A sociedade catolaica: paradoxo da Democracia pós-abrilina

Um dos segredos do sucesso da consolidação do regime democrático que brotou da Revolução de Abril de 1974 em Portugal foi, sem dúvida, a capacidade de integração da Igreja Católica e do Catolicismo como parceiros. A III República portuguesa teve a sabedoria, após o complexo período revolucionário de 1974/76, de evitar incorrer nas tentações da I República no sentido de marginalizar a Igreja e a Religião ou de tomá-las como inimigos a abater e a eliminar definitivamente do panorama social e cultural, como sonharam alguns mentores e políticos da primeira experiência republicana portuguesa. Um dos factores que explicam as sucessivas crises e fracturas sociais da I República foi certamente a dificuldade dos líderes republicanos em lidar com a questão religiosa, assumindo, na primeira fase da governação republicana, como factor de progresso o combate sem tréguas ao catolicismo, aos seus ritos com visibilidade social e às suas instituições mormente as ditas de filiação ultramontana presentes no país. Donde a extrema dificuldade dos políticos da República de 1910 em realizar a pacificação social tão basilar para a estabilização do regime. Preferiram antes, fiéis aos seus ideários anticlericais e anti-religiosos, hostilizar a maioria mental e cultural católica, augurando, com este confronto directo, operar uma transformação de mentalidade em poucas gerações no sentido de alcançar a aceleração “forçada” do processo de laicização e de instauração de uma mundividência totalmente libertas dos lia-mes teológicos que entreteciam a ordem e o horizonte de sentido da vida humana em sociedade. Mas como tudo o que é forçado e acelerado artificialmente resulta em reacções que produzem muitas vezes efeitos contrários aos desejados, quando se trata de questões de mentalidade e de cultura de um povo, o projecto republicano não só fracassou como acabou por desaguar num novo regime, a II República, que, embora mantendo a separação das duas espadas em teoria, aliou intimamente e concertou, sobremaneira, o trono e o altar na consecução de uma política e de uma ideologia da portugalidade durante mais de quatro décadas. Apreendendo com a experiência traumática da I República, os construtores da Democracia hodierna, apesar de fiéis à construção de um Estado laico numa sociedade laica em que a separação da esfera religiosa da esfera política seja o sinal mais sublime da sua modernidade, procuraram não dispensar a Igreja Católica e o seu património cultural e o seu capital de influência social. Pelo contrário, procuraram associar a Igreja como entidade capaz de cooperar na democratização da sociedade e da normal consolidação do processo democrático. De facto, ambos os lados acabaram por manter em geral uma relação/tensão de equidistância e de colaboração/reivindicação pacífica no quadro da salvaguarda dos seus interesses e ideais. Não obstante algumas ameaças de reacendimento dos velhos conflitos anticlericais e antijesuíticos terem pairado no âmbito do processo revolucionário abrilino, houve também tentações da parte de sectores eclesiásticos em ordem a uma interferência no desenrolar dos acontecimentos que marcaram a transição da ditadura para a Democracia. Felizmente, o regime moderado, que acabou por se construir no seguimento dos anos da revolução assente numa Constituição que evita hostilizar a Igreja Católica, deu origem à moderna democracia portuguesa marcada por uma significativa paz social em que o pluralismo e a preferência da inclusão em detrimento da exclusão é um dos seus sinais distintivos e de maior mérito. Tal se deve, em grande medida, ao esforço enorme dos sectores laicos e dos sectores católicos terem decidido adoptar uma postura de equidistância e de colaboração e não de conflito. É verdade que o republicanismo que se afirmou com a III República era herdeiro ideológico da I República, mas também da sua experiência, e, portanto, apresentava uma postura mais moderada e pautada por uma relação diferente com o universo religioso. Do mesmo modo, a Igreja dos anos 70 do século XX tinha uma face diferente da Igreja mais integrista e intransigente do tempo de Pio X, pois era uma Igreja que se renovava e se abria ao mundo e à valorização das realidades temporais ao sabor dos ventos doutrinários do Concílio Vaticano II. Mas obviamente que quando se erige um sistema de inclusão de parecerias com ideários por vezes tão antinómicos – o de um Estado laico e o de uma instituição religiosa com um forte sentido militante de conversão do humano e da sua totalidade envolvente – tem que haver cedências de ambas as partes, donde surgem inevitáveis ambiguidades que ainda persistem hoje em dia. O resultado é o presente convívio de uma relação binomial de amor/ódio, de divergência/aproximação entre essas duas instituições, esses dois “estados” de vocação totalizante no plano da abrangência da sua acção e influência social. O que deu origem a uma sociedade democrática que alguns denominam como sendo catolaica. Se esta nomenclatura estranha e paradoxal é o preço da referida ambiguidade, ela advém da integração e do reconhecimento mais ou menos pacífico de que a cultura e a sociedade portuguesa, enquadrada por uma democracia pluralista, precisa de integrar e contar com todos e naturalmente com a confissão e a tradição religioso-cultural maioritária. Caso contrário, teria que dispensar boa parte da nação, que se viraria contra ela. Assim sendo, como a maioria da sociedade portuguesa é católica e quem mais ordena é o Estado laico, mas um Estado que tem tentado reconhecer o direito à liberdade e à diferença, o regime democrático hodierno prefere conviver com a instituição religiosa representante da religião dominante, esperando que esta respeite e contribua para a consolidação e para a eficácia dos fins do mesmo Estado. Uma pergunta emerge inevitável da verificação deste satus quo: quem cedeu mais e quem ganhou neste convívio ambíguo? Ambos os lados ganharam em qualidade e todos perderem em quantidade. Mas as perdas e os ganhos são ainda difíceis de contabilizar com precisão. Importa acima de tudo salientar o que ambas as esferas aprenderam neste interessante processo. A Igreja aprendeu a conviver com a Democracia e, de algum modo, a evoluir paulatinamente no sentido pensar-se democraticamente, assumindo um rosto mais progressivo e uma consciência crítica livre de compromissos políticos e ideológicos. O Estado aprendeu a tolerar, a integrar e a olhar a Igreja como uma força viva capaz de laborar com ele na edificação de uma sociedade mais humana e ouvindo-a por vezes como uma consciência crítica importante. Daí que o paradoxo convivial de uma sociedade catolaica seja necessariamente ambíguo, mas de uma ambiguidade necessária em nome de uma harmonia possível em favor da pacificação social fundamental para a consolidação de um regime democrático. José Eduardo Franco

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