A vida cristã como viagem

Padre Jorge Guarda, Diocese de Leiria-Fátima

«Ide pelo mundo inteiro…»  (Mc 16, 15)

A vida é, com frequência, entendida como uma viagem. Esta metáfora exprime o caminho a percorrer, as variadas experiências, a aprendizagem, dinamismo, a progressão, os enganos, desvios e reencontro da estrada, as incertezas, as necessidades e lutas, a esperança e o sentido que a vida comporta. Quem decide pôr-se a caminho tem no pensamento um destino e uma meta a alcançar. “Através de todas as literaturas, a viagem simboliza uma aventura e uma procura, quer se trate de um tesouro ou dum simples conhecimento, concreto ou espiritual” (Dicionário dos símbolos, 692).

Que significa a viagem? José Tolentino Mendonça escreve que ela “é uma etapa fundamental na descoberta e na construção de nós mesmos e do mundo. É a nossa consciência que caminha, descobre cada detalhe do mundo e tudo olha de novo como se fosse a primeira vez. A viagem é uma espécie de motor desse olhar novo. Por isso é capaz de introduzir na nossa vida e nos seus esquemas, na sua organização, elementos sempre inéditos que podem operar essa recontextualização radical que, com um vocabulário cristão, chamamos «conversão»” (SNPC, 6/6/2017). A viagem representa a aventura, a descoberta, a inovação e a mudança. O seu contrário é a rotina e a estagnação, que bloqueiam o nosso crescimento e a maturidade.

A mesma metáfora da viagem é usada também para exprimir a vida cristã. O próprio Jesus foi um incansável viajante, designou-se o caminho (Jo 14, 4-6), escolheu discípulos para andarem com ele e os enviar, dando continuidade à sua missão (cf Mc 3,14). No final da sua estadia, já ressuscitado e antes de voltar para o Pai, ordena-lhes que vão pelo mundo a proclamar o Evangelho e oferecer a todos a salvação. E eles foram pregar por toda a parte, sentindo a presença e a cooperação espiritual de Jesus, que confirmava “a Palavra com os sinais que a acompanhavam” (Mc 16, 15.20).

Segundo o Livro dos Atos dos Apóstolos, a maneira de viver e de agir dos cristãos era designada “a via” ou “o caminho” (9,2; 18,25.26; 19, 9.23; 22,4; 24, 14.22). Eles são os que seguem a via do Senhor, e o seu andar pelo mundo é também chamado de peregrinação em direção à morada eterna (CIgC 2691).

A viagem da vida cristã inicia-se com o Batismo, prossegue com a receção do dom do Espírito Santo no Crisma e da comunhão com Cristo na Eucaristia. Continua ao longo da vida, percorrendo os caminhos do mundo, animada, instruída pelo Evangelho e a doutrina cristã e alimentada pela presença, o amor e a companhia espiritual de Cristo. Algumas orações fazem-se eco da viagem, sobretudo em termos de peregrinação. O Catecismo, por exemplo, ensina que o dom da comunhão eucarística “sustenta as nossas forças ao longo da peregrinação desta vida, faz-nos desejar a vida eterna e desde já nos une à Igreja do céu, à Santíssima Virgem e a todos os santos” (CIgC 1419). Aos cristãos moribundos, a comunhão é dada como viático, ou seja, “provisão para a viagem”. O ministro, depois de apresentar “o Corpo de Cristo”, diz: “Ele te guarde e te conduza à vida eterna” (Ritual da Unção dos Doentes, n. 112). No termo da sua vida temporal, o fiel cristão passa pela morte e entrega-se definitivamente a Deus, à maneira de Jesus, que na cruz disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Se estiver em condições para tal, o fiel entra então na comunhão plena com Deus, segundo as palavras de Jesus ao bom ladrão: “Hoje, estarás comigo no Paraíso”.

Itinerário através de várias conversões

Na viagem da vida cristã também há incerteza, dúvidas, provações, desvios e perdas do caminho, surpresas, novas descobertas, iluminações e escolhas. Por vezes, caminha-se às escuras e às apalpadelas. Há quedas e necessidade de se reerguer, fracassos, pecados e súplica de ajuda e perdão. Neste percurso de vida é decisiva a conversão cristã. Esta consiste no encontro pessoal com Cristo, que se renova e aprofunda ao longo do tempo. Ele, com o dom da fé, abre ao fiel um novo horizonte de vida, levando-o a desejar e empenhar-se para O conhecer sempre mais e entrar na comunhão íntima e intensa com Deus.

A conversão é mais do que abandonar o pecado e acolher a graça divina. É um processo para uma adesão total e a plena identificação com Cristo. Comporta, segundo Carlo Martini, quatro dimensões da pessoa: religiosa, moral, intelectual e mística. “Cada cristão, depois da primeira conversão, a batismal, deveria alcançar gradualmente as demais etapas” (Oración y conversión, 247). A conversão religiosa cristã consiste na passagem do desconhecimento de Deus ou de um conhecimento confuso “ao conhecimento do Deus de Jesus Cristo”, que Ele nos deu a conhecer como amor, e entrar numa relação pessoal de fé e amor. Na conversão moral, o fiel descobre a dimensão moral e eclesial da vida cristã: compreende que não basta viver a fé, que deve orientar o seu estilo de vida e comportamento pelos valores e a doutrina cristãs, empenhando-se também no serviço aos outros na Igreja e na sociedade, inspirado pelo Evangelho. A conversão intelectual afeta o pensamento e a mentalidade do cristão. Significa adquirir convicções pessoais, assumir a razoabilidade de fé e tornar-se capaz de a exprimir no meio e em confronto com o variado contexto cultural do tempo, sabendo colher dele os conceitos e valores válidos. Esta conversão requer esforço, vontade, paciência, tempo, mas é preciso fazê-la para chegar a uma maturidade cristã e tornar-se capaz de anunciar o Evangelho e a revelação de Deus de modo adaptado ao mundo de hoje. A conversão mística é a condição contemplativa da vida cristã “que nos possibilita captar imediatamente a presença de Deus em tudo”. A graça mística recebe-se mediante o exercício da oração, meditação, contemplação e discernimento para identificar os sinais da atuação do Espírito Santo na história, e toda a história em Deus (cfr Oración y conversión, 245-257).

Os fiéis cristãos são companheiros de viagem e contam com o acompanhamento invisível de Jesus em todas as vicissitudes da vida. É muito elucidativa a este propósito a experiência das duas viagens dos discípulos de Emaús narrada por S. Lucas (24, 13-35). É assim que a nossa viagem pode ser acompanhada, iluminada e fortalecida pela presença e ajuda de Jesus vivo. Escolhamos viajar na vida com Ele. “Descobriremos que não há imprevisto, não há subida, não há noite que não se possa enfrentar com Jesus” (Papa Francisco, Regina Caeli, 26/4/2020).

A viagem cristã não se pode fazer sozinho. Faz-se em companhia, é simultânea e inseparavelmente pessoal e comunitária. Se o quisermos aceitar, a Igreja, os irmãos na fé e a família cristã prestam-nos oportuno acompanhamento e nós também o fazemos em relação a eles. Caminhamos em Igreja e com a sua ajuda, formação e sustento.

É muito útil ter esta consciência da vida cristã como viagem. Sem ela não crescemos nem progredimos espiritualmente nem temos condições para incarnarmos o Evangelho no mundo e dele sermos testemunhas. A consciência de estarmos em caminho ajuda-nos a ter presente a meta para a qual nos dirigimos, a esperança que nos anima e a perceção de que neste mundo, ao longo do tempo que nos é dado viver, estamos sempre de passagem. Assim seremos mais livres e confiantes. Connosco e diante de nós, há Alguém que nos espera e nos há-de acolher na sua casa, que se torna também a nossa. Esta é a fé e a esperança cristãs que nos animam na viagem da nossa vida.

 

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