«A lição, enquanto não tivermos vacina, é cuidado, cuidado» – Manuel Lemos

Presidente da União das Misericórdias Portuguesas há 13 anos, Manuel Lemos fala sobre o impacto da pandemia e a necessidade de mudar o olhar sobre a situação dos mais velhos

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: RR

A esta distância do início da pandemia já é possível avaliar o que tem corrido menos bem?

Queria começar por dizer que, de facto, ninguém estava preparado para esta pandemia. Ninguém no mundo inteiro e também, naturalmente, em Portugal. O que não admira, porque a última grande pandemia que tivemos foi no princípio do século passado – a pneumónica – e de lá para cá, sobretudo em Portugal, não tivemos grandes pandemias. Nada com o impacto que esta teve e essa foi uma primeira constatação para verificarmos que as coisas não podiam ter corrido logo bem. Depois, centro-me só num aspeto, algo que nós na União das Misericórdias vínhamos a falar há já alguns anos e que ficou evidente: a falta de articulação entre os órgãos do Estado, nomeadamente entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Segurança Social. Isso foi muito evidente. Foi talvez aquilo que correu menos bem, neste processo. Felizmente, muitas outras coisas correram bem.

 

2020 é um ano que vai ficar na história. O que é que foi possível aprender com este ano e como é que a sociedade portuguesa deve passar a olhar para os mais velhos?

Foi necessário aprender a evidência de que os mais velhos estão desprotegidos. Não estão tão protegidos como nós gostávamos. Embora, também é preciso dizê-lo e sermos razoáveis nisto: se compararmos por exemplo o que aconteceu em Portugal nos lares com o que aconteceu nos outros países da Europa, é absolutamente fantástico o que conseguimos, quer em número de óbitos – mesmo que incluamos aqui os óbitos nos lares ilegais, que têm uma percentagem muitíssimo elevada. Os números que me foram transmitidos pela senhora ministra é que Portugal tinha uma taxa de óbitos à volta dos 32%, o que não tem nada a ver com os 50% da Espanha, da Itália, ou 60% da Inglaterra. Portanto, apesar de tudo houve alguns fatores que merecem reflexão: como é que Portugal, um país mais pobre, em que a comparticipação do Estado é de cerca de 400 euros por mês, e em Inglaterra é qualquer coisa como 1600 euros por quinzena, estamos a falar de 3200 euros por mês…

 

Então como se justifica esse “sucesso”? Sucesso relativo, porque estamos a falar de mortes…. 

É de facto um sucesso relativo. Eu penso que é a estrutura das instituições da cooperação de uma maneira geral, e das misericórdias em particular: a sua ligação às comunidades. Vocês deram conta e as televisões mostraram com imagens: nos lares em Itália ou Espanha os colaboradores fugiam, pura e simplesmente tinham medo e abandonavam…

Aqui em Portugal isso não aconteceu, não tenho nenhuma notícia que isso tenha acontecido. O que tem muito a ver com a capilaridade das nossas instituições. Isto é, quem é que está nos lares? Qual é a relação que existe entre a comunidade e os que trabalham e as pessoas que estão nos lares? É o pai, é a mãe, é o avô, é a avó, é o padre que os casou, é o padrinho, é o pai do melhor amigo…..  isso fez com que as pessoas, que tinham o mesmo medo, os colaboradores, que tinham o mesmo medo, conseguissem ultrapassar esse medo para cuidar das pessoas e isso foi fundamental.

 

Para quem, como o presidente da União das Misericórdias, tem de acompanhar a realidade de tantas instituições. Identifica os momentos mais difíceis de 2020?

Eu acho que foram os primeiros casos, em que nós não sabíamos de todo lidar com eles. E aí eu queria dizer que os provedores, mas também os dirigentes das IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) e os colaboradores, como acabei de dizer, foram verdadeiros heróis do quotidiano, porque estiveram lá, não arredaram pé. Os trabalhadores – e houve provedores que fizeram a mesma coisa – meteram-se dentro das instituições, ficaram lá às quinzenas. Deixaram as famílias em casa e esse foi um momento muito difícil.

Depois, houve algo que saiu na comunicação social e que causou muita impressão, aquelas barras gordas que as televisões tinham com o número de idosos mortos. E começou aí um debate, quase que um debate surdo, sobre se as instituições do sector social teriam ou não capacidade para lidar com a pandemia, e quase foi posta em cima da mesa uma ideia de que caberia ao Estado. E esse foi também um momento difícil, porque nós percebemos rapidamente de que a nossa realidade era bem melhor do que a dos outros países e que as instituições estavam a conseguir esse resultado fantástico, que naturalmente pela sua própria natureza nunca poderia ser conseguido pelo (setor) público. Foram dois momentos muito difíceis. Tudo acrescido com a falta evidente dos equipamentos de proteção individual e a dificuldade financeira que as instituições tiveram em ultrapassar estas questões.

 

 E houve aquela grande dificuldade com os testes…

Isso já foi num segundo momento.

 

Cada surto num lar é um momento de grande angústia para os seus responsáveis… Que lições foram retiradas destas situações para que elas possam ser uma situação do passado e não se repitam alguns erros que se tenham cometido?

Enquanto não houver a vacina – e também vamos ver como as pessoas vão reagir à vacina -, a lição é que não há outra maneira de evitar o vírus que não seja fugir dele. E como é que foge dele? confinando-nos. Ora, isso não é possível de se fazer durante muito tempo em nenhuma sociedade. Para fugir era preciso quase, que durante um período enorme – impensável, irrealizável – os cuidadores e os cuidados vivessem no mesmo ambiente e não saíssem dali. Isso até começou a trazer problemas que vocês também relataram da circunstância da necessidade de psicólogos e de outras categorias profissionais que pudessem ultrapassar isto. Porque as pessoas gostam de estar umas com as outras. Portanto, a lição, enquanto não tivermos vacina, é cuidado, cuidado. Todas as precauções são boas. Nós Estamos aqui no estúdio de máscara. É quase uma disciplina que é importante ter. É como pôr o cinto no carro quando a gente se senta.

 

O Papa Francisco tem insistido na necessidade de uma maior atenção e cuidado aos mais desfavorecidos. O Papa fala mesmo de uma cultura do cuidado. Este é um conceito que de alguma forma é a cara das misericórdias?

E é por isso que o Papa Francisco – presumo eu não conhecendo a realidade das Misericórdias portuguesas, para além daquilo que tivemos oportunidade de lhe dizer nos encontros que tivemos – tem a perceção de que a cultura do cuidado é um valor absoluto, que em Portugal – não só pelas Misericórdias, mas também por outras organizações – nós fomos desenvolvendo. E é isso porventura que explica o relativo sucesso em termos de cuidados que nos fomos prestando.

 

Foto: Presidência da República

Em finais de outubro, e depois de uma audiência em Belém, a União das Misericórdias Portuguesas dizia que pedidos de ajuda de famílias tinha aumentado e que essa era uma preocupação. Falou de um agravamento «visível» da crise. Subsiste o problema? As medidas económicas criadas pelo Governo têm sido eficazes? Subsiste o problema? As medidas económicas criadas pelo Governo têm sido eficazes?

Com certeza, todas as medidas ajudam. Neste momento, a minha evidência era sobretudo para aquilo que poderíamos chamar dos arcos das cinturas dos grandes centros urbanos de Lisboa e Porto, nomeadamente, e como sempre aconteceu no distrito de Setúbal, onde os provedores relatam com muita veemência o aumento de pessoas que procuram as Misericórdias para as respostas habituais em tempo de crise que as misericórdias vão prestando. Valia a pena também olharmos para esse outro lado da pandemia, que é a circunstância de tendo fechado muitas empresas e algumas terem começado a fazer desempregos em massa, isso ia bater obviamente como sempre bate nas misericórdias. Quer dizer, no fim da linha lá estamos nós para ajudar. Portanto, penso que as medidas do Governo serão todas boas, não sei se serão todas suficientes. Mas serão seguramente todas boas.

 

O Orçamento de Estado (OE) para 2021 passou mesmo ao lado do setor social como afirmou?

Eu percebo que sem economia, e sem uma economia crescente, o Estado tem menos recursos para apoiar as pessoas. A questão é que se fala sempre do Estado Social como um subproduto disso. Nas sociedades desenvolvidas, o setor social não pode ser um subproduto disso. Tem de ser um parceiro, a par do setor económico.

A minha reação surgiu porque no trabalho do professor Costa e Silva, tem três linhas… e a propósito de uma questão, relevante mas não absoluta, que é o aumento de camas, a necessidade de aumentar as camas de cuidados continuados. Isso mostra que, ao nível das medidas a tomar, não é assumido – não estou a dizer que não percebe do assunto, porque até é uma pessoa inteligente – quase como uma prioridade. Se ele dissesse que falta uma parte social que caberá a outros fazer… já ficávamos contentes. Percebemos que o que lhe foi pedido foi falar sobre a parte económica.

 

Ao olhar para uma das situações que vai marcar os próximos meses, que papel é que o terceiro setor pode ter no plano de vacinação?

Nós cooperamos com o Estado com aquilo que ele nos entende, a cada momento, pedir. Já tive uma reunião com o doutor Francisco Ramos – pessoa que estimo e conheço há muitos anos – e já conversamos como fazer a vacinação nos lares, que é uma prioridade. Já lhe disse que estaríamos disponíveis, na medida em que ele necessitasse, para recorrer a nós. Cá estamos, se houver alguma sugestão boa que pudermos dar, daremos com certeza…

 

A vacina será mesmo a solução para todos os problemas? Quais as suas expetativas para 2021e que mudanças espera na sociedade, sobretudo depois da vacinação?

Uma vez li num livro que uma das grandes lições da história é que os homens não aprendem com as lições da história. Sou otimista por natureza, mas isto até parece um lado menos positivo. Todavia penso que alguma coisa vai ter de mudar nesta matéria. Atualmente, temos uma opinião pública muito mais aberta para ouvir, quando os representantes do setor social dizem que temos de olhar para os idosos. Os idosos têm de ser mais bem tratados e a rede de cuidados continuados não pode estar como está. Ou que temos de olhar para a sustentabilidade das Instituições, que o Estado se fosse a fazer isto gastava 3 vezes ou 4 vezes mais…

Nesta matéria, nós não nos calaremos e penso que a opinião pública vai olhar para nós com mais atenção. Estou convencido que os políticos, nessa matéria, vão reagir positivamente. Não tenho dúvidas.

 

Um dos assuntos abordados nesta entrevista foi o papel dos trabalhadores das misericórdias na resposta a esta pandemia. Nalgumas circunstâncias, estes têm vindo a manifestar o seu descontentamento face ao rendimento e ordenados que auferem. Qual o esforço possível para melhorar as condições de muitos trabalhadores que recebem o salário mínimo nacional?

É óbvio que uma das coisas que tem de mudar é o modelo de financiamento. O modelo de financiamento das instituições vai obrigar… Todos os anos, como é que se negoceia? Qual o valor do ano anterior? Quanto vamos aumentar 2%, 3%? Eu pergunto: a que é que isso corresponde? Não corresponde a nada.

Quando o Pacto de Cooperação para a Solidariedade – a magna carta da nossa relação com o Estado – foi celebrado, faz agora 25 anos, era Primeiro-Ministro o engenheiro António Guterres. Ele disse, nesse ato de posse, que o Estado devia pagar no mínimo 50% do custo da resposta e, desejavelmente, 60%. Atualmente, estamos em 37,38%. E estamos a valores de 2018, porque em 2020 ainda não temos contas prontas. Portanto, vai para 34, 35%, por causa dos custos dos Equipamentos de Proteção Individual, etc.

Quanto custa cuidar de um idoso hoje? E quanto custa cuidar desejavelmente?

A parte de leão desse trabalho tem de ser para pagar aos nossos colaboradores. Os nossos trabalhadores estão, de facto, muito mal pagos. O salário mínimo em muitas instituições é o salário médio: isso é inaceitável.

Isso só é possível se o Estado assumir a sua responsabilidade nessa matéria. Se não assumir, temos todos de repensar… A tal questão, o que é que tem de mudar, com a opinião pública, os próprios sindicatos. Nós não queremos ganhar dinheiro, queremos o valor justo do custo de uma resposta social.

Os colaboradores, repito, foram uns heróis neste processo. Continuam a ser, todos os dias.

 

Há pouco mais de um ano tomou posse para um novo mandato. Prevê que seja o último?

É com certeza o último. Já são muitos anos e temos de ter a consciência daquilo que somos capazes de fazer. A renovação e a chegada de gente nova com pensamento e disponibilidade são essenciais – e penso que há no seio das Misericórdias, e logo a partir da minha equipa, pessoas capazes de continuar. Isto não é um movimento de uma pessoa. É um movimento de um país, de uma comunidade, de uma história.

Estou muito orgulhoso e honrado por ter estado estes anos e levar o mandato até ao fim. Acho que há um tempo para tudo. Se calhar este mandato já foi excessivo, mas as pessoas pediram e eu disponibilizei-me. Penso que é tempo de mudar…

 

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