin Institute, gerando a Dolly. A clonagem exige a substituição ou a inactivação do núcleo de uma célula totipotente (de um ovocito, de um ovo ou de outras células com estas características) e a transnucleação de uma célula de um ser da mesma espécie contendo material genético completo que faculte a sua viabilidade. Cada ser vivo possui um património genético único impresso no núcleo de cada célula. Excepcionalmente, os gémeos homozigóticos, derivados de um único ovo e diferenciando-se em dois ou mais seres a partir de células criadas nas primeiras divisões, possuem os mesmos genes. Os seres vivos derivados de reprodução assexuada conservam quase íntegros os seus caracteres genéticos em sucessivas gerações, mantendo, embora, certas formas de adaptação de outro tipo. Os animais obtidos por clonagem têm também, por artifício, os mesmos genes dos seres que lhes serviram de modelo no núcleo de cada célula. O desenvolvimento de um embrião de mamífero deste modo originado exigirá também as condições ambientais características de cada espécie. Nos mamíferos superiores exigirá, pelo menos, um útero preparado e um meio interno próprios. As células das primeiras divisões são, como se deixou dito, totipotenciais, também designadas por células do tronco comum. Isto é, têm a capacidade de se dividir originando outras que se podem diferenciar nos múltiplos tecidos dos órgãos do indivíduo adulto. A designação científica é a de células estaminais embrionárias. O isolamento e a preparação de culturas destas células na espécie humana implica necessariamente a produção artificial de embriões humanos ou a utilização de embriões crioconservados excedentários de tentativas de fertilização in vitro. Envolve também indução do desenvolvimento das primeiras fases dos embriões até às fases de blastocito, a separação das massas celulares que contêm as células totipotenciais (o que significa necessariamente a destruição dos embriões), a cultura de tecidos dessas células em ambiente nutritivo adequado e o desenvolvimento das linhas celulares capazes de se multiplicarem indefinidamente conservando por longos períodos as características de células com capacidades de diferenciação. Estas podem ser objecto de clonagem com material genético obtido de células de organismos humanos adultos. A publicação das informações relativas a estes domínios científicos tem inflamado periodicamente o mundo tecnológico biomédico, farmacêutico e certa indústria; e tem repercussão nos média. Estão criadas expectativas, sublinhe-se ainda não completamente demonstradas, para a utilização desta tecnologia na terapêutica de muitas doenças que implicam a substituição de órgãos doentes e na cura de doenças genéticas através do desenvolvimento de linhas celulares e de tecidos diferenciados obtidos por clonagem ou por manipulação genética, partindo de células estaminais embrionárias humanas, tornando-as, por várias técnicas, compatíveis com organismos humanos plenamente desenvolvidos. Noutras linhas de investigação, ao longo dos últimos trinta anos, foram descritos em vários órgãos de indivíduos adultos, células que mantêm capacidades de diferenciação, isto é, células estaminais com capacidades de reproduzirem tecidos dos órgãos maduros onde foram identificadas. Nos anos mais recentes foram isoladas células estaminais multivalentes capazes de se diferenciarem segundo linhas celulares diferentes das dos órgãos originais. Foram descobertas células viáveis com estas características no sangue do cordão umbilical e na placenta, na medula óssea, no sistema nervoso e no tecido conjuntivo de certos órgãos (mesentério). Estas células foram isoladas e foram desenvolvidas em culturas de tecidos; foram mesmo descritas e utilizadas algumas das substâncias reguladoras do seu crescimento e da sua diferenciação em certas linhas celulares. Através de técnicas semelhantes, já é comum no nosso país a reconstrução de todas as células do sangue após a destruição da medula original em doentes atingidos por certas doenças hematológicas. Noutros domínios existem algumas indicações de que é possível guiar o desenvolvimento de células estaminais obtidas a partir de organismos humanos adultos no sentido da sua diferenciação em células do sistema nervoso, bem assim como em células de outros tecidos constitutivos da pele, do músculo periférico, do coração, do pâncreas e do rim. As informações provenientes destes domínios científicos devem suscitar debates aprofundados porque abordam os mecanismos mais íntimos da transmissão da vida. Aplicadas à vida humana colocam questões que exigem uma reflexão ética suplementar. Desde logo se identificam duas áreas onde a clonagem de células humanas é susceptível de utilização. Uma primeira área é a da “clonagem reprodutora”, isto é, a clonagem de células humanas totipotenciais com material genético clonante proveniente de outro ser humano com o objectivo de produzir um embrião viável através da utilização de um útero de uma mãe hospedeira. Este tipo de intervenção não tem interesse científico, visto que se conhece ser possível nos mamíferos superiores e não tem nenhum suporte ético. Foi explicitamente banido da legislação da maior parte dos países com capacidade científica. No entanto, estrondosamente, algumas vozes declaram-se com capacidade para tal prática e tem sido explicitamente afirmado que existem múltiplas gestações secretas que ainda não conduziram, que se saiba, a seres humanos. Não sabemos a que têm conduzido. No entanto, nalguns países, como a Inglaterra, existe actualmente abertura para uma legislação permissiva. No nosso país, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida manifestou-se formalmente contra a clonagem reprodutora humana e a Assembleia da República acolheu o seu parecer. A clonagem reprodutora exigiria a destruição deliberada de embriões humanos (visto ser muito pouco provável que os ovocitos humanos ou que células totipotentes de outra origem possam originar embriões viáveis) e representaria a máxima instrumentalização de um ser humano. Na verdade, que maior limitação da dignidade de alguém poderá existir do que o condicionamento deliberado do seu material genético – de todas as suas células, incluindo o das suas células sexuais, com o risco previsível da gestação de linhas geracionais estigmatizadas, com fortes possibilidades de alterações fortuitas do genoma e de inibição de certos mecanismos protectores do património genético? São enormes as probabilidades de criação de embriões inviáveis por clonagem. Como também as probabilidades de malformações a manifestar-se durante a vida embrionária ou na vida extra-uterina. E haverá qualquer espécie de legitimidade para limitar a vida e as gerações futuras desse ser humano portador de material genético manipulado? Muitos argumentos existem a favor da “clonagem terapêutica”. Há um enorme potencial na utilização de células pluripotenciais humanas adultas. Prevê-se a sua transformação em múltiplos tecidos, através da identificação e utilização dos factores de crescimento e de diferenciação específicos de cada órgão. Existem actualmente muitas doenças mortais nas quais a utilização de células pluripotenciais humanas pode permitir uma terapêutica definitiva. Num futuro próximo é possível que intervenções semelhantes possam salvar doentes com lesões hoje tidas como irreversíveis no sistema nervoso central, no coração, no fígado e no rim. Em muitas circunstâncias não será possível a utilização de células multipotenciais dos próprios doentes para reconstrução dos seus órgãos. A clonagem de células multipotenciais humanas permitirá o desenvolvimento de tecidos compatíveis com o dador do material genético. Aquelas células existentes no cordão umbilical, no sangue placentário e eventualmente noutros territórios são susceptíveis de desenvolvimento em cultura de tecidos; são ainda susceptíveis de clonagem e de modificação das proteínas das suas membranas exteriores com o objectivo da criação de tecidos imunologicamente compatíveis com os organismos adultos. As células embrionárias são, neste momento do desenvolvimento científico, as que mantêm a maior capacidade de diferenciação. Não é lícita, porém, a utilização de células totipotenciais originárias de embriões humanos dadores porque esta atitude implica necessariamente a sua destruição. O embrião humano é titular de um destino específico que se irá expressando ao longo da sua evolução segundo um processo contínuo desde a sua concepção até à morte. Cada embrião merece o mesmo respeito que uma pessoa: toda a investigação a que for submetido deve ser feita em seu favor e não pode ser instrumentalizado segundo interesses alheios. E se em alguém persistir a dúvida sobre a natureza última do embrião humano, ainda assim, tem que considerar o princípio ético da ilicitude de uma intervenção destruidora numa entidade sobre cuja natureza e titularidade de direitos subsistem dúvidas. Não pode aceitar-se passivamente o afrontamento com factos consumados. 5 – O ocaso da vida humana Cada ser com vida tem um termo do seu ciclo biológico. A partir de um certo momento existe sempre um desequilíbrio entre os factores anabólicos e catabólicos que permitem manter o meio interno dentro das condições e dos limites que permitem a vida. E, mesmo que todos os factores externos característicos de cada espécie sejam os mais favoráveis para as funções vitais, a tendência para a desagregação está inscrita no programa vital (no genoma) de cada ser vivo e é inexorável. A manutenção das espécies depende da capacidade de multiplicação, da capacidade de adaptação e da aniquilação de cada um dos seus membros. Os seus constituintes materiais, transformados após a morte, irão integrar a cadeia da vida ou serão devolvidos ao meio envolvente inorgânico. A natureza da vida, qualquer que seja o ponto de vista sob o qual se considere, pressupõe, pois, um ciclo individual que termina com a morte. O exercício actual da medicina foi tributário de um conjunto de tecnologias que foram desenvolvidas nas últimas décadas. A reanimação cardíaca e respiratória com as possibilidades de reposição pronta e correcta dos fluidos orgânicos e da reconstituição do meio interno, o domínio ainda que precário e instável das infecções pelo conhecimento da biologia dos microrganismos e a utilização de fármacos eficazes, os avanços decisivos nas áreas da imunologia em conjugação com as possibilidades de controlo da dor facultaram intervenções reparadoras na intimidade do corpo humano. O domínio da fisiologia dos órgãos, a utilização de próteses e a generalização dos transplantes permitiram expectativas de vida a um número de pessoas vítimas de doenças que outrora não tinham possibilidades de sobreviver aos episódios de agudização. O conhecimento das alterações bioquímicas que constituem os mecanismos primários de muitos defeitos fisiopatológicos e o desenvolvimento da biologia molecular tornou possível curar ou atalhar a evolução até então inexorável de doenças que têm acompanhado o homem ao longo da sua história. Este conjunto de factores, provenientes praticamente de todos os áreas científicas e tecnológicas, associado à organização social das sociedades contemporâneas de economia evoluída facultaram reunir nos hospitais modernos as condições para uma grande variedade de actuações que permitem prolongar a vida humana. No nosso país, a generalização dos cuidados de saúde juntamente com a melhoria das condições económicas dos portugueses permitiram que a esperança de vida na altura do nascimento subisse de menos de trinta anos na década de 1920 para os actuais 75 anos. Na terceira década do Século XX a causa maior de morte no nosso país era motivada pelas infecções respiratórias (sobretudo a tuberculose) e existia, como todos conhecem, uma mortalidade infantil devastadora. Actualmente a mais frequente causa de morte em Portugal é constituída pelas doenças vasculares do sistema nervoso central seguida pelas doenças vasculares do coração. Esta distribuição das causas da mortalidade verifica-se nos meios urbanos como nos meios rurais e tem-se mantido apenas com ligeiras oscilações nas últimas décadas. No rol das doenças que mais matam os portugueses segue-se o conjunto heterogéneo das doenças neoplásicas, as doenças traumáticas resultantes dos acidentes com veículos motorizados e as doenças crónicas do fígado. A maior parte destas doenças é susceptível de prevenção visto que existem factores de risco ligados a hábitos e a comportamentos que são modificáveis. Algumas manifestam-se por um acidente agudo e têm uma evolução breve para a morte. A maior parte delas, porém, manifesta-se por um episódio inaugural que, podendo não ser mortal, exigirá frequentemente internamento hospitalar e dele poderá resultar uma maior ou menor incapacidade. A este episódio seguir-se-á uma fase de tratamento, de reabilitação e de prevenção de outros episódios semelhantes aos quais os doentes, por via de regra, são particularmente susceptíveis. A tecnologia médica permite manter a vida mesmo quando existem graves perturbações orgânicas, sendo possível corrigir as disfunções dos sistemas claudicantes por um período bastante para permitir a eventual recuperação do órgão doente ou para a sua substituição por uma prótese ou por um órgão transplantado. Como se compreende, a evolução destas doenças dependerá de muitos factores que têm comportamentos difíceis de prever. Muitos doentes têm uma expectativa de cura que nunca terá concretização. Outros, tendo embora sobrevivido a situações muito graves, posteriormente apenas conseguem manter um grau restrito de autonomia. Permanecem com deficiências crónicas em um ou em vários sistemas funcionais, ficam mais vulneráveis a outras doenças e permanecem sujeitos à administração continuada de fármacos com acções acessórias que impõem vigilância apertada em consultas de especialidades médicas. Mantêm-se como doentes crónicos, dependentes de uma tecnologia escassa, complexa e cara, à qual a organização das sociedades modernas prometeu, um tanto levianamente, um acesso cada vez mais fácil e pronto. Admite-se que em Portugal cerca de 60 % dos óbitos totais ocorram durante um internamento hospitalar. Assim, a morte acontece fora do envolvimento familiar e comunitário característico das sociedades tradicionais, onde naturalmente melhor pode exprimir-se a partilha dos afectos. Existem alguns aspectos inquietantes da organização dos cuidados de saúde no se refere aos doentes em situação terminal. Os beneficiários do sistema de seguro de saúde americano Medicare têm uma mortalidade global de 5 a 6 % em cada ano; cerca de 50 % do dinheiro gasto com os cuidados individuais são utilizados nos últimos seis meses de vida; 40 % são utilizados nos últimos dois meses e 30 % no último mês. Os estudos económicos concluem que nenhuma sociedade poderá suportar os custos previsíveis da generalização da tecnologia actual a todos os doentes terminais segundo as regras explícita ou implicitamente aceites na cultura moderna. As autoridades mundiais nos domínios da economia da saúde antevêem que, sendo os recursos inevitavelmente limitados, um dos maiores desafios com que se debaterão os políticos nas próximas dezenas de anos será o do balanço entre os cuidados aos doentes nos últimos períodos da vida e os serviços de saúde a prestar a toda a população. Poder-se-á sempre pensar que as tendências dos números, apesar de preocupantes, são razoáveis. É natural que uma grande fatia dos recursos da sociedade seja utilizada nas pessoas com doenças mais incapacitantes, com maior sofrimento e com a vida mais gravemente ameaçada. Sublinhe-se que estas questões, não sendo originariamente económicas, não podem ser aceites apenas nos planos das análises de custos. Pelo contrário, o que minimamente se pode exigir é que os doentes em situações graves e terminais encontrem, juntamente com os cuidados específicos da medicina curativa e da medicina paliativa, um enquadramento afectivo, familiar e social adequado à sua situação. Uma lógica predominantemente económica no planeamento e na atribuição dos recursos aos cuidados a prestar na fase última da vida poderá exercer intoleráveis pressões sobre os decisores, sobre as entidades prestadoras e sobre os profissionais que nelas intervêm. Não é admissível pensar que os problemas actuais e os que se antevêem no futuro próximo possam resolver-se apenas com os critérios actualmente predominantes na atribuição dos meios existentes e que uma atitude de passividade no planeamento dos serviços e as ofertas propostas pelo livre mercado consigam encontrar as soluções apropriadas. Todos admitem que nas próximas décadas existirá um número crescente de doentes nos quais a utilização das tecnologias disponíveis será imprescindível e alongará a vida. Por todas as razões, aumentará a utilização dos cuidados de saúde nestes domínios. Trata-se de áreas que foram longamente negligenciadas ou mesmo ignoradas por todas as entidades intervenientes, havendo deficiências notórias na atribuição dos recursos, na preparação do pessoal e nas instalações actualmente utilizadas. São escassas as estruturas sociais e as instituições dedicadas nas comunidades locais que podem dar soluções com oportunidade, dignidade e eficácia aos numerosos problemas pessoais, familiares e sociais que as pessoas com uma doença terminal podem levantar. Alguns elementos dominantes nas culturas das sociedades contemporâneas (sobretudo nos meios urbanos) e as características das instituições hospitalares criaram condições para que os doentes atingidos por uma doença gravemente evolutiva ou incurável e os doentes moribundos possam ver limitadas as suas expectativas relativamente ao apoio pessoal que poderiam esperar das sociedades em que se inserem. Nalgumas circunstâncias existem mesmo ameaças aos direitos que lhes são atribuídos pela dignidade essencial dos seres humanos e pelo enquadramento legal dominante nas sociedades contemporâneas. De que natureza são essas ameaças? Um primeiro conjunto de ameaças resulta da atenuação dos laços familiares e comunitários tradicionais e do facto de os doentes terem receio de perder a autonomia pelas consequências da sua doença quando se tornam um pesado ónus para os que lhes estão próximos. Estas circunstâncias constituem o núcleo dos temores dominantes em muitos portadores de doenças progressivas e fatais. A este medo da dependência sem apoios quando deles mais necessidade teriam, junta-se a degradação progressiva das suas imagens, a desvalorização e a discriminação social, o sofrimento físico e a solidão. Um segundo conjunto de ameaças resulta da deficiente organização dos cuidados de saúde relativamente às doenças do fim da vida. Os sistemas de cuidados de saúde estão mais adaptados aos cuidados da medicina curativa e de reabilitação do que aos cuidados de medicina paliativa que se destinam aos doentes portadores de doenças crónicas, progressivas, invalidantes e fatais. Os objectivos da terapêutica estão apontados predominantemente para os sofrimentos físicos e minimizam o enquadramento psicológico, social, cultural e espiritual. Este facto traduz-se na incipiente preparação no pessoal de saúde nos domínios da medicina paliativa e na ausência de instituições dedicadas àquelas actividades em muitas comunidades. Um terceiro conjunto de ameaças resulta do receio da dor, do sofrimento intenso, do sofrimento desnecessário e prolongado, e da própria proximidade da morte. Nalguns doentes dominam os receios de um inadequado do processo de morrer, pela sobrevalorização dos meios de intervenção por parte da sociedade e da medicina, sendo utilizados métodos desproporcionados à sua situação de doença e à sua provável evolução. Noutros doentes (e sobretudo nalguns familiares) predominam os receios da não utilização de todos os meios que se poderiam mobilizar nas circunstâncias pela insuficiência dos recursos atribuídos, pela ocupação excessiva das equipas de intervenção ou dos equipamentos e eventualmente por incúria ou por negligência. Sendo a vontade expressa do doente determinante para o início e o seguimento das medidas terapêuticas, o médico e a equipa têm o papel decisivo no estabelecimento do diagnóstico, no prognóstico e nas propostas de intervenção. Têm igualmente um papel decisivo na manutenção de uma boa relação entre o doente, a sua família e a equipa, sobretudo no sentido de não haver distorções da informação e na criação de um clima adequado. A preparação e o treino da equipa nas situações limite é muito importante. Nem sempre os médicos aceitam bem a ideia de que para os doentes algumas vezes será melhor “fazer menos do que fazer mais”. As decisões de “não tomar algumas medidas” são, em regra, mais difíceis do que a alternativa de prosseguir com a utilização da complexa tecnologia médica que é possível utilizar nas situações limite. A incerteza dos diagnósticos, a variabilidade própria dos fenómenos biológicos e a natureza precária dos prognósticos criam dificuldades suplementares no sentido da avaliação do tempo de vida e da qualidade de vida a que se sujeitam os portadores de uma doença grave quando são submetidos ou quando não são submetidos a um determinado protocolo terapêutico. A insistência em determinadas medidas extraordinárias para além dos limites razoáveis constitui um erro que deve ser evitado. O facto de ter havido uma referência a um caso de um doente que sobreviveu a circunstâncias semelhantes não constitui um motivo para se prosseguirem medidas para além das expectativas razoáveis. 6 – Algumas questões fundamentais Os avanços tecnológicos nos domínios da biomedicina permitiram que o curso do termo da vida se modificasse. A natureza deixou de constituir o único árbitro entre o viver e o morrer. Este processo modificou-se com o desenvolvimento dos conhecimentos básicos e a evolução das tecnologias, criando um conjunto de problemas éticos que são historicamente muito recentes, não encontram respostas unânimes e têm vastas repercussões na cultura contemporânea. A vida humana tem uma dignidade intrínseca que não se altera nos seus limites temporais. Admiti-lo e verter no ordenamento jurídico tal princípio, aceitar que a vida humana se desvaloriza porque é frágil, dependente, dolorosa ou inconsciente é, antiteticamente, aceitar que a vida humana só vale quando é bela, boa e útil, tal como os slogans da sociedade de consumo não se cansam de apregoar. A eutanásia é a morte intencional de alguém a seu pedido provocada por outra pessoa que aceitou o pedido e lhe deu o seguimento por entender que a vida seria insuportável ou não tinha dignidade. Trata-se nos casos típicos de uma morte desejada pelo próprio, vítima de uma doença gravemente limitante, progressiva e mortal que pede a morte porque a vida com o sofrimento se tornou intolerável. O pedido é acolhido e assumido por outra pessoa como única e definitiva solução para a situação presente e é consequentemente executado. Sob o ponto de vista ético é um caso característico de conflito de valores: entre a vida humana, que constitui o suporte da consciência reflexiva e de todos os outros valores, nomeadamente os que se referem à autonomia e à responsabilidade, e os valores da beneficência e da não maleficência, que constituem o suporte fundamental da actividade dos profissionais da medicina. Trata-se de uma espécie de dialéctica presente na cultura contemporânea entre o “dever de viver e o direito a morrer”. Quando alguém deseja a morte e exprime a sua vontade encontra-se dominado por um sofrimento intenso, quer pela dor quer pela perspectiva de evolução da doença, que lhe degradam a autonomia, a imagem que tem da sua vida e do seu significado. Quando alguém aceita o pedido expresso de uma morte desejada atribui ao princípio da autonomia o valor supremo e desvaloriza o valor intrínseco da vida humana e as possibilidades de atenuação da dor e do sofrimento de que a medicina pode dispor. A eutanásia não consiste apenas numa intervenção directa no sentido de suprimir a vida. Envolve também intenção de não utilizar os meios que a poderão manter e eventualmente permitir outro tipo de decisões que facultem a continuação de uma relação positiva com a consciência reflexiva e com a comunidade envolvente. O direito à vida constitui um direito fundamental. O respeito pela própria vida apenas pode subordinar-se em certas circunstâncias extremas ao respeito pela vida dos outros ou por outros valores que apenas o próprio titular da vida pode legitimar. Mas no caso da eutanásia não podem invocar-se outros valores anteriores à vida, visto que a dignidade da pessoa não fica ferida pelo sofrimento e pela dor, que no entanto, devem ser combatidos e eventualmente eliminados com todos os meios que a medicina e as sociedades actuais podem dispor no sentido do apoio integral ao doente em sofrimento. A introdução do princípio da eutanásia significa em todas as circunstâncias fazer depender a existência da vida humana das decisões e da deliberação de outrem. Esta deliberação, ainda que dirigida no sentido de superar o sofrimento intolerável e suportada pelo consentimento, significa sempre uma decisão irreversível da destruição decidida de uma vida humana. Aceitar aquele princípio significa que a manutenção e a continuação da vida possa depender de condições permissivas. Nos países onde, como se sabe, a eutanásia foi legalizada, existem numerosos casos não notificados e uma percentagem significativa de mortes provocadas sem consentimento expresso. Na avaliação das circunstâncias do suicídio assistido está presente o mesmo conflito de valores entre a vida humana e a autodeterminação. O suicida, não suportando o sofrimento, pede que lhe sejam dados os meios de morrer. Nas circunstâncias-limite muitos doentes fazem o pedido da morte estando dominados pela dor, pela insuficiência de meios de tratamento e pela falta de esperança. Deve admitir-se que o pedido corresponde a condições extremas da experiência humana e que devem ser mobilizados todos os meios possíveis para diminuir o sofrimento e a dor, seguindo a arte médica, mesmo que coloquem em risco a vida do doente. O princípio da autonomia da pessoa tem limitações que todos reconhecem nas sociedades organizadas, nomeadamente no respeito pela vida própria e nos limites que são impostos pelos direitos e liberdades dos outros. O juízo ético sobre o suicídio assistido tem os mesmos pressupostos invocados na eutanásia. A diferença nuclear é a de que o agente intervém facultando os meios para que o próprio realize a sua morte. A abstenção da terapêutica activa, da qual poderá resultar a morte não iniciando ou interrompendo uma intervenção por vontade manifestada inequivocamente pelo doente, é uma atitude correcta nas situações do final da vida. O doente mantém o direito explícito de continuar ou de interromper a seu pedido os tratamentos e o internamento em todas as circunstâncias. Por outro lado, o doente e os que o rodeiam, ainda que livremente devam exprimir os seus desejos e os seus interesses, não podem exigir uma determinada abordagem diagnóstica ou terapêutica que não tenha o acordo explícito da equipa de intervenção. A utilização de métodos de diagnóstico e de terapêutica inúteis, por não contribuírem para o esclarecimento das situações e por não terem um efeito benéfico, não tem lugar no tratamento das situações terminais. Não deve iniciar-se, assim, uma intervenção cujos efeitos não estejam demonstrados. O médico deve transmitir com correcção e tranquilidade ao doente e eventualmente aos seus familiares, as decisões que se referem aos métodos inúteis de intervenção a partir dos dados objectivos e seguros de que dispõe. A vida humana suporta todos os outros valores, nomeadamente a existência da consciência reflexiva; é a base de todos os direitos de cidadania. É inviolável em sim mesma. A vida não adquire nem perde o seu valor por se situar em condições limite, nomeadamente nas situações de doença, por mais precárias que sejam. O valor da vida humana pode entrar em conflito com o valor de uma morte com dignidade, já que este valor se encontra ligado à imagem integral da pessoa. Neste sentido o doente tem sempre o direito de manter um diálogo aberto e confiante com os médicos e com os que o rodeiam. Tem o direito de conhecer a verdade da sua situação. Tem direito a receber os tratamentos adequados, segundo o estado da arte médica e as possibilidades da sociedade em que se insere. Tem, nomeadamente, direito aos cuidados paliativos que devem organizar-se nas comunidades locais. Tem sempre o direito de não receber tratamentos fúteis, inadequados e desproporcionados à sua situação. O termo da vida é um fenómeno natural. Tanto como o seu início. O homem é, no entanto, o único ser vivo que tem consciência da sua finitude. E deve ter consciência dos limites das suas intervenções. No exercício actual da medicina porventura as decisões mais difíceis, mais controversas e mais carregadas de conteúdo emocional referir-se-ão às situações nas quais se opta por não utilizar todas as medidas terapêuticas disponíveis. As tecnologias biomédicas actualmente existentes aplicadas nas situações limite exigem um suplemento de formação humana, de coordenação da equipa terapêutica e de capacidade de comunicação que constituem os elementos fundamentais na organização do apoio aos doentes e às suas famílias. Bibliografia Jacob F. La logique du vivant. Odile Jacob. Paris. 1970. Madeira-Lopes A. O que é a vida? O que vemos e o que pensamos dela. Brotéria 2003; 157: 261-69. Murphy M P e O’Neill L A J. What is life? The next fifty years, an introduction. In: What is life? The next fifty years – speculations on the future of biology. Cambridge University Press, 1994. Pp 1-4. Dennis C e Campbell P. The eternel molecule. 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