Sobretudo na Europa, estamos a viver tempos de grande indiferença religiosa. Apesar da pandemia, onde se proclamou apressadamente que poderíamos assistir a um regresso a Deus, pelo profundo impacto nos alicerces e razões mais profundas da vida, a verdade é que perdura a convicção de que se pode viver perfeitamente sem uma referência divina e sem qualquer relação com o transcendente. Para muitos, a religião é uma perda de tempo ou até um adorno desnecessário, ainda assim útil, dirão alguns, para se ir enterrando os mortos e para se ir tendo algum consolo nas agruras da vida. Sinais dessa indiferença é a facilidade com que hoje muitos se dizem agnósticos ou católicos não praticantes, que são a esmagadora maioria da sociedade. Há o agnóstico que anda à procura, e por este tenho um grande respeito, mas há o agnóstico que se está nas tintas, que habilmente usa a palavra para não dizer que não se importa nada com Deus nem com a religião. É o caso da maioria dos ditos agnósticos. Quanto aos católicos não praticantes, é uma fórmula cómoda e incoerente que se criou para se dizer o mesmo, mas mais grave ainda, porque não se vive aquilo que se professa, no sentido em que o Cristianismo é um seguimento e uma relação viva com Jesus Cristo e com a Igreja. Isto vive-se e pratica-se, não se fica a ver viver e praticar. Para que é que serve uma fé num Deus a quem não dou importância nenhuma na minha vida do dia-a-dia, com quem não falo e a quem não escuto? Enfim, está aí a indiferença religiosa, em vários sentidos e com vários rostos.
São muitas as causas que apontam para a indiferença religiosa: as más práticas das religiões, que, por vezes, parecem contribuir mais para o obscurantismo e a escravidão do que para a liberdade e a verdadeira realização das pessoas; o contratestemunho e as ações imundas das religiões e seus seguidores, que, de facto, existiram e existem; o seu imobilismo, resistência à mudança e desfasamento face à evolução da vida e dos tempos; o pensamento débil e o comodismo do mundo atual, que não quer saber de grandes ideais e compromissos, nem de grandes inquietações e destinos, que não busca as razões mais profundas da vida; a ligação das religiões com a violência, que está infelizmente na ordem do dia e não deixa de ser uma escandalosa incoerência e um doloroso contratestemunho, entre outras. Aceito que tudo isto gere alguma resistência à religião e não convide muito à vivência religiosa. Mas não justifica tudo. Os clubes de futebol têm muitos maus exemplos e muitos atos reprováveis e não param de ter adeptos aguerridos e ululantes. Bem pelo contrário. Os partidos políticos fartam-se de acumular incoerências e imoralidades e não deixam de ter seguidores. Se as pessoas deixam de ser católicas por causa das desonestidades e das incongruências do catolicismo, então têm de deixar de ser muita coisa, mas, pelos vistos, só deixam o que lhes interessa e selecionam sem grande racionalidade.
A questão é que a causa para muita indiferença religiosa é bem mais profunda. O homem é um ser religioso. Sente a necessidade de procurar e de se relacionar com alguém que o sacie e lhe mate as suas sedes e as suas fomes. Alguém totalmente outro que dê consistência à vida e que a torne uma experiência plena, eterna e fecunda. Tem vida interior que apela para vivências mais profundas e para a busca de sentido e de espírito. O homem atual deixou de sentir isto? É claro que não. Isto está é anestesiado e adormecido nas pessoas. A religião seguiu um caminho errado, caminho que ainda está muito longe de ser corrigido. O ser humano tem tendência a fabricar materialismos religiosos e religiões materialistas. Com o tempo, contagiando tudo e todos, o ser humano é levado a materializar a sua religião e a sacralizar os seus materialismos. Repare-se, por exemplo, segundo o que ouvimos, no que as pessoas vão buscar a Fátima: cura de uma doença, sucesso de um empreendimento, triunfo nos exames, vitória do seu clube, sucesso na vida e nos negócios, emprego, entre outros. Como dizia D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, «para muitos cristãos católicos a religião não tem nada de transcendente». É útil para resolver problemas e dificuldades. Só andamos de roda de Deus para termos proveitos materiais. É o que é mais frequente na vivência religiosa. Pouco a pouco, fomos limitando a religião a esta prática materialista e interesseira. Muitos católicos, possivelmente, rezam porque têm interesse em obter coisas de Deus. Sinal claro disto mesmo é que quando há guerra, as igrejas estão cheias de fiéis, que esquecem imediatamente esse caminho logo que regressa a paz ou a abundância, a prosperidade e a riqueza.
O facto de a religião se apresentar como conquistadora e distribuidora de vantagens materiais contribuiu muito para a indiferença religiosa. Alguns perguntarão: mas então Deus não é Pai e não tem prazer em dar coisas? Certamente que tem. Mas abusou-se e abusa-se desta prática, de tal forma que a religião se impôs pelo seu carácter utilitário e a prática religiosa tornou-se um fazer isto para ter aquilo ou dar tanto para ter tanto, uma negociata e jogo de interesses, em que só se busca a realização dos interesses materiais. Só que a religião não pode reduzir-se nem degenerar num conjunto de pedidos materiais, fazendo-se de Deus um grande distribuidor sobrenatural de vantagens materiais. A oração torna-se, assim, um discurso interesseiro. A busca de aspirinas celestes. Foi este caminho errado que as religiões trilharam. Ora, adquirindo-se as vantagens materiais, Deus torna-se um Deus inútil, um Deus que sabemos estar ali, mas ao qual não damos nenhum lugar, nenhuma atribuição na nossa vida. Um Deus a quem já não se reza ou quase já se não reza. Depois que se desenvolveram os meios técnicos, o homem pede aos técnicos muitas coisas que outrora pedia a Deus. Repentinamente, deixou de se ocupar com Deus. Parece-lhe desnecessário para a sua vida quotidiana, a não ser para quando todos os meios técnicos falhem.
As religiões, têm, assim, de sanar este grande equívoco, esta grave deturpação da vivência religiosa, têm de proceder à desmaterialização do seu discurso e das suas promessas e da sua configuração utilitária, que as desfigura, e que, infelizmente, ainda aí anda muito na pregação religiosa. A grandeza da religião está na relação mística com Deus que ela oferece aos crentes, onde o homem verdadeiramente se realiza e satisfaz, porque o homem realiza-se no seu estar e ser e não no seu ter.
A celebração de mais um natal acalenta em mim a esperança de que este Deus menino incarnado vai conquistar o coração de mais alguns. Mas continuam a verificar-se as resistências do seu nascimento histórico: teve de nascer num estábulo, sem grandes meios e sem grande atenção, visitado, primeiro que tudo, pelos mais simples e humildes da terra. Ainda hoje, está a passar ao lado de muitos, os grandes estão muito ocupados com os seus projetos de poder e de riqueza, de violência e opressão. Se muitos soubessem o quanto Ele tem para oferecer…Bom Natal.