Mário Avelar
Quando há cerca de trinta anos comecei a trabalhar na Faculdade de Letras de Lisboa, lecionei uma cadeira designada Introdução aos Estudos Literários. Era, então, consensual no meu Departamento (Estudos Anglo-Americanos), que nesta cadeira deveríamos proporcionar a descoberta dos diferentes géneros literários através de um diálogo com a História. Nesse sentido, começávamos com a leitura de textos fundadores e formadores da nossa matriz cultural, de Odisseia a Édipo Rei, de As Nuvens a O Rei Lear, para depois desvendarmos textos cronologicamente mais próximo de nós, como Mensagem ou A Terra Devastada, ou os fascinantes ecos dos poetas provençais em Ezra Pound. Dois dos textos por nós estudados no início do ano letivo, quer pela sua dimensão literária quer pela sua relevância no âmbito de uma cultura assente no logos, eram o Génesis e o Evangelho Segundo João.
Recordo o impacto que em mim teve a análise rigorosa dessa dimensão literária feita em The Art of Biblical Narrative, um livro que descobri no já distante ano de 1985, e que naturalmente partilhei com os meus alunos. Foi com alegria que vi confirmada a importância deste ensaio quando, há alguns anos, li a tese de doutoramento do padre José Tolentino Mendonça.
Através destes e doutros textos, quem passava por aquelas aulas compreendia a complexidade e a heterogeneidade dos diálogos que se foram concebendo ao longo dos séculos nos nossos horizontes culturais, e que envolviam aspetos tão diversos como a conceção cósmica clássica grego-romana, o racionalismo cristão, os ecos neo-pitagóricos no Renascimento, as convocações neo-platónicas nos Romantismos, a alquimia, o gnosticismo e esoterismos vários revisitando instantes estéticos do século XIX como a arte pré-rafaelita, e tantos outros aspetos que dão corpo à nossa identidade presente.
Recordo, por isso, que, ao ler um dos primeiros sucessos de Dan Brown (DB), não pude deixar de pensar que qualquer antigo aluno meu identificaria as banalidades e equívocos ali exibidas; exibidas, diga-se, com o deslumbramento natural típico de quem nunca se deteve para compreender a complexidade da sua memória cultural coletiva.
Afinal, as grandes obras da cultura ocidental revisitam e questionam esses momentos fundadores, não raro numa tentativa de melhor compreender o presente em que se inscrevem. Os exemplos seriam infindáveis, por isso recordo apenas um livro de cabeceira meu, Moby-Dick. Aqui, numa aparente caça à baleia, é toda uma tradição judaico-cristã que se convoca. Da nomeação das personagens – Acab, Ismael, Elias, Raquel – às vertentes narrativas e simbólicas, essa tradição invade o romance determinando o seu rumo e até a sua resolução. Recorde-se que nas páginas inicias do livro surgem passos do Génesis, Job, Jonas, Salmos e Isaías, e que será com uma epígrafe colhida em Jó 1 – 15 que ele termina. Neste romance, o autor, Herman Melville, exibe uma busca estética e intelectual, sustentada por uma rara erudição e por uma profunda investigação. No entanto, é com algum sentido de humor que ele entende as suas citações iniciais da História da nossa cultura como meras incursões de um sub, sub-bibliotecário. Apesar da sua erudição, o romancista/investigador exibe uma consciência face aos limites dos seus próprios conhecimentos.
A par deste encontro com o passado para melhor compreender o nosso presente, a lecionação que acima referi, recordava quão relevante era, para a formação de todos nós, em qualquer esfera de atividade, uma investigação rigorosa e intelectualmente honesta.
Um dos exemplos que tenho partilhado neste âmbito é o primeiro volume da obra de John P. Meier, A Marginal Jew – Rethinking the Historical Jesus. Com efeito, este volume, intitulado “The Roots of the Problem and the Person”, é um trabalho notável a nível de investigação e de rigor analítico, distinguindo com clareza espaços de reflexão como a História e a Teologia, sem, todavia, ignorar, os pontos em que ambos se cruzam. Não será, aliás, por acaso que a obra de Meier, para além de obviamente constar da bibliografia final, é destacada por Joseph Ratzinger/Bento XVI no primeiro volume de Jesus de Nazaré.
Porquê estas aparentes digressões prévias quando o meu objeto aqui é O Último Segredo?
Desde logo porque a sombra de Dan Brown paira ao longo de todo o romance de José Rodrigues dos Santos (JRS).
Antes de prosseguir, importa referir que DB assenta o seu sucesso na conjugação de dois fatores: a escolha de um tópico sensacionalista, e uma eficiente estratégia narrativa. A escolha do tópico é fulcral a este nível. Da “mensagem cifrada” na Última Ceia, à simbologia e práticas maçónicas no espaço americano, é todo um universo esotérico que emerge, apelando a uma curiosidade algo naïve do público leitor. Digo naïve porque, como referi, qualquer antigo aluno dessas aulas de Introdução aos Estudos Literários de imediato desmontaria os “segredos” ali mencionados. Recorde-se que a presença da maçonaria nos primeiros anos da nação americana e a forma como ela se projetou na conceção arquitetónica de Washington, por exemplo, são dados que qualquer estudante de estudos americanos identifica.
Junte-se a essa dimensão esotérica a necessária dose de teoria da conspiração, e temos os ingredientes necessários para o sucesso.
No entanto, DB vai mais longe através da eficiente estratégia narrativa por ele concebida. E esta, importa esclarecer, é devedora de duas artes do século XX, o cinema e a banda desenhada. Tal como no cinema de Griffith, DB recorre à montagem paralela, fazendo alternar duas narrativas aparentemente distintas que, em determinado ponto, convergem. Tal como na BD, DB escreve cada capítulo como se de uma prancha se tratasse. Recordo, por exemplo, quando, na minha juventude, li O Enigma da Atlântida na revista TinTin, e como, no final de cada prancha, ficava em suspenso aguardando pelo número seguinte, e assim sucessivamente. Ora, também DB usa capítulos muito curtos que terminam com uma situação que fica por resolver; ainda o mistério. O facto de as narrativas serem intercaladas, faz com que a leitura se torne compulsiva, já que o leitor prossegue sempre em busca do mistério que ficou por relevar no final de cada capítulo.
Uma técnica obviamente eficiente, portanto! Mas que, apesar de todo um jargão pretensamente científico, o que ali está em causa são, afinal, livros de aventuras, não tenho dúvidas. Confesso que tive a felicidade de, na minha juventude, serem outras as modas, e de Emílio Salgari e Enid Blyton terem participado, então, do meu imaginário.
Hoje, restam apenas os seus banais imitadores!
Creio que este sucinta incursão pela obra de DB de imediato ilumina os ingredientes que dão corpo ao romance de JRS.
Tal como DB, também JRS recorre a um tópico apelativo. Desde logo, o título prima pela eficiência, convidando o leitor a partilhar com o autor a descoberta de algo de essencial. Aliás, este não é apenas um qualquer segredo, ou até mesmo o segredo, mas sim, o último. A leitura corresponderá, assim, a uma transformação radical do leitor. O conhecimento, quem não o deseja? Acresce a este aspeto a informação inicial de que “todas as citações de fontes religiosas e todas as informações históricas e científicas incluídas neste romance são verdadeiras.” Verdadeiras? O que significa? Um académico diria que eram rigorosas, ou que respeitavam as suas fontes. Enfim, minudências… Afinal, que mais se poderá exigir da leitura?
No plano formal, tal como DB, também JRS recorre às suas narrativas paralelas que, em determinado ponto, convergem. No entanto, enquanto DB opta por breves “pranchas”, JRS só na narrativa secundária recorre à prancha, já que a narrativa central, a da demanda policial, estende-se de uma forma particularmente dolorosa, embora, por vezes, hilariante. Porquê? Porque é através desta narrativa que JRS vai finalmente desmontar um equívoco que persiste na História da Humanidade desde há dois mil anos. “E se eu lhe disser que pelos vistos a Patrícia andava à caça dos erros do Novo Testamento? … “Não sabia? A Bíblia contém muitos erros. … São milhares de erros a infetar a Bíblia,’ murmurou, ‘incluindo fraudes’.” (p. 44) Seguir-se-ão infindáveis solilóquios ao longo dos quais o protagonista – alterego de JRS? – vai citar de memória inúmeros e extensos passos bíblicos, e ler outros tantos.
Solilóquios ou diálogos? Solilóquios, já que a interlocutora principal do protagonista – um historiador português –, uma atraente agente da polícia judiciária italiana funciona como mera ouvinte que, no seu espanto perante as revelações do iluminado português, se limita a fazer-lhe perguntas que permitirão a este último prosseguir na sua missão de desmontar o equívoco em que assenta a nossa civilização. Mas já lá vamos!
Refira-se, por fim, que, enquanto DB escolhia apenas um tópico que abordava sinteticamente, de modo a desenvolver a sua narrativa, já JRS revela uma ambição muito superior. Afinal, o seu objetivo é o de desmontar os fundamentos de toda uma civilização. É obra!
Tal como em DB, também aqui tudo começa à noite com um assassinato, cujo autor, tal como em DB, é um indivíduo misterioso pertencente a uma seita… secreta, pois claro. Um assassino que, no final de cada missão, entra em contacto com… exatamente, um misterioso mestre. Déjà vu? Não!
A Biblioteca do Vaticano, sim, a Biblioteca do Vaticano é um espaço privilegiado da ação. Depois, os nossos heróis – tal como em DB – viajam de um país para outro, sempre na senda dos crimes mais recentes, até, por fim, chegarem a Jerusalém onde nos aguarda a resolução do mistério. Por fim, tal como em DB, um mistério hermenêutico caminha a par de um mistério científico.
Acredito que este romance seja uma homenagem a DB, à forma como ele escolhe e aborda os temas, à sua estratégia narrativa, aos seus ritmos, aos seus espaços, aos seus processos de sedução do leitor. Com efeito, quem tenha lido um livro de DB de imediato reconhece tudo isso. Creio, aliás, que é perfeitamente legítimo escolher um romance para elogiar um romancista que se admira. Perturba-me, porém, a ausência de verosimilhança em O Último Segredo.
Como qualquer estudioso de literatura ou qualquer leitor atento sabem, a literatura não revela a verdade. A sua busca está entregue a outras disciplinas do saber. O que importa num romance, por exemplo, é que ele seja verosímil. Já Horácio, na Arte Poética, falava deste aspeto. Assim, O Senhor dos Anéis é verosímil, embora eu não esteja à espera de encontrar seres humanos pequeninos com pés descalços exageradamente grandes quando vou ao café, nem magos com bastões no centro de saúde. Sei que essas entidades existem apenas ali, no romance. E, todavia, não me passa pela cabeça dizer que o romance é mentira. Ele possui uma lógica e uma coerência internas que me fazem imergir na experiência de leitura, retirando prazer e, eventualmente, algum proveito pedagógico. Afinal, a luta entre o bem e o mal também perpassa por aquelas páginas.
Ora, como referi, é exatamente no plano da verosimilhança que este O Último Segredo me perturba. Desde logo, pelo protagonista.
É obviamente simpático, numa altura de depressão nacional, que um herói português lidere uma operação internacional que pretende desvendar esse derradeiro segredo. No entanto, qual é o perfil deste herói? Sabemos tratar-se de um historiador da Universidade Nova de Lisboa que é consultor da Fundação Gulbenkian. Até aqui tudo bem, mas… qualquer académico sabe que os historiadores são especialistas em áreas. Dificilmente um especialista em História Contemporânea lerá aramaico, por exemplo. Em que área é especialista o Tomás Noronha? Não sendo ele arqueólogo, por que razão está ele a trabalhar numas ruínas em Roma? Porque é conselheiro da Gulbenkian. Mas conselheiro de quê?
Tomás Noronha é, afinal, alguém que aparece “quando se fala em livros antigos…” (p. 21) “Trajano deu-nos esta obra maravilhosa e o senhor está a ajudar-nos a recuperá-la.” (p. 22) “Trabalhos de peritagem” (p. 36) Em quê? Como? Porquê? Com efeito, a figura do historiador é útil, visto conferir uma legitimidade e um estatuto a nível do saber que serão necessários à explanação da agenda em causa, a teoria conspiratória em que o romance assenta. É demasiado vago, porém. Estamos, assim, perante uma personagem que, embora não nasça do nada, possui uma muito vaga configuração. Ou seja, uma personagem pouco verosímil no início que, posteriormente, se revela um especialista em estudos bíblicos, nomeadamente pela forma como cita de memória extensíssimos passos da Bíblia. Mas sê-lo-á mesmo? “Sabe, a minha especialidade é a história…” (p. 386) Qual? De quê? Demasiado pobre para um historiador, admita-se.
De duvidosa verosimilhança é igualmente a configuração da personagem feminina. Sendo ela uma mulher jovem, dinâmica, com um estatuto relevante num mundo dominado por homens, como se compreende que reaja perante as elucubrações iluminadas do nosso conterrâneo como se de uma adolescente deslumbrada se tratasse. Como é que ela, tendo sido educada numa cultura católica que ela, aliás, assume, fica algo aparvalhada quando ele lhe revela o que eram as Epístolas: “’… eram simples cartas.’ ‘Como os emails que trocamos hoje em dia?’ Tomás riu-se. … ‘E os Evangelhos surgiram também em cartas?’ … ‘Ah!’, exclamou a inspetora. ‘E foi assim que os Evangelhos foram escritos.” (pp. 62 e 63) Uma mulher pateta que, apesar de católica, ignora questões básicas da doutrina que professa, está, assim, a ser elucidada por este universitário esclarecido.
Mais adiante ser-lhe-á revelado o “verdadeiro” significado do Pai Nosso. Ela, naturalmente, responde perplexa: “É curioso, nunca tinha reparado nisto.” E acrescenta: “Mamma mia! Da próxima vez que rezar vou prestar mais atenção ao que digo!…” (p. 317)
Este é apenas um dos muitos passos que seriam hilariantes, não fosse ele sinal de uma misoginía confrangedora. “Mas como é possível que eu nunca tenha ouvido estas coisas na missa?” (p. 110) Coitada! Quão ignorantes são estas mulheres emancipadas!
De duvidosa verosimilhança é, também, a forma como os diálogos/solilóquios se arrastam em situações de grande tensão e ação iminente. Dificilmente se acreditará que numa cena de crime, a inspetora cesse a sua atividade para ouvir passivamente uma longa dissertação sobre hermenêutica. Dificilmente se compreende que, apesar de estarem prestes a serem devorados pelas chamas, o historiador não prescinda de fazer as suas dissertações teóricas. Dificilmente se compreende que alguém que tem uma arma branca encostada ao pescoço confidencie ao seu atacante: “Oiça …vamos conversar.” (p. 288) Se fosse o James Bond, talvez. Agora, um historiador, mesmo sendo português, não creio.
Para não falar das viagens que se sucedem sem que exista um nexo explícito e que justifique a liderança da investigação por parte da judiciária italiana quando outras jurisdições estão em causa.
Para não falar da presença e do protagonismo do nosso conterrâneo em todas estas deambulações; ou da forma como ele exibe a sua Bíblia sempre que é necessário confirmar uma tese (não me parece muito verosímil que um vulgar cidadão ande sempre com uma Bíblia consigo!).
Para não falar, acima de tudo, do facto de o historiador conseguir liquidar um indivíduo treinado nas forças especiais israelitas: “uma vez infiltrou-se sozinho numa gruta e, armado apenas com uma faca de mato, eliminou um pelotão inteiro de mudjahein.” (p. 517) Ora, neste caso, “o que salvou Tomás foi um misto de intuição, comportamento preventivo e reflexos rápidos.” (p. 520) Uma receita que, por certo, nenhum dos mudjahein tinha… Confesso que conheço muitos historiadores, mas não creio que nenhum deles fosse capaz de semelhante proeza!
Poder-se-ia falar ainda de uma certa “ligeireza” na evocação histórica; por exemplo, “Jesus admite que gostava da pingoleta e que era um bom valente garfo!” (p. 271) “ele [Jesus] veio das berças! … onde só havia pacóvios.” (p. 278) “Jesus e seus apóstolos. Ou seja, um bando de provincianos. … Como eram cegos aqueles labregos!” (p. 339) Se esta é a forma de um erudito abordar um tópico da sua especialidade, então estamos falados!
O delírio está, todavia, reservado para o final: o ADN de Cristo foi recuperado e Ele será objeto de clonagem. E mais não digo!
Não pude evitar de soltar uma gargalhada quando cheguei a este passo. Um dos meus filhos que passou nessa altura pelo escritório, perguntou-me por que razão estava eu a rir. Expliquei-lhe porquê e ele retorquiu: “Não é verdade! Estás a brincar!” Assegurei-lhe que era verdade, isto é, era o que eu tinha lido. E ele acrescentou: “Mas isso é Dan Brown for dummies!” Dan Brown para tontos, portanto.
Considerando que apesar da destruição final, ainda “sobreviveram dois tubos de ensaio”, fica aberto o caminho para uma sequela.
Mário Avelar, Professor Catedrático de Estudos Anglo-Americanos