A religião e a lei

Intervenção de D. José Policarpo no Colóquio do Instituto Jurídico da Comunicação 1. Num Colóquio sobre Direito, Comunicação Social e Religião, escolhi como tema as relações entre a Religião e a Lei. Na moderna concepção do Estado, este é concebido como serviço estruturante de toda a sociedade, procurando a sua harmonia e desenvolvimento, respeitando as diferenças e os direitos fundamentais de pessoas e grupos, interagindo com a sociedade na prossecução do bem-comum. O Estado moderno é democrático, porque a sua autoridade emana da sociedade e os objectivos que prossegue são queridos e definidos pelo todo da comunidade. Nele não cabem projectos de poder pessoal, porque as pessoas e os grupos devem procurar o bem desejado pela comunidade. Por isso, o Estado respeita as diferenças e a pluralidade de expressões, condicionante principal da busca da harmonia e da paz. Uma das componentes da sociedade é a dimensão religiosa, incontornável para quem governa, servindo a sociedade. É perante esta dimensão religiosa que o Estado moderno se declara “laico”, isto é, não identificado com nenhuma religião, o que não o dispensa de enquadrar o fenómeno religioso na busca do bem-comum da sociedade. Esta missão do Estado em relação à sociedade, ele cumpre-a através de leis justas e aplicadas à realidade e pelo esforço de as fazer cumprir, o que o constitui como “Estado de Direito”. Neste quadro, não só os cidadãos que professam uma fé religiosa estão sujeitos, como todos os outros, às leis comuns – a religião não isenta da Lei – mas é normal que regule, pela Lei, as expressões religiosas na sociedade. A actividade legislativa aplicada às religiões não tem estado isenta de problemas. Antes de mais, porque as religiões têm as suas leis próprias, as leis religiosas que, ainda hoje, em muitas sociedades, tendem a prevalecer sobre as leis civis. Quando estas diversas leis entram em conflito, este atinge a própria sociedade. Depois, porque as leis justas de um Estado de Direito devem respeitar valores culturais, que incluem a dimensão ética, caldeados ao longo de gerações e que definem a fisionomia cultural de uma Nação: as religiões são componentes, mais ou menos decisivas, na definição dessa matriz cultural. Quando as leis se afastam desse património cultural ou mesmo o agridem, a componente religiosa da cultura pode sentir-se agredida. A busca da harmonia supõe uma análise cultural contínua, mais necessária em tempos de acelerada mutação cultural, para chegar ao património cultural comum, onde a compreensão da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos fundamentais é elemento decisivo para inspirar e avaliar as leis. Hoje, na Europa a que pertencemos, a influência das religiões e, de modo particular, do judeo-cristianismo na matriz cultural comum continua em discussão. A indefinição cultural dá origem a leis que, todos o sabemos, que agridem a compreensão cristã do homem. 2. A laicidade do Estado foi uma forma a que se chegou depois de uma longa caminhada, e define um estatuto de neutralidade do Estado perante as religiões, que facilite a busca da referida harmonia. Corrige o estatuto de Estado confessional, que via na unicidade religiosa um elemento decisivo da unidade da Nação, mas que frequentemente não respeitava a liberdade de consciência. E quando esta não é respeitada, todas as expressões da liberdade são postas em questão: a liberdade de pensamento e de expressão, a liberdade cultural e política. É por isso que o respeito pela liberdade de consciência, de que a liberdade religiosa é expressão principal, e pela liberdade de pensamento e de expressão são pilares do Estado de Direito. A experiência de dois séculos mostra que não é fácil a neutralidade do Estado em matéria religiosa, até devido à influência real que as religiões, as pessoas crentes e as instituições religiosas exercem na sociedade. E essa influência não é apenas doutrinal e ideológica, é mais da ordem do existencial histórico. Certamente por isso, essa laicidade não se tem afirmado como simples neutralidade. Pela intenção de sustentá-la num pensamento laicista, tende a ser a matriz decisiva da cultura, procurando reduzir a influência das religiões na sociedade. Corre-se, assim, o risco de o Estado laico voltar a ser confessional, o que acontece sempre que uma filosofia ou uma ideologia procuram impor-se a toda a sociedade. A cultura própria de um povo, síntese sapiencial construída ao longo do tempo, com o contributo das religiões, do pensamento, da literatura e da própria história, é a matriz que legitimamente deve inspirar o nosso viver comum e, de modo especial, as leis que nos regem. 3. A presente equação entre laicidade do Estado e as religiões foi fruto de um longo processo dialéctico, o que explica que a sua expressão concreta na sociedade não seja, ainda hoje, isenta de tensões e conflitos. A racionalidade, fundamento da modernidade, sobretudo através do espírito científico, entrou em conflito com a religião, pretendendo substituí-la como fonte exclusiva da verdade e do sentido ético da existência comum. O chamado conflito entre ciência e fé, um conflito sem sentido devido ao salto epistemológico que supõe, paira ainda hoje, sobre a nossa cultura: conflito a existir, seria entre a ciência e a teologia. A racionalidade reivindicou as liberdades postas em questão pelo Estado absoluto e, quase sempre, confessional: a liberdade de consciência e de religião, a liberdade de pensamento e de expressão, a pluralidade ideológica e política. É um facto que a Igreja, nesta grande mudança trazida pela modernidade, conviveu mal com estas expressões da liberdade, porque a sua afirmação se fez, quase sempre, em chave anti-católica, fruto da própria dialéctica da história e porque viu aí ameaças à fidelidade à verdade recebida dos Apóstolos e que constitui a sua Tradição. As verdades dogmáticas, que a Igreja considera fundantes e que não têm a sua origem na razão humana mas na revelação de Deus, começaram a ser postas em questão, antes de mais, pelos cismas internos à própria Igreja; mas a ameaça que a Igreja pressentiu, na época moderna, para a unidade da fé, vinda da racionalidade da verdade e da liberdade de pensamento, afiguram-se ainda mais graves. As condenações do “modernismo”, até Pio X no início do século XX, são disso a expressão. A laicidade continuou assim a fundamentar-se num pensamento anti-católico, mesmo quando a Teologia e o Magistério já haviam integrado os valores da modernidade. 4. A laicidade significou, antes de mais, a dessacralização do poder. Desde tempos ancestrais, o Estado identificava-se com o Príncipe e o poder deste era uma emanação do poder divino, por isso mesmo considerado absoluto e incontestável. A democracia, baseada no princípio de que todos os membros da sociedade participam na coisa pública e são a fonte do poder, alterou o conceito de poder político (o que rege a polis), mas também a natureza do Estado. Curiosamente, encontramos no Evangelho a primeira expressão de dessacralização do poder, na conhecida frase de Cristo: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Esta distinção entre as realidades profanas, próprias da vida normal dos homens, no tempo presente, e as realidades religiosas, que situam todas as coisas na sua relação com Deus e prolonga o tempo presente na eternidade, será expressa no Concílio Vaticano II com a afirmação da autonomia das realidades terrestres. Esta distinção é fundamental para que as relações do Estado laico com a Igreja e com as outras religiões seja harmónica, sem conflitos que prejudiquem a harmonia da sociedade. Isto não significa, por parte da Igreja, afirmar que o tempo presente não tem nada a ver com a fé. Significa, isso sim, que essa dimensão transcendente da vida presente não é regida pelo poder político e não dá à Igreja a legitimidade para pretender regular a realidade profana. Esta nova consciência da natureza das coisas é o verdadeiro fundamento da distinção dos poderes e, consequentemente, das Igrejas e do Estado. Mas define também os limites do direito do Estado reger as realidades religiosas. 5. Esta situação não impede a convergência quanto aos grandes valores morais defendidos pela Igreja e pelo Estado: a afirmação e a promoção da dignidade da pessoa humana, o respeito pela vida humana, a liberdade de pensar e de se exprimir, a liberdade de consciência que inclui a liberdade de religião e de culto, a promoção da justiça e da paz. Na defesa destes direitos, a Igreja sublinha sempre a responsabilidade comunitária do seu exercício, lutando contra o individualismo, segundo o princípio de que a liberdade de cada um se relativiza quando colide com a liberdade dos outros. Aliás, neste contexto, foi-se aprofundando a consciência de que os principais valores cristãos são radicalmente valores humanos, a que a fé cristã acentua a beleza e a radicalidade e, enquanto tais, são comuns à Igreja e ao Estado nos modos próprios de os implementar. As leis não precisam de ser religiosas para regerem e protegerem valores humanos, que também são valores religiosos. Quando o Estado não respeita um desses valores, que a Igreja defende como um valor humano fundamental, o conflito pode surgir. Mas não é um conflito de religião, mas sim de cultura e de civilização. Para além desta área comum de humanidade, o âmbito legítimo para o Estado legislar sobre as religiões reduz-se à liberdade religiosa e de culto, como expressão da liberdade de consciência. A ausência do respeito pela liberdade religiosa, situação actual de muitos países, é um grave atropelo à dignidade humana e dificulta, na realidade, qualquer diálogo construtivo entre religiões e civilizações. No caso português, as concretizações desta liberdade religiosa exprimem-se, no caso da Igreja Católica, numa Concordata celebrada entre a Santa Sé e o Estado Português. Forma de grande tradição na nossa história, tem em conta as seculares relações entre Portugal e a Santa Sé, o facto de a maioria da população portuguesa se declarar católica, e o volume de serviços prestados pela Igreja Católica à sociedade nacional. Além de um outro nível legal, como tratado internacional que é, precisando apenas de ratificação pela Assembleia Legistativa e dá maior estabilidade à matéria legislada, o facto de ser celebrada com a Santa Sé sublinha uma característica importante da fé católica: a sua universalidade. A Concordata não pode pôr em causa, em favor da Igreja, os direitos fundamentais das outras confissões religiosas. É antes a regulação do princípio da cooperação entre a Igreja e o Estado em matérias comummente acordadas, consideradas importantes para o bem-comum. A nossa actual Lei de Liberdade Religiosa, à qual demos o nosso acordo, é clara a este respeito: aplicam-se à Igreja Católica os princípios fundamentais da liberdade religiosa e regem-se pela Concordata as aplicações práticas da cooperação. 6. A harmonia da sociedade contemporânea está ameaçada por múltiplos fenómenos: a violência, a pobreza, a destruição da natureza, o egoísmo de pessoas e grupos, a anomia ética fruto de individualismos exacerbados. O tempo é de cooperação: é preciso juntar esforços: Estado, sociedade civil, religiões, para salvarmos a humanidade. Toda a energia gasta em conflitos entre estes grupos, faz falta à causa comum da paz e da civilização. É nossa tarefa mobilizar os cristãos para essa causa comum da humanidade. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra, 16 de Novembro de 2007 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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Agência ECCLESIA

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