A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja

Lienamenta da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos PREFÁCIO “A palavra de Deus é viva, é realizadora, mais afiada do que toda a espada de dois gumes: ela penetra até onde se dividem a vida do corpo e a do espírito, as articulações e as medulas e é capaz de distinguir as intenções e os pensamentos do coração” (Heb 4,12). Toda a história da salvação é uma prova de como a Palavra de Deus é viva. Quem toma a iniciativa de se comunicar é Deus, fonte da vida (cf. Lc 20,38). A sua Palavra dirige-se ao homem, obra das suas mãos (cf. Job 10,3), criado precisamente para ser capaz de Lhe responder, entrando em comunicação com o seu Criador. Portanto a Palavra de Deus acompanha o homem desde a criação até ao fim da sua peregrinação sobre a terra. Manifestou-se de diversos modos, atingindo o ápice no mistério da Encarnação, quando, por obra do Espírito Santo, o Verbo, Deus junto de Deus, se fez carne (cf. Jo 1,1.14). Jesus Cristo, morto e ressuscitado, é “o Vivente” (Ap 1,18), Aquele que tem palavras de vida eterna (cf. Jo 6,68). A Palavra de Deus é também afiada. Ilumina a vida do homem, apontando-lhe o caminho a seguir, sobretudo através do Decálogo (cf. Ex 20,1-21), que Jesus sintetizou no mandamento do amor para com Deus e para com o próximo (cf. Mt 22,37-40). As Bem-aventuranças (cf. Lc 6,20-26) são, por sua vez, o ideal da vida cristã, vivida na escuta da Palavra de Deus que perscruta os sentimentos dos corações, inclinando-os para o bem e purificando-os do que é pecaminoso. Comunicando-Se ao homem pecador, que porém é chamado à santidade, Deus exorta-o a mudar o mau comportamento: “Convertei-vos dos vossos maus caminhos e guardai os meus mandamentos e preceitos, no cumprimento de toda a Lei que prescrevi aos vossos pais e vos comuniquei por meio dos meus servos, os profetas” (2Reis 17,13). Também o Senhor Jesus dirige, no Evangelho, o convite: “Arrependei-vos, pois está perto o Reino dos Céus” (Mt 3,2). Pela graça do Espírito Santo, a Palavra de Deus toca o coração do pecador arrependido e leva-o à comunhão com Deus na sua Igreja. A conversão de um pecador é motivo de grande alegria no céu (cf. Lc 15,7). No nome do Senhor ressuscitado, a Igreja continua a missão de pregar “a todas as nações o arrependimento e o perdão dos pecados” (Lc 24,47). Ela mesma, dócil à Palavra de Deus, põe-se no caminho de humildade e de conversão, para ser cada vez mais fiel a Jesus Cristo, seu Esposo e Senhor, e para anunciar, com mais força e autenticidade, a sua Boa Nova. A Palavra de Deus é também eficaz. Comprovam-no as histórias pessoais dos patriarcas e dos profetas, bem como do povo eleito da Antiga e da Nova Aliança. De forma de todo excepcional, testemunha-o Jesus Cristo, Palavra de Deus que, encarnando, “veio habitar no meio de nós” (Jo 1,14), e que continua a anunciar o reino de Deus e a curar os enfermos (cf. Lc 9,2) através da sua Igreja. Esta realiza tal obra de salvação por meio da Palavra e dos Sacramentos, de modo especial a Eucaristia, fonte e cume da vida e da missão da Igreja, onde, pela graça do Espírito Santo, as palavras da consagração se tornam eficazes, transformando o pão no Corpo e o vinho no Sangue do Senhor Jesus (cf. Mt 26,26-28; Mc 14,22-23; Lc 22,19-20). A Palavra de Deus é, portanto, fonte da comunhão entre o homem e Deus e entre os homens que o Senhor ama. A estreita relação entre Eucaristia e Palavra de Deus também contribuiu para a escolha do tema da próxima Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, reforçando o desejo, aliás antigo, de levar a reflexão sinodal a concentrar-se sobre a Palavra de Deus. Daí que, após o Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia fonte e cume da vida e da missão da Igreja, realizado de 2 a 23 de Outubro de 2005, parecesse lógico concentrar-se sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, aprofundando ulteriormente o significado da única mesa do Pão e da Palavra. O tema reflecte o desejo prioritário das Igrejas particulares, que os Bispos, seus Pastores, manifestaram. Sim, porque a escolha do tema da próxima reunião sinodal foi feita de forma colegial. De acordo com uma praxe já consagrada, o Santo Padre Bento XVI tinha encarregado a Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos de consultar para o efeito todo o episcopado da Igreja Católica. Das respostas enviadas pelas Igrejas Orientais Católicas sui iuris, pelas Conferências Episcopais, pelos Dicastérios da Cúria Romana e pela União dos Superiores Gerais resultou ser a Palavra de Deus o tema preferido com diversas acentuações e notável variedade de aspectos. O abundante material foi analisado pelo XI Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos que, de certa forma, representa a inteira assembleia. Aliás, 12 dos seus membros foram escolhidos pelos colegas durante a XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Em conformidade com o previsto no Ordo Synodi Episcoporum, outros 3 membros do Conselho foram nomeados por Sua Santidade o Papa Bento XVI. O resultado de um fecundo debate feito no Conselho Ordinário foi sintetizado numa terna de temas que o Exc.mo Mons. Secretário Geral submeteu à decisão do Sumo Pontífice. O tema escolhido pelo Santo Padre, Presidente do Sínodo dos Bispos, foi tornado público a 6 de Outubro de 2006. A seguir, o Conselho Ordinário da Secretaria Geral empenhou-se na preparação dos Lineamenta, documento que tem por finalidade apresentar brevemente o estado da questão sobre o importante tema da Palavra de Deus, indicar aspectos positivos na vida e na missão da Igreja, sem omitir certos aspectos problemáticos ou que, pelo menos, carecem de um aprofundamento para bem da Igreja e da sua vida no mundo. Nesse sentido, os Lineamenta reportaram-se abundantemente à Constituição Dogmática sobre a divina revelação, a Dei Verbum, e de modo especial seguem a linha escolhida pelos Padres conciliares, a de se colocar em atitude de religiosa escuta da Palavra de Deus, para depois poder proclamá-la desassombradamente (cf. DV 1). A releitura em chave pastoral da Dei Verbum é acompanhada das sucessivas intervenções do Magistério da Igreja, a quem cabe interpretar de forma autêntica o sagrado depósito da fé contido na Tradição e nas Escrituras. Para facilitar a reflexão e o debate do tema a nível de Igreja universal, o Documento é acompanhado de um pormenorizado Questionário relativo aos assuntos abordados em cada capítulo. Todos os organismos colegiais, acima mencionados, são convidados a responder ao dito Questionário até ao fim do mês de Novembro do presente ano de 2007. O Conselho Ordinário, com a ajuda de alguns válidos especialistas, estudará a referida documentação e ordenará a temática num segundo documento, tradicionalmente chamado Instrumentum laboris, que servirá de ordem do dia da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que terá lugar, se Deus quiser, de 5 a 26 de Outubro de 2008. Desde o princípio, a Igreja vive da Palavra de Deus. Em Cristo, Verbo encarnado sob a acção do Espírito Santo, a Igreja é “como que sacramento ou sinal e também instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo o género humano” (LG 1). A Palavra de Deus é também o motor inesgotável da missão eclesial, tanto para os que estão perto como para os que estão longe. Obedecendo ao mandato do Senhor Jesus e entregando-se à força do Espírito Santo, a Igreja está, portanto, em permanente estado de missão (cf. Mt 28,19). Seguindo o exemplo da Bem-aventurada Virgem Maria, humilde Serva do Senhor, o Sínodo pretende favorecer uma total redescoberta da maravilha da Palavra de Deus, que é viva, afiada e eficaz, no próprio coração da Igreja, na sua liturgia e na oração, na evangelização e na catequese, na exegese e na teologia, na vida pessoal e comunitária, bem como nas culturas dos homens, purificadas e enriquecidas pelo Evangelho. Deixando-se despertar pela Palavra de Deus, os cristãos serão capazes de responder a quantos lhes pedirem a razão da sua esperança (cf. 1Pe 3,15), amando o próximo não “por palavras e com a língua, mas por obras e em verdade” (1Jo 3,18). Realizando as boas obras, brilhará diante dos homens a sua luz, reflexo da glória de Deus, e todos louvarão o nosso Pai que está nos céus (cf. Mt 5,16). A Palavra de Deus, portanto, irradia sobre toda a vida da Igreja, qualificando também a sua presença na sociedade como fermento de um mundo mais justo e pacífico, livre de toda a espécie de violência e aberto à construção de uma civilização do amor. “A Palavra do Senhor permanece eternamente. Esta é a Palavra que vos foi anunciada” (1Pe 1,25. A reflexão sobre o tema sinodal converte-se em humilde oração para que a redescoberta da Palavra de Deus ilumine cada vez melhor o caminho do homem na Igreja e na sociedade durante o percurso, não poucas vezes tortuoso, da história, enquanto com confiança se esperam “novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pe 3,13). Nikola Eterovic Arcebispo titular de Sisak Secretário Geral Vaticano, 25 de Março de 2007 ——————————————————————————– INTRODUÇÃO Porquê um Sínodo sobre a Palavra de Deus? “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos, o que tocámos com as nossas mãos, acerca do Verbo da Vida, é o que nós vos anunciamos. Porque a Vida manifestou-se e nós vimos e damos testemunho dela. Nós vos anunciamos a Vida eterna, que estava junto do Pai e nos foi manifestada. Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também em união connosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho, Jesus Cristo. E vos escrevemos tudo isto, para que a vossa alegria seja completa” (1Jo 1,1-4). 1. “No princípio era a Palavra” (Jo 1,1). “A Palavra do nosso Deus permanece eternamente” (Is 40,8). A Palavra de Deus abre a história com a criação do mundo e do homem: “Deus disse” (Gen 1,3.6ss.); proclama que o seu centro está na Encarnação do Filho, Jesus Cristo: “E o Verbo Se fez carne” (Jo 1,14), e fecha-a com a promessa certa do encontro com Ele numa vida sem fim: “Sim, Eu virei em breve” (Ap 22,20). É a certeza suprema que o próprio Deus, no seu infinito amor, entende dar ao homem de todos os tempos, fazendo do seu povo a sua testemunha. É esse grande mistério da Palavra como supremo dom de Deus que o Sínodo entende adorar, agradecer, meditar, anunciar à Igreja e a todos os povos. 2. O homem contemporâneo mostra de tantas maneiras que tem uma grande necessidade de ouvir Deus e falar com Ele. Nota-se, hoje, entre os cristãos uma abertura apaixonada para a Palavra de Deus como fonte de vida e graça de encontro do homem com o Senhor. Não surpreende, portanto, que a essa abertura do homem responda Deus invisível, que, “na abundância do seu amor, fala aos homens como a amigos e conversa com eles, para os convidar e os receber em comunhão com Ele” [1] Esta generosa revelação de Deus é um contínuo acontecimento de graça. Em tudo isto, vemos a acção do Espírito Santo, que através da Palavra quer renovar a vida e a missão da Igreja, chamando-a a uma constante conversão e enviando-a a anunciar o Evangelho a todos os homens, “para que todos tenham a vida e a tenham com abundância” (Jo 10,10). 3. A Palavra de Deus tem o seu centro na pessoa de Cristo Senhor. A Igreja fez, ao longo dos séculos, uma constante experiência e reflexão do mistério da Palavra. “Que pensais ser a Sagrada Escritura senão a Palavra de Deus? É verdade que são muitas as palavras escritas pela pena dos profetas, mas a totalidade da Escritura é um único Verbo de Deus. Este único Verbo, os fiéis conceberam-no como semente de Deus, seu legítimo esposo, e, gerando-o com boca fecunda, converteram-no em sinais, ou seja, em letras, para fazê-la chegar até nós” . [2] O Concílio Vaticano II, com a Constituição dogmática sobre a Divina Revelação Dei Verbum, compendia o Magistério solene da Igreja sobre a Palavra de Deus, expondo a sua doutrina e mostrando como praticá-la. A dita Constituição é, com efeito, o fruto de um longo caminho de amadurecimento e de aprofundamento, traçado pelas três Encíclicas Providentissimus Deus de Leão XIII, Spiritus Paraclitus de Bento XV e Divino Afflante Spiritu de Pio XII;[3] um caminho que foi incrementado por uma exegese e teologia renovadas, enriquecido pela experiência espiritual dos fiéis e oportunamente reproposto no Sínodo dos Bispos de 1985 [4] e no Catecismo da Igreja Católica. Depois do Concílio, o Magistério da Igreja universal e local promoveu insistentemente o encontro com a Palavra, na convicção de que esta “trará à Igreja uma nova primavera espiritual” .[5] A Assembleia Sinodal coloca-se, portanto, dentro do grande respiro da Palavra que Deus dirige ao seu povo, em estreita ligação com os precedentes Sínodos dos Bispos (1965-2006), uma vez que se refaz ao próprio fundamento da fé e se propõe actualizar no nosso tempo os grandes testemunhos de encontro com a Palavra que encontramos no mundo bíblico (cf. Jos 24; Ne 8; Act 2) e ao longo da história da Igreja. 4. Mais especificamente, o presente Sínodo, na continuação do precedente, quer realçar a intrínseca ligação da Eucaristia com a Palavra de Deus, uma vez que a Igreja tem de se alimentar com o único “Pão da vida da mesa quer da Palavra de Deus quer do Corpo de Cristo” .[6] É essa a razão profunda e, ao mesmo tempo, o fim primário do Sínodo: encontrar em plenitude a Palavra de Deus no Senhor Jesus, presente na Escritura e na Eucaristia. Diz São Jerónimo: “A carne do Senhor é verdadeira comida e o seu sangue verdadeira bebida; é esse o verdadeiro bem que nos é reservado na vida presente: alimentar-nos da sua carne e beber o seu sangue, não só na Eucaristia, mas também na leitura da Sagrada Escritura. É, de facto, verdadeira comida e verdadeira bebida a Palavra de Deus que se obtém do conhecimento das Escrituras”. [7] Mas antes de prosseguir, é para perguntar, à distância de mais de 40 anos do Vaticano II, que frutos trouxe às nossas comunidades o documento conciliar Dei Verbum; qual a sua real aceitação. Não há dúvida que, em relação à Palavra de Deus, se obtiveram muitos resultados positivos no povo de Deus, tais como a renovação bíblica a nível litúrgico, teológico e catequético; a difusão e prática do Livro Sagrado através do apostolado bíblico e o impulso de comunidades e movimentos eclesiais; a crescente disponibilidade de instrumentos e subsídios da comunicação hodierna. Outros aspectos porém mantêm-se ainda abertos e problemáticos. São graves os fenómenos de ignorância e incerteza acerca da própria doutrina da Revelação e da Palavra de Deus; ainda é grande a distância que muitos cristãos têm em relação à Bíblia, e é constante o risco de um uso não correcto da mesma; sem a verdade da Palavra, torna-se insidioso o relativismo do pensamento e da vida. Tornou-se urgente a necessidade de conhecer integralmente a fé da Igreja sobre a Palavra de Deus, de alargar com métodos adequados o encontro com a Sagrada Escritura por parte de todos os cristãos e, ao mesmo tempo, acolher os novos caminhos que o Espírito hoje sugere, para que a Palavra de Deus, nas suas várias manifestações, seja conhecida, ouvida, amada, aprofundada e vivida na Igreja, e assim se torne Palavra de verdade e de amor para todos os homens. 5. A finalidade deste Sínodo é eminentemente pastoral: aprofundando as razões doutrinais e deixando-se iluminar por elas, procura-se estender e reforçar a prática de encontro com a Palavra como fonte de vida nos diversos âmbitos da experiência, propondo, para tal, aos cristãos e a todas as pessoas de boa vontade, caminhos justos e fáceis para poder escutar Deus e falar com Ele. Concretamente, o Sínodo propõe-se, entre os seus objectivos, contribuir para esclarecer certos aspectos fundamentais da verdade sobre a Revelação, tais como a Palavra de Deus, a Tradição, a Bíblia, o Magistério, que justificam e asseguram um válido e eficaz caminho de fé; acender a estima e o amor profundo pela Sagrada Escritura, fazendo com que “os fiéis tenham amplo acesso” a ela;[8] renovar a escuta da Palavra de Deus, no momento litúrgico e catequético, nomeadamente com o exercício da Lectio Divina, devidamente adaptada às várias circunstâncias; oferecer ao mundo dos pobres uma Palavra de consolação e de esperança. O presente Sínodo quer, portanto, dar ao povo de Deus uma Palavra que seja pão. Daí que se proponha promover um correcto exercício hermenêutico da Escritura, dando uma boa orientação ao necessário processo de evangelização e de inculturação; entende encorajar o diálogo ecuménico, estreitamente vinculado à escuta da Palavra de Deus; quer favorecer o confronto e o diálogo judeu-cristão [9] e, de uma maneira mais vasta, o diálogo inter-religioso e inter-cultural. O Sínodo entende realizar estes e outros objectivos, seguindo três passagens: – a Revelação, a Palavra de Deus, a Igreja (cap. I), – a Palavra de Deus na vida da Igreja (cap. II), – a Palavra de Deus na missão da Igreja (cap. III). Será assim possível associar os momentos fundante e operativo da Palavra de Deus na Igreja. Os presentes Lineamenta não têm, portanto, a intenção de exprimir todas as razões e aplicações de encontro com a Palavra de Deus, mas, à luz do Vaticano II, apontar para as essenciais, sublinhando em simultâneo o dado doutrinal e a experiência em acto e convidando a dar ulteriores e específicos contributos. PERGUNTAS Introdução 1. Que ‘sinais dos tempos’ mostram, no seu país, a urgência deste Sínodo sobre a Palavra de Deus? Que se espera dele? 2. Que relação se pode colher entre o precedente Sínodo sobre a Eucaristia e o actual sobre a Palavra de Deus? 3. Existem tradições de experiência bíblica na sua Igreja particular? Quais? Existem nela grupos bíblicos? Qual a sua tipologia? CAPÍTULO I Revelação, Palavra de Deus, Igreja “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo” (Heb 1,1-2). Deus tem a iniciativa. A Revelação divina manifesta-se como Palavra de Deus 6. “Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-Se a Si mesmo e tornar conhecido o mistério da sua vontade” .[10] Perante o risco de manietar o mistério de Deus em esquemas meramente humanos e numa relação fria e arbitrária, o Concílio Vaticano II, na Dei Verbum, faz uma síntese da fé plurissecular da Igreja, indicando as linhas mestras de uma correcta reflexão. Deus manifesta-Se de forma tão gratuita quanto directa para estabelecer uma relação inter-pessoal de verdade e de amor com o homem e com o mundo que criou. Revela-Se a Si mesmo na realidade visível do cosmo e da história “por meio de palavras e acções intimamente conexas” ,[11] mostrando assim uma “economia da Revelação” , ou seja, um projecto que tem em vista a salvação do homem e, com ele, a de toda a criação. É-nos assim revelada, ao mesmo tempo, a verdade sobre Deus uno e trino e a verdade sobre o homem que Deus ama e quer fazer feliz, verdade que atinge o máximo esplendor em Jesus Cristo, que “é simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a Revelação” .[12] Esta relação de comunicação gratuita, que supõe uma profunda comunhão, análoga à da comunicação humana, é qualificada pelo próprio Deus como sua Palavra, ‘Palavra de Deus’. Esta tem, portanto, de ser sempre radicalmente compreendida como um acto pessoal de Deus uno e trino que ama e que, por isso, fala, e fala ao homem, para que reconheça o seu amor e lhe corresponda.[13] Prova-o uma leitura atenta da Bíblia desde o Génesis ao Apocalipse. Quando se lê e, sobretudo, se proclama a Palavra de Deus, como acontece na Eucaristia, “sacramento por excelência” [14], e nos outros sacramentos, o próprio Senhor nos convida a ‘realizar’ um evento inter-pessoal, singular e profundo, de comunhão entre Ele e nós, e entre nós. A Palavra de Deus é, de facto, eficaz e realiza o que afirma (cf. Heb 4,12). A pessoa humana tem necessidade de Revelação 7. O homem tem a capacidade de conhecer Deus com os meios que Ele mesmo lhe deu (cf. Rom 1, 20), nomeadamente o mundo da criação (liber naturae). Todavia, nas condições históricas em que se encontra, esse conhecimento tornou-se, por causa do pecado, obscuro e incerto e negado por não poucos. Mas Deus não abandona a sua criatura, infundindo nela um íntimo desejo de luz, de salvação e de paz, embora nem sempre consciente. A manter vivo um tal anseio contribuiu o anúncio do Evangelho a todo o mundo, produzindo valores religiosos e culturais. Tais valores ajudam hoje muitos a procurar o Deus de Jesus Cristo. Na própria vida do povo de Deus nota-se uma profunda aspiração – mais do que necessidade – a saborear uma fé pura e fascinante, que afaste o véu da ignorância, da confusão e da desconfiança em relação a Deus e ao homem, e leve assim a discernir e a reforçar com a verdade de Deus as muitas conquistas do progresso. Pode-se, portanto, falar de uma necessidade profunda e difusa que, à maneira de uma invocação, abre existencialmente à verdade da Revelação, feita pelo próprio Deus em favor da humanidade, ou seja, à escuta da sua Palavra. Interessar-se por ela constitui o fundamento dos objectivos do Sínodo, pelas repercussões de âmbito pastoral, enquanto autentifica e encoraja o processo da nova evangelização e, ao mesmo tempo, permite colher preciosas indicações para o diálogo ecuménico, inter-religioso e cultural. A Palavra de Deus entrelaça-se com a história do homem e guia o seu caminho 8. Nalgumas culturas, o homem contemporâneo sente-se artífice e, portanto, senhor da sua história, encontrando dificuldade em aceitar que alguém se insira no seu mundo sem dialogar com ele e sem lhe dar as razões da sua presença. Tal atitude pode verificar-se, também em relação a Deus, de uma maneira muitas vezes errada, mas sempre duvidosa. Deus, porém, não podendo calar a verdade da sua Palavra, assegura ao homem que se trata sempre de uma Palavra de amigo, para o seu bem e no respeito da sua liberdade, pedindo-lhe, ao mesmo tempo, uma escuta leal que o leve a meditar. De facto, a Palavra de Deus “tem de aparecer a todo o homem como abertura para os seus próprios problemas, como resposta às suas perguntas, um alargamento aos seus valores e simultaneamente uma satisfação das próprias aspirações” .[15] Ainda à luz da Dei Verbum, é-nos dado saber que a sua Palavra, enquanto pronunciada por Deus, se precede toda a iniciativa e palavra humana, é para abrir ao homem impensáveis horizontes de verdade e de sentido, como atestam Gen 1; Jo 1,1ss; Heb 1,1; Rom 1,19-20; Gál 4,4; Col 1,15-17. Diz São Gregório Magno: “Quando a Escritura se abaixa para usar as nossas pobres palavras, é para que das coisas que nos parecem perto nos faça subir aos poucos, como que por degraus, até à sua sublimidade”.[16] Desde as origens, Deus quis “abrir o caminho da salvação sobrenatural” .[17] À luz da Escritura, podemos compreender como a sua poderosa Palavra iniciou um diálogo vivo, por vezes dramático, mas por fim vitorioso, com a humanidade, já desde o seu início e, mais tarde, na história do seu povo Israel, chegando à Revelação suprema na história de Jesus Cristo, a sua Palavra eterna feita carne (cf. Jo 1,14). Canta Santo Efrém: “Contemplava eu então o Verbo Criador e comparava-o ao Rochedo que peregrinava com o povo no meio do deserto. Sem recolher nem acumular águas, esse derramava ele sobre o povo torrentes maravilhosas. Não havia nele nenhuma água, mas dele brotavam oceanos; assim, do nada, o Verbo criou as suas obras. Feliz de quem merecer herdar o teu Paraíso! Moisés, no seu Livro, descreve a criação de toda a Natureza, para que a Natureza e o Livro dêem testemunho do seu Criador; a Natureza mediante o uso, o Livro mediante a leitura. São estes os testemunhos que vêm de todo o lado. Encontram-se em todos os tempos, estão presentes em toda a hora, mostrando ao infiel como é ingrato com o Criador”.[18] Relevante é a incidência pastoral desta visão da Palavra de Deus. Esta entrelaça a sua história com a história humana, faz-se história humana, pelo que a nossa história de homens não é, portanto, composta exclusivamente de pensamentos, palavras e iniciativas humanas. A Palavra de Deus deixa traços vivos na natureza e na cultura, ilumina as ciências do homem para que assumam o seu justo valor, mas por estas ela também é ajudada a pôr em evidência a sua identidade e, ao mesmo tempo, a irradiar o original humanismo que lhe pertence. É sobretudo uma Palavra que escolheu um povo para com ele partilhar o caminho de liberdade e salvação, mostrando a seriedade tenaz e paciente de Deus, de ser um “Emanuel” (Is 7,14), Deus-connosco (Is 8,10; cf. Rom 8,31; Ap 21,3). Daí se explica como a Palavra de Deus, graças ao testemunho da Bíblia, tenha encontrado eco nos pensamentos e expressões do homem através dos séculos, por vezes de forma distorcida e sofredora, como um grito de ajuda, no meio das vicissitudes obscuras da história, produzindo extraordinários efeitos que se manifestam de modo fascinante nos santos. Vivendo os carismas particulares como dom do Espírito Santo, estes mostraram as potencialidades enormes e originais da Palavra de Deus levada a sério. Hoje é de particular relevância ajudar a compreender a justa relação entre a Revelação pública e constitutiva do Credo cristão e as revelações privadas, discernindo a correspondência destas com a fé genuína. Jesus Cristo é a Palavra de Deus feita carne, a plenitude da Revelação 9. “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho” (Heb 1,1s). Os cristãos em geral se apercebem da centralidade da pessoa de Jesus Cristo na Revelação de Deus, mas nem sempre sabem colher as razões dessa importância e compreender em que sentido Jesus é o coração da Palavra de Deus; daí que, também na leitura da Bíblia, não lhes seja fácil fazer dela uma leitura cristã. No entanto e sempre à luz da Dei Verbum, recorde-se que Deus quis uma iniciativa de todo imprevisível, mas que se realizou: “Mandou o seu Filho, ou seja, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para morar no meio deles e explicar-lhes os segredos de Deus (cf. Jo 1,1-18). Jesus Cristo, portanto, Verbo feito carne, mandado como homem aos homens, ‘diz palavras de Deus’ (Jo 3,34) e realiza a obra de salvação que Lhe é confiada pelo Pai (cf. Jo 5,36; 17,4)”.[19] Deste modo, Jesus, na sua vida terrena e agora na celeste, assume e realiza todo o fim, o sentido, a história e o projecto que a Palavra de Deus contém, porque, como diz Santo Ireneu: “Cristo trouxe-nos a novidade inteira, ao trazer-nos a Si mesmo”.[20] É pastoralmente importante, à luz de Jesus Cristo, saber colher, por analogia, a valência múltipla que tem a Palavra de Deus na fé da Igreja, segundo o testemunho da própria Bíblia. Manifesta-se, de facto, como Palavra eterna em Deus, irradia na criação, assume perfil histórico nos profetas, manifesta-se na pessoa de Jesus, ecoa na voz dos apóstolos, e hoje é proclamada na Igreja. Forma um conjunto, cuja chave de interpretação, pela inspiração do Espírito Santo, é Cristo-Palavra. “A Palavra de Deus, que no princípio estava junto de Deus, não é, na sua plenitude, uma multiplicidade de palavras; não são muitas palavras, mas uma só Palavra que abarca um grande número de ideias, de que cada ideia é uma parte da Palavra na sua totalidade (…). E se Cristo apela para as ‘Escrituras’, como as que d’Ele dão testemunho, considera os livros da Escritura um único rolo, porque tudo o que foi escrito sobre Ele é recapitulado num só todo” .[21] Vê-se assim uma continuidade na diferença. A Igreja dá o seu essencial anúncio desta riqueza da Palavra. A comunidade cristã sente-se gerada e renovada da Palavra de Deus, quando sabe compreendê-la em Jesus Cristo. Mas também é verdade que a Palavra de Jesus (que é Jesus) deve ser compreendida, como Ele mesmo dizia, segundo as Escrituras (cf. Lc 24, 44-49), ou seja, na história do povo de Deus do Antigo Testamento, que O esperou como Messias, e agora na história da comunidade cristã, que O anuncia com a pregação, medita n’Ele com a Bíblia, experimenta a sua amizade e a sua guia na vida. São Bernardo afirma que, no plano da Encarnação da Palavra, Cristo é o centro de todas as Escrituras. A Palavra de Deus, que já se ouvia no Antigo Testamento, tornou-se visível em Cristo.[22] A Palavra de Deus como uma sinfonia 10. As indicações acima dadas permitem agora delinear o sentido que a Igreja, à luz da Revelação, dá à Palavra de Deus. É como uma sinfonia tocada por uma variedade de instrumentos, enquanto Deus comunica a sua Palavra de muitas formas e de muitos modos (cf. Heb 1,1), dentro de uma longa história e com uma diversidade de anunciadores, mas onde aparece uma hierarquia de significados e de funções. É correcto falar de sentido análogo da Palavra. a – À luz da Revelação, a Palavra de Deus é o Verbo eterno de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o Filho do Pai, fundamento da comunicação intra-trinitária e ad extra: “No princípio era o Verbo, o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava, ao princípio, junto de Deus. Tudo se fez por meio d’Ele, e, sem Ele, nada se fez” (Jo 1,1-3; cf. Col 1,16). b – Por isso, o mundo criado “narra a glória de Deus” (Sal 19,1); tudo é sua voz (cf. Sir 46,17; Sal 68,34). No princípio do tempo, com a sua Palavra, Deus cria o cosmo, pondo na criação a marca da sua sabedoria, de que o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é o intérprete natural (cf. Gen 1,26-27; Rom 1,19-20). Da Palavra, com efeito, o homem recebe a palavra para entrar em diálogo com Deus e com a criação. Assim, Deus fez da criação inteira, e do homem in primis, “um testemunho perene de Si mesmo” .[23] c – “O Verbo fez-Se carne” (Jo 1,14): a Palavra por excelência de Deus, a Palavra última e definitiva, é Jesus Cristo, a sua pessoa, a sua missão, a sua história intimamente unidas, segundo o plano do Pai, que culmina na Páscoa e tem a sua realização definitiva quando Jesus entregar o Reino ao Pai (cf. 1Cor 15,24). Ele é o Evangelho de Deus para o homem (cf. Mc 1,1). d – Em vista da Palavra, que é o Filho encarnado, o Pai falou nos tempos antigos aos pais por meio dos profetas (cf. Heb 1,1) e, em força do Espírito, os Apóstolos continuam a anunciar Jesus e o seu Evangelho. Assim, ao serviço da única Palavra de Deus, as palavras do homem são assumidas como palavras de Deus, que ressoam no anúncio dos profetas e dos Apóstolos. e – A Sagrada Escritura, fixando por divina inspiração a Palavra de Jesus com as palavras dos profetas e dos Apóstolos, atesta-o de forma autêntica, e assim ela contém a Palavra de Deus e, enquanto inspirada, é verdadeiramente Palavra de Deus,[24] totalmente orientada à Palavra, que é Jesus, porque “as Escrituras, precisamente elas, dão testemunho de Mim” (Jo 5,39). Pelo carisma da inspiração, os livros da Sagrada Escritura têm uma força de apelo directo e concreto que outros textos e intervenções eclesiásticas não têm. f – Mas a Palavra de Deus não fica bloqueada na escrita. Se, na verdade, o acto da Revelação terminou com a morte do último apóstolo,[25] a Palavra revelada continua a ser anunciada e escutada na história da Igreja, que se empenha a proclamá-la ao mundo para responder às suas expectativas. Assim, a Palavra continua o seu curso na pregação viva e nas muitas outras formas de serviço de evangelização, pelo que a pregação é Palavra de Deus, comunicada pelo Deus vivo a pessoas vivas em Jesus Cristo, através da Igreja. De um tal quadro pode-se compreender que, quando se prega a revelação de Deus, dá-se na Igreja um acontecimento que se pode chamar verdadeiramente Palavra de Deus. Devem reconhecer-se na Palavra de Deus todas as qualidades de uma verdadeira comunicação inter-pessoal, como, por exemplo, uma função informativa, enquanto Deus comunica a sua verdade; uma função expressiva, enquanto Deus faz transparecer a sua maneira de pensar, de amar e de agir; uma função apeladora, enquanto Deus interpela e chama a uma escuta e a uma resposta de fé. Caberá aos pastores ajudar os fiéis a ter essa visão harmónica da Palavra, evitando formas erradas ou redutivas ou de compreensão ambígua, metendo em realce a sua ligação intrínseca com o mistério de Deus uno e trino e a sua revelação, a sua manifestação no mundo criado e a sua presença germinal na vida e na história do homem, a sua suprema expressão em Jesus Cristo, a sua atestação infalível na Sagrada Escritura, a sua transmissão na Tradição viva. Em relação ao mistério de Palavra de Deus, convertida em linguagem humana, ter-se-á em conta a investigação das ciências sobre a linguagem e a sua comunicação. À Palavra de Deus corresponde a fé do homem. A fé manifesta-se na escuta 11. “A Deus que Se revela deve prestar-se a obediência da fé”.[26] A Ele que, ao falar, Se doa, o homem, ao escutar, “entrega-se (…) livre e totalmente”.[27] Isso implica da parte da comunidade e de cada crente uma resposta plena a uma proposta de total comunhão com Deus e de adesão à sua vontade.[28] Esta atitude de fé comunional manifestar-se-á, em cada encontro com a Palavra, na pregação viva e na leitura da Bíblia. Não é por acaso que a Dei Verbum propõe para o encontro com o Livro Sagrado quanto globalmente afirma para a Palavra de Deus: “Deus (…) fala aos homens como a amigos (…) para os convidar e os receber em comunhão com Ele” .[29] “Nos Livros Sagrados, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro dos seus filhos e conversa com eles”.[30] Revelação é comunhão de amor, que a Escritura frequentemente exprime com o termo “aliança” (Gen 9,9; 15,18; Ex 24,1-18; Mc 14,24). Aborda-se aqui um aspecto de notável incidência pastoral: a fé diz respeito à Palavra de Deus em todos os seus sinais e linguagens. É uma fé que, em virtude da acção do Espírito Santo, recebe da Palavra uma comunicação de verdade, através da narração ou da fórmula doutrinal; uma fé que reconhece à Palavra a prerrogativa de ser estímulo primário para uma conversão eficaz, luz para responder às muitas perguntas da vida do crente, guia para um recto discernimento sapiencial da realidade, solicitação para ‘praticar’ a Palavra (cf. Lc 8,21), e não só para a ler ou proferir, e finalmente fonte permanente de consolação e de esperança. Daí deriva, como sólida lógica da fé, o dever de reconhecer e garantir o primado da Palavra de Deus na própria vida de crentes, recebendo-a como a Igreja a anuncia, compreende, explica e vive. Maria, modelo de acolhimento da Palavra para o crente 12. No caminho de penetração do mistério da Palavra de Deus, Maria de Nazaré, a partir do acontecimento da Anunciação, torna-se mestra e mãe da Igreja e modelo vivo de todo o encontro pessoal e comunitário com a Palavra, que ela acolhe na fé, medita, interioriza e vive (cf. Lc 1,38; 2,19.51; Act 17,11). Maria, com efeito, escutava e meditava nas Escrituras, associando-as às palavras de Jesus e aos acontecimentos que ia descobrindo na sua história. Diz Isaac de l’Etoile: “Nas Escrituras, divinamente inspiradas, o que é dito em geral da virgem mãe Igreja, é entendido singularmente da virgem mãe Maria. Herança do Senhor são de modo universal a Igreja, de modo especial Maria, de modo particular toda a alma fiel. No tabernáculo do seio de Maria, Cristo morou nove meses; no tabernáculo da fé da Igreja, até ao fim do mundo; no conhecimento e no amor da alma fiel, por toda a eternidade”.[31] A Virgem Maria sabe olhar à sua volta e vive as urgências do quotidiano, ciente de que o que recebe do Filho como dom é um dom para todos. Ela ensina a não ser alheios espectadores de uma Palavra de vida, mas a tornar-se participantes, deixando-se guiar pelo Espírito Santo que habita no crente. Ela ‘glorifica’ o Senhor, ao descobrir na sua vida a misericórdia de Deus, que a faz ‘bem-aventurada’, porque “acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor” (Lc 1,45). Convida, além disso, todo o crente a fazer próprias as palavras de Jesus: “Felizes os que acreditam sem ter visto” (Jo 20,29). Maria é a imagem do verdadeiro orante da Palavra, que sabe guardar com amor a Palavra de Deus, transformando-a em serviço de caridade, memória permanente, para manter acesa a lâmpada da fé no quotidiano da existência. Diz Santo Ambrósio que todo o cristão que crê concebe e gera o Verbo de Deus. Se há só uma mãe de Cristo segundo a carne, já, segundo a fé, Cristo é o fruto de todos.[32] A Palavra de Deus, confiada à Igreja, transmite-se a todas as gerações 13. “Dispôs Deus, em toda a sua benignidade, que tudo quanto revelara para a salvação de todos permanecesse íntegro para sempre e fosse transmitido a todas as gerações” .[33] Amigo e Pai dos homens, Deus ainda fala. De certo modo, a Revelação, embora concluída, continua a comunicar, pelo que a Palavra de Deus é para nós sempre contemporânea e actual. Antes, pode manifestar ainda mais o seu contributo de luz e fazer crescer a nossa compreensão. Isso acontece porque o Pai, dando o Espírito de Jesus à Igreja, confia a esta o tesouro da revelação,[34] torna-a primeira destinatária e testemunha privilegiada da Palavra amorosa e salvífica de Deus. Por isso, na Igreja a Palavra não é depósito inerte, mas, tornando-se “norma suprema da fé” e potência de vida, “progride sob a assistência do Espírito Santo” e “cresce” com a “reflexão e estudo dos crentes” , com a experiência pessoal de vida espiritual e a pregação dos Bispos.[35] Testemunham-no de modo especial os homens de Deus, que ‘habitaram’ a Palavra.[36] É evidente que a verdadeira e primária missão da Igreja é transmitir a divina Palavra a todos os homens, em todos os tempos e em todos os lugares, segundo o mandato de Jesus (cf. Mt 28,18-20). A história atesta como isso se deu e continua a dar também agora, depois de tantos séculos, no meio de diversos obstáculos, mas também com tanta vitalidade e fecundidade. Tradição e Escritura na Igreja, um só depósito sagrado da Palavra de Deus 14. A este respeito, é fundamental recordar que a Palavra de Deus, em Jesus Cristo convertida em Evangelho ou feliz notícia e, como tal, entregue à pregação apostólica, continua o seu curso através de dois pontos de referência, reconhecíveis e estreitamente interligados: por um lado, o fluxo vital da Tradição viva, manifestada por “tudo o que ela é e por tudo aquilo em que ela acredita” [37]e, portanto, pelo culto, pela doutrina e pela vida da Igreja e, por outro lado, a Sagrada Escritura, que desta Tradição viva, por inspiração do Espírito Santo, conserva, precisamente na imutabilidade da escrita, os elementos constitutivos e originários. “Portanto, a Sagrada Tradição e a Escritura Sagrada de um e outro Testamento são como que um espelho, no qual a Igreja, peregrinando na terra, contempla a Deus, de Quem tudo recebe, até que seja conduzida a vê-l’O face a face, tal qual Ele é (cf. 1Jo 3,2)” .[38] Ao Magistério da Igreja, que não está acima da Palavra de Deus, cabe o múnus de “interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou transmitida” .[39] O Concílio Vaticano II insiste sobre a unidade de origem e sobre as múltiplas conexões entre Tradição e Escritura: a Igreja acolhe-as “com igual afecto de piedade e reverência” .[40] Um insubstituível dever de serviço é prestado pelo Magistério, quando, garantindo uma interpretação autêntica da Palavra de Deus, a “ouve piamente, guarda santamente e fielmente expõe” [41]. Do ponto de vista pastoral, seguindo a doutrina da Igreja, devem ser esclarecidas conceptualmente e traduzidas em experiência de vida as relações entre Tradição e Escritura, como, por exemplo, o facto de a Tradição preceder originariamente a Escritura, e ser sempre como que o seu húmus vital, que “permite compreender mais profundamente e tornar incessantemente mais operantes as próprias Sagradas Letras” .[42] Como, por outro lado, “se deve aplicar por excelência à Sagrada Escritura o que foi dito: ‘a Palavra de Deus é viva e eficaz (Heb 4,12), e tem poder de edificar e dar herança a todos os santificados’ (Act 30,32; cf. 1 Tes 2,13)”.[43] A Sagrada Escritura e a Tradição são ambas canais que comunicam a Palavra de Deus, a qual, por conseguinte, possui a sua plenitude de sentido e de graça na experiência de ambas, ‘uma dentro da outra’, pelo que, nesta óptica, se podem chamar e são Palavra de Deus. São várias as consequências de uma notável incidência no âmbito pastoral. Não pode haver uma ‘sola Scriptura’ isolada: a Escritura está ligada à Igreja, isto é, ao sujeito que acolhe e compreende tanto a Tradição como a Escritura. A Escritura desempenha um papel essencial para ter acesso à Palavra na sua genuinidade fontal, tornando-se assim critério para a recta compreensão da Tradição. Deve-se, portanto, considerar nos seus efeitos práticos a distinção entre a Tradição apostólica constitutiva, a tradição posterior que interpreta e actualiza e as demais tradições eclesiásticas; como também deverá avaliar-se o alcance decisivo do reconhecimento canónico que a Igreja operou relativamente às Escrituras, garantindo a sua autenticidade (73 livros: 46 do Antigo Testamento e 27 do Novo Testamento), [44] perante a proliferação de livros não autênticos ou apócrifos, de ontem, de hoje e de sempre. Permanecem, por fim, e sempre como pano de fundo, o confronto e o diálogo delicado, necessário e apaixonado entre Escritura e Tradição com os sinais da Palavra de Deus no mundo criado, nomeadamente com o homem e a sua história.[45] No sulco da Tradição viva e, portanto, como serviço genuíno à Palavra de Deus, deve também atender-se à forma do Catecismo, desde o primeiro Símbolo da fé, núcleo de todo o Catecismo, até às diversas exposições feitas no decorrer dos séculos, cujas expressões mais recentes são, na Igreja universal, o Catecismo da Igreja Católica e, nas Igrejas locais, os respectivos Catecismos. Sagrada Escritura, Palavra de Deus inspirada 15. “ Sagrada Escritura é Palavra de Deus enquanto consignada por escrito sob a inspiração do Espírito Santo”.[46] É qualificada sobretudo com dois nomes: Escritura (sagrada) e Bíblia, títulos por si já significativos, como sendo o Texto e o Livro por excelência, com uma difusão que supera os confins da Igreja. Em linha de princípio, pela sua incidência operativa na leitura da Bíblia, devem ser considerados os seguintes pontos: no quadro teológico de referência acima acenado, a Escritura e a Tradição comunicam de forma imutável a Palavra de Deus e fazem ressoar “a voz do Espírito Santo”;[47] o significado do carisma da inspiração, com que o Espírito Santo faz dos livros bíblicos Palavra de Deus e os confia à Igreja, para serem, portanto, acolhidos na obediência da fé; a unidade do Cânone como critério de interpretação da Sagrada Escritura; a compreensão da verdade da Bíblia, antes de mais, como “a verdade que Deus, para a nossa salvação, quis consignar nas Sagradas Letras”;[48] o sentido e o alcance da identidade da Bíblia como Palavra de Deus em linguagem humana, pelo que a interpretação da Bíblia se faz de forma unitária, sob a guia da fé, com critérios filosóficos e teológicos, à luz sobretudo da Nota da Pontifícia Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja.[49] Hoje, cada vez mais se nota no povo de Deus, como já observava Amós, uma fome e sede da Palavra de Deus (cf. Am 8,11-12). É uma necessidade vital a não minimizar, porque é o próprio Senhor que está a suscitá-la. Por outro lado, também se nota com tristeza como essa necessidade não seja sentida por toda a parte, porque a Palavra de Deus circula pouco e ainda não se favorece de modo adequado o encontro com o Livro Sagrado. Ajudar os fiéis a compreender o que é a Bíblia, porque existe, o que ela dá à fé, como se a usa, é uma exigência importante a que a Igreja deu sempre resposta, e ainda hoje responde de modo especial em quatro capítulos da Dei Verbum.[50] Conhecê-los adequadamente, servindo-se de outros contributos do Magistério e de uma séria investigação, torna-se uma tarefa imprescindível nas nossas comunidades. Interpretar a Palavra de Deus na Igreja, uma tarefa necessária e delicada 16. A visão de tantos cristãos que, em comunidade ou individualmente, perscrutam de forma muito tão intensa a Palavra de Deus no Livro Sagrado, é para a Igreja uma preciosa possibilidade de habilitar os fiéis a uma sua correcta compreensão e actualização. De certo modo, isso mais se impõe hoje, que se abre um novo confronto entre a Palavra de Deus e as ciências do homem, nomeadamente no âmbito da investigação filosófica, científica e histórica. Reconhece-se a riqueza em termos de verdade e de valores sobre Deus, o homem e as coisas, que provém desse contacto entre Palavra e cultura, como também se propõe um constante confronto sobre problemas inéditos. A razão, portanto, interpela a fé e é por esta instigada a colaborar para uma verdade e vida que sejam conformes à revelação de Deus e às expectativas da humanidade.[51] Não faltam, porém, também os riscos de uma interpretação arbitrária e redutiva, como é o fundamentalismo: por um lado, pode manifestar o desejo de ser fiéis ao texto, mas, por outro, despreza a própria natureza dos textos, caindo em graves erros e gerando mesmo conflitos inúteis.[52] Outros riscos provêm das leituras “ideológicas” ou simplesmente humanas, sem o suporte da fé (cf. 2Pe 1,19-20; 3,16), que chegam a configurar-se na contraposição e separação entre forma escrita atestada antes de mais na Bíblia, forma viva do anúncio e experiência de vida dos crentes. Torna-se igualmente difícil reconhecer o papel que cabe ao Magistério no serviço da Palavra de Deus, tanto em relação à Bíblia como à Tradição. Em geral, nota-se um fraco ou impreciso conhecimento das regras hermenêuticas relativas à identidade da Palavra, feitas de critérios humanos e revelados, no contexto da Tradição eclesial e em obséquio ao Magistério. À luz do Vaticano II e do Magistério sucessivo,[53] alguns aspectos parecem carecer hoje de uma atenção e reflexão específicas, em vista de uma adequada comunicação pastoral; ou seja, a Bíblia, livro de Deus e do homem, deve ser lida unificando de modo correcto o sentido histórico-literal com o sentido teológico-espiritual.[54] Isso significa que, para uma correcta exegese, é necessário o método histórico-crítico, convenientemente enriquecido com outras formas de abordagem.[55] Há que enfrentar o problema interpretativo da Escritura, mas, para se chegar ao seu sentido total, é necessário recorrer a critérios teológicos, repropostos pela Dei Verbum: “conteúdo e unidade de toda a Sagrada Escritura, Tradição viva de toda a Igreja, e analogia da fé” .[56] Sente-se hoje a necessidade de uma aprofundada reflexão teológica e pastoral para formar as comunidades a uma inteligência recta e frutuosa da Sagrada Escritura como Palavra de Deus, compreendida no mistério da cruz e ressurreição de Jesus Cristo, vivo na Igreja. “Por outras palavras – afirma o Papa Bento XVI – é meu grande desejo que os teólogos aprendam a ler e a amar a Escritura do modo como, segundo a Dei Verbum, o Concílio quis: que vejam a unidade interior da Escritura uma coisa hoje ajudada pela ‘exegese canónica’ (que sem dúvida ainda se encontra num tímido estádio inicial) e que depois façamos dela uma leitura espiritual, que não é algo exterior, de carácter edificante, mas ao contrário, um imerger-se interiormente na presença da Palavra. Parece-me uma tarefa muito importante fazer algo neste sentido, contribuir para que, paralelamente à exegese histórico-científica seja feita deveras uma introdução à Escritura viva, como Palavra de Deus actual”.[57] Numa tal perspectiva, há que ter cuidadosamente em conta o contributo do Catecismo da Igreja Católica, as diversas ressonâncias e tradições que a Bíblia suscita na vida do povo de Deus e o contributo das ciências teológicas e humanas. A par de todo este empenho, não se pode esquecer a interpretação da Palavra de Deus, que se realiza todas as vezes que a Igreja se reúne para celebrar os divinos mistérios. A esse respeito, recorda a Introdução ao Leccionário proclamado na Eucaristia: “Já que, por vontade do próprio Cristo, o novo povo de Deus é distinto na admirável variedade dos seus membros, assim também são diferentes as tarefas e os encargos que pertencem a cada um no que diz respeito à Palavra de Deus: aos fiéis cabe ouvi-la e meditá-la; já o expô-la pertence apenas àqueles que, em força da Sagrada Ordenação, têm a função magisterial, ou àqueles a quem foi confiado o exercício deste ministério. Assim, na doutrina, na vida e no culto, a Igreja perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela mesma é, tudo aquilo em que ela crê, para assim tender sem cessar, ao longo dos séculos, à plenitude da verdade divina, até que nela se realize a Palavra de Deus”.[58] Antigo e Novo Testamento, uma só economia da salvação 17. Não se pode estar completamente satisfeitos com o conhecimento e a prática que tantos têm das Escrituras. Também por dificuldades não resolvidas, assiste-se por vezes a uma certa resistência perante certas páginas do Antigo Testamento que se afiguram difíceis, sujeitas a serem postas de lado, a uma selecção arbitrária, a uma recusa. Segundo a fé da Igreja, o Antigo Testamento deve ser tido como parte da única Bíblia dos cristãos, reconhecendo os seus valores permanentes, a relação que liga os dois Testamentos.[59] De tudo isto nasce a necessidade de uma urgente formação à leitura cristã do Antigo Testamento. Neste ponto, vem em nossa ajuda a praxe litúrgica, que sempre proclama o Antigo Testamento como página essencial para uma compreensão plena do Novo Testamento, como atesta o próprio Jesus no episódio de Emaús, onde o Mestre “começando a falar de Moisés e de todos os profetas lhes explicou em todas as Escrituras o que a Ele se referia” (Lc 24,27). As Leituras litúrgicas do Antigo Testamento oferecem, pois, um precioso itinerário para o encontro orgânico e articulado com o Texto Sagrado. Fá-lo, quer no uso do Salmo Responsorial que convida a rezar e a meditar quanto foi anunciado, quer na aproximação temática entre a primeira Leitura e o Evangelho na perspectiva de síntese do mistério de Cristo. Com efeito, reza o antigo ditado que o Novo Testamento está oculto no Antigo, e o Antigo é desvelado no Novo Testamento: Novum in Vetere latet et in Novo Vetus patet.[60] Diz São Gregório Magno: “O que o Antigo Testamento prometeu, o Novo Testamento o mostrou; o que aquele anuncia de forma velada, este proclama-o abertamente como sendo presente. Por isso, o Antigo Testamento é profecia do Novo Testamento; e o melhor comentário do Antigo Testamento é o Novo Testamento” .[61] Quanto ao Novo Testamento, hoje certamente mais familiar na prática bíblica, graças também à riqueza dos Leccionários e da Liturgia das Horas, há que recordar o valor central dos Evangelhos, por isso proclamados de forma completa nos três anos do ciclo litúrgico festivo e cada ano nos dias feriais, não esquecendo, todavia, o grande ensinamento de Paulo e dos outros Apóstolos.[62] PERGUNTAS Capítulo I 1. Conhecimento da Palavra de Deus na história da salvação Entre os fiéis (paróquias, comunidades religiosas, movimentos), que ideia se tem de Revelação, Palavra de Deus, Bíblia, Tradição, Magistério? Colhem-se os diversos níveis de significado de Palavra de Deus? Jesus Cristo é visto como centro da Palavra de Deus? Qual a relação entre Palavra de Deus e Bíblia? Quais os aspectos menos compreendidos? Por que razões? 2. Palavra de Deus e Igreja Em que medida a abordagem da Palavra de Deus incrementa a consciência viva de pertencer à Igreja, Corpo de Cristo, e mobiliza para a autêntica missão eclesial? Como é compreendida a relação entre Palavra de Deus e Igreja? Entre Bíblia e Tradição, mantém-se uma correcta relação no estudo exegético e teológico e nos encontros com o Livro Sagrado? A catequese é guiada pela Palavra de Deus? Esta valoriza bem a Sagrada Escritura? Como se colhe a importância e a responsabilidade do Magistério na proclamação da Palavra de Deus? Existe uma genuína escuta de fé da Palavra de Deus? Quais os aspectos a esclarecer e a reforçar? 3. Indicações de fé da Igreja sobre a Palavra de Deus Que acolhimento teve a Dei Verbum? E o Catecismo da Igreja Católica? Qual o específico papel magisterial dos Bispos no apostolado da Palavra de Deus? Qual o papel dos ministros ordenados, presbíteros e diáconos, na proclamação da Palavra (cf. LG 25.28)? Que relação deve existir entre a Palavra de Deus e a vida consagrada? Como intervém a Palavra de Deus na formação dos futuros presbíteros? De que orientações tem hoje necessidade o povo de Deus no tocante a Palavra de Deus, e nomeadamente os presbíteros, os diáconos, as pessoas consagradas e os leigos? 4. A Bíblia como Palavra de Deus Quais as razões que hoje levam os cristãos a desejar a Bíblia? Que contributo esta dá à vida de fé? Como é acolhida no mundo não cristão? E entre as pessoas de cultura? Pode-se falar de uma abordagem sempre correcta da Escritura? Quais os defeitos mais comuns? Como é compreendido o carisma da inspiração e da verdade da Escritura? Tem-se em conta o sentido espiritual da Escritura como sentido último querido por Deus? Como é acolhido o Antigo Testamento? Se os Evangelhos são os mais usados, podem considerar-se suficientes o seu conhecimento e a sua leitura? Quais são as ‘páginas difíceis’ da Bíblia hoje mais problemáticas e que se devem enfrentar? 5. A fé na Palavra de Deus Quais são as atitudes dos crentes perante a Palavra de Deus? A sua escuta é feita numa fé intensa e tem em vista gerar a fé? Quais são as razões que levam à leitura da Bíblia? Podem-se indicar critérios de discernimento sobre o acolhimento crente da Palavra? 6. Maria e a Palavra de Deus Porque é que Maria é mestra e mãe na escuta da Palavra de Deus? Como é que ela a acolheu e viveu? De que modo Maria pode ser modelo do cristão que escuta, medita e vive a Palavra de Deus? CAPÍTULO II A Palavra de Deus na vida da Igreja “Assim a Palavra que sai da minha boca não volta sem ter produzido o seu efeito, sem ter cumprido a minha vontade, sem ter realizado a sua missão” (Is 55,11). A Igreja nasce e vive da Palavra de Deus 18. A Igreja confessa que é continuamente chamada e gerada pela Palavra de Deus. Por isso, para poder proclamá-la com amor e vigor, se coloca primeiro e constantemente “em religiosa escuta” [63]da mesma, deixa-se interpelar e ser interiormente tocada por ela, acolhe-a com fé humilde e confiante, imitando Maria, que escuta e põe em prática a Palavra (cf. Lc 1,38), e que, por isso, o Senhor constitui modelo da Igreja. Nesta perspectiva de adesão à Palavra, a comunidade cristã encontra a Sagrada Escritura. “Com efeito, nos Livros Sagrados, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro dos seus filhos e conversa com eles” .[64] A Escritura, portanto, encontra-se no coração e nas mãos da Igreja como a “Carta que Deus enviou aos homens” ,[65] o livro de vida, objecto de profunda veneração, analogamente ao próprio Corpo de Cristo.[66] Nela, a Igreja descobre qual é o plano que Deus tem para ela, para o mundo dos homens e das coisas. Por isso, “considera-a, juntamente com a Sagrada Tradição, como a regra suprema da sua fé” , proclama-a com vigor e encontra-a como “alimento da alma e fonte de vida espiritual” .[67] Da Igreja, o cristão recebe a Bíblia; com a Igreja, lê-a e partilha o seu espírito e objectivos, procurando, assim, a finalidade suprema de todo o encontro com a Palavra, como Jesus nos ensinou: o cumprimento da vontade de Deus com uma vida de fé, de esperança e caridade no seguimento do Mestre (cf. Lc 8,19-21). A Palavra de Deus ampara a Igreja ao longo de toda a sua história 19. É um dado constante, na vida do povo de Deus, receber força da Palavra, e isso desde o tempo em que o profeta falava ao seu povo, Jesus à multidão e aos discípulos, os apóstolos à primeira comunidade, até aos nossos dias. Deve-se, portanto, observar atentamente como a presença da Palavra, sobretudo no testemunho da Bíblia, caracteriza as diversas épocas no mundo bíblico e na história da Igreja. Assim, no tempo dos Padres, a Escritura é o centro, como que a fonte donde se nutrem a teologia, a espiritualidade e a vida pastoral. Os Padres são os mestres insuperáveis daquela leitura ‘espiritual’ da Escritura, que, quando é genuína, não é destruição da ‘letra’, ou seja, de um saudável sentido histórico, mas é capacidade de ler no Espírito também a letra. Na Idade Média, a Sagrada Página constitui a base da reflexão teológica; para poder compreendê-la, elabora-se a doutrina dos quatro sentidos (letra, alegoria, tropologia, anagogia);[68] na linha de uma antiga tradição, a Lectio Divina constitui a forma monástica da oração; é fonte para a inspiração artística; transmite-se ao povo nas múltiplas formas da pregação e da piedade popular.[69] Na Idade Moderna, o afirmar-se do espírito crítico, o progresso científico, a divisão dos cristãos e o subsequente empenho ecuménico, estimulam, não sem dificuldades e contrastes, uma mais correcta metodologia de abordagem e, ao mesmo tempo, uma melhor compreensão do mistério da Escritura no seio da Tradição. Nos nossos dias, temos o projecto de renovação, baseado na centralidade da Palavra de Deus, de que foi o grande artífice o Concílio Vaticano II. Para além de uma pluralidade histórica de formas, há que considerar também uma pluralidade geográfica. A Palavra de Deus, graças sobretudo a um contínuo contacto com a Bíblia, difunde-se e evangeliza as diversas Igrejas particulares nos cinco continentes; incultura-se progressivamente nelas, tornando-se alma vivificante da fé de muitos povos, factor fundamental de comunhão na Igreja, testemunho da inesgotável riqueza do seu mistério, fonte permanente de inspiração e de transformação das culturas e da sociedade. A Palavra de Deus preenche e anima, no poder do Espírito Santo, toda a vida da Igreja 20. O Espírito Santo, que guia a Igreja à verdade todal (cf. Jo 16,13), permite compreender o verdadeiro sentido da Palavra de Deus, levando finalmente a um encontro sem véu com o próprio Verbo, o Filho de Deus, Jesus de Nazaré, Revelador do Pai. O Espírito é a alma e o exegeta da Sagrada Escritura, que é Palavra de Deus posta por escrito sob a sua inspiração. Por isso, a Sagrada Escritura deve ser “lida e interpretada com a ajuda do mesmo Espírito com que foi escrita” [70]. A Igreja, guiada pelo Espírito, procura “alcançar uma inteligência cada vez mais profunda das Sagradas Escrituras”[71] para nutrir os seus filhos, servindo-se em especial do estudo dos Padres do Oriente e do Ocidente, da investigação exegética e teológica, da vida dos que deram testemunho e dos santos. Preciosa nesse sentido é a linha traçada na Introdução ao Leccionário, onde se afirma: “Para que Palavra de Deus realize verdadeiramente nos corações o que faz ressoar aos ouvidos, requer-se a acção do Espírito Santo; sob a sua inspiração e com a sua ajuda, a Palavra de Deus torna-se fundamento da acção litúrgica, norma e apoio de toda a vida. A acção do mesmo Espírito Santo não só precede, acompanha e segue toda a acção litúrgica, mas sugere ao coração de cada um (cf. Jo 14,15-17.25-26; 15,26-16,15) tudo o que na proclamação da Palavra de Deus é dito para toda a Assembleia dos fiéis e, fortalecendo a unidade entre todos, favorece também a diversidade dos carismas e valoriza a sua multíplice acção” .[72] »»» Continuação »»»

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