A Igreja na cidade dos homens

Encontro do bispo de Santarém com os autarcas da diocese 1. Razões deste encontro. É uma honra para a Diocese e um gosto para mim e para os meus colaboradores mais directos, receber tão ilustres visitantes nesta antiga e austera Sala de Actos, lugar de celebração de muitos eventos não só da Igreja como da sociedade, especialmente da cidade de Santarém, que através de variados órgãos ou associações a requisita. È o nosso salão nobre, com uma nobreza que vem dos muitos momentos solenes aqui comemorados e para a qual vós contribuis também com a vossa apreciada presença. Este convite dirigido às autoridades autárquicas para partilhar da alegria do nosso trigésimo aniversário da Diocese de Santarém, tem um contexto e uma razão: Antes de mais agradecer e retribuir o acolhimento atencioso e cordial que tenho recebido da parte de todos vós. Tenho como propósito, sempre que vou visitar as comunidades cristãs, ir cumprimentar as autarquias para manifestar o meu apreço e reconhecimento a todos aqueles que são escolhidos pelos cidadãos para servir o bem público e desenvolver a qualidade de vida das populações. Nestas visitas às autarquias, sempre tenho recebido um tratamento muito gentil e cortês. A visita ajuda a estabelecer uma relação amistosa, cria laços de estima, de diálogo e de colaboração em assuntos vários que interessam o bem das comunidades e que dependem de ambas as entidades – autarquias e Igreja. Nestes encontros tomamos consciência de que estamos ao serviço das mesmas pessoas. Somos responsáveis por cuidar de dimensões diferentes mas também complementares dentro de uma visão global da qualidade de vida das pessoas e da sociedade. De facto, a qualidade de vida abrange não só a dimensão económica e política mas igualmente a dimensão ética, a integração e boa relação social assente no respeito mútuo e na solidariedade, a dimensão espiritual, alicerce sólido e centro unificador de todas as outras. Descobrimos, desta forma, que temos algo em comum: Estamos ao serviço das mesmas pessoas. A autoridade, que somos chamados a exercer, não é um poder que nos torna privilegiados. É um serviço que exige disponibilidade e dedicação responsável. Para além deste motivo pessoal, tenho conhecimento da colaboração institucional em várias áreas que tocam as paróquias e as autarquias, como: Restauro do património, embelezamento dos adros, apoio a iniciativas de formação juvenil, etc. Por isso, celebrando os trinta anos gostaria de associar a este momento festivo as autarquias para lhes manifestar a minha estima e apreço pela forma sacrificada como se dedicam ao serviço da sociedade, da qual a Igreja faz parte e na qual procura colaborar. Desta vontade nasceu este convite para um concerto na Sé, Igreja que ocupa um lugar central em todas as paróquias: É a Igreja Mãe, onde são ordenados os presbíteros e onde decorrem os principais acontecimentos da vida diocesana. Pensámos num encontro informal e simultaneamente festivo que fosse um momento de convívio, de melhor conhecimento mútuo, de cultura e que, deste modo, se tornasse ponto e partida para um diálogo sobre uma melhor parceria e articulação mais eficaz em várias esferas da vida social que nos são comuns. A solução de alguns problemas será mais beneficiada se houver melhor conjugação de esforços como, por exemplo, no apoio aos necessitados, no socorro às vítimas de calamidades (Deus não permita… mas às vezes acontecem). Várias áreas exigem mesmo entendimento e colaboração, como: o restauro, conservação e fruição do património cultural; o cuidado da infra estruturas (adros, casas mortuárias, espaços para o Escutismo ou outros movimento juvenis); instituições de solidariedade; espaços comunitários; etc. Um exemplo recente exemplifica as vantagens da colaboração: A exposição de arte sacra sobre o Espírito Santo no Seminário, em Santarém. Nem a Câmara Municipal nem Igreja, só por si, isoladamente, teriam organizado esta iniciativa com a mesma qualidade e adesão de visitantes. 2. Um relacionamento diferente. Esta colaboração é hoje possível realizar-se sem confusões. Alcançámos, na verdade, em relação ao passado, uma atitude diferente no relacionamento entre a Igreja e o Estado. Muitas vezes, em tempos passados, estas Instituições estiveram de costas voltadas e mesmo em conflito. Possivelmente por circunstâncias históricas diferentes e por culpa de um lado e do outro. Actualmente alcançámos, a nível social, eclesial e político, maturidade democrática que nos permite respeitar, sem intromissões nem confusões, as respectivas áreas de intervenção e conjugar os nossos contributos diferentes para o desenvolvimento global da sociedade e da pessoa. Da parte da Igreja houve uma mudança profunda de atitude a partir de um acontecimento de que hoje celebramos o quadragésimo aniversário: a 8 de Dezembro de 1965 celebrava-se a clausura do Concílio Vaticano II que marcou uma viragem profunda em muitas atitudes da Igreja. Lembro resumidamente alguns aspectos que marcam um estilo novo: a)- Uma atitude diferente para com a cultura moderna e as sociedades democráticas. Atitude de diálogo, solidariedade e colaboração. Na fidelidade às origens do cristianismo, a Igreja abre as portas ao mundo, procura desempenhar a missão que recebera do Seu Senhor: Ser luz e fermento de um mundo melhor, sinal e instrumento de união entre todos os homens, espaço e fermento da família universal das nações, sem divisão de raças línguas ou povos. O Concílio promoveu igualmente o diálogo com a cultura e com as outras confissões cristãs e religiosas, dando atenção e apoio ao movimento ecuménico. A introdução do documento conciliar que aborda o papel da Igreja no mundo (Gaudium et Spes), manifesta bem a atitude de abertura e solidariedade: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e dos aflitos, são também as alegrias e as esperanças de todos os discípulos de Cristo e não hoje nada verdadeiramente humano que não tenha ressonância em seu coração” (GS 1). Esta mudança encontrou eco na sensibilidade dos responsáveis das nações. O sinal mais notório foram as exéquias do Papa João Paulo II com uma presença de líderes mundiais nunca vista até então. b)- No interno da Igreja operou-se também uma mudança de imagem ou de modelo. Na fidelidade às origens, passou-se do modelo societário ao modelo comunitário: Enquanto no passado se destacava a Igreja como uma sociedade, hoje procura apresentar-se como “Casa e escola de comunhão” que acolhe, que integra e cria laços fraternos. Esta dimensão adquiriu hoje uma importância especial devido às dificuldades de integração das pessoas numa sociedade onde frequentemente faltam as raízes e as referências c)- Uma maior atenção e compromisso com o homem. O documento atrás citado, (Gaudium et Spes), interpreta à luz da centralidade de Cristo, a condição do homem contemporâneo, a sua vocação e dignidade, assim como os âmbitos da sua vida: a família, a cultura, a economia, a política e a comunidade internacional. “Esta é a missão da Igreja ontem hoje e sempre: anunciar e dar testemunho de Cristo, para que o homem, todo o homem, possa realizar plenamente a sua vocação” (Bento XVI, alocução de 20 de Novembro de 2005). d)- Autoridade como serviço e não como poder. A autoridade merece-se, alcança-se pela dedicação, pelo apreço pelas pessoas, pela competência. É a autoridade pastoral, do pastor bíblico que, segundo as palavras de Cristo, conhece pelo nome as ovelhas que lhe são confiadas e dá a vida por elas. É a autoridade do amor que se entrega ao serviço. Não é só dos pastores da Igreja que as pessoas hoje esperam este estilo de autoridade merecida pelo serviço. É também, segundo me parece, das autoridades civis de quem muito exigem e a quem nem sempre compreendem. 3. Objectivos comuns: Subjacente à atitude de diálogo e de colaboração, temos objectivos comuns que nos animam: A vida do homem com qualidade e o desenvolvimento global da sociedade. A consecução destes objectivos comuns pode ter na base convicções e pedagogias diferentes. Permiti que refira brevemente algumas convicções da Igreja. É uma base necessária para um diálogo comum. A arte e a cultura que a Igreja criou ao longo dos tempos constituem hoje um património cultural que todos têm o direito de usufruir. São, por isso, uma área sobre a qual é necessário o diálogo e a colaboração das autarquias e da Igreja. Subjacentes a este objectivo comum, podem estar convicções diferentes. Para nós católicos, as obras de arte são expressão e veículos de humanismo, da beleza e da harmonia. Na sua origem, como fonte criativa, está uma cultura, uma concepção de pessoa e de sociedade. A preocupação da Igreja pelo humanismo (“A Igreja é perita em humanismo”, como disse Paulo VI) é consequência da fé em Deus. Deus é a medida do homem e o suporte do humanismo. A morte de Deus tem sido a morte do homem, como constatava um conhecido humanista, por sinal não crente. Face ao crescimento do bem-estar económico e do progresso material verificamos a diminuição do humanismo. O mundo moderno mostra-se mais desumano (a economia acima da pessoa; solidão dos idosos; desigualdades sociais; desconfiança mútua; violência doméstica; crescimento do egoísmo; tumultos nos arrabaldes de Paris). O mundo moderno parece um deserto (vazio de valores, árido de humanismo). Deserto é uma imagem bíblica com actualidade. Muitas pessoas experimentam uma espécie de deserto (aridez e secura espiritual). “Há muitas formas de deserto explicava o Papa na primeira homilia: o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede, o deserto do abandono, da solidão e do amor traído. Existe também o deserto da obscuridade de Deus, do vazio das almas que já não têm consciência da dignidade e do rumo do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo porque se estenderam os desertos interiores. A missão pastoral da Igreja é resgatar as pessoas do deserto e conduzi-las ao lugar da vida”. (Bento XVI). A visão do homem, que é o coração da cultura, condiciona decisivamente a educação, a vida pessoal e social. Na origem de muitas crises da nossa sociedade, está uma visão reduzida do homem, como afirmava João Paulo II. O cristianismo gera um humanismo, uma concepção do homem. A Bíblia refere, a este propósito, o primeiro e o segundo Adão. Cristo é o segundo Adão, o homem na plenitude da perfeição. Verdadeiro Deus e verdadeiro homem, como confessamos no Credo, Jesus Cristo é Filho de Deus, de condição divina e, simultaneamente, profundamente humano, como todos nós. Em Cristo encontramos a perfeição e plenitude do humano. Assim compreendemos a afirmação do Concílio: “O mistério do homem só se esclarece no mistério do Verbo Incarnado… Cristo, o novo Adão manifesta plenamente o homem ao próprio homem e descobre-lhe a grandeza da sua vocação.” (GS 22). A cultura actual, marcada pelo subjectivismo e pelo relativismo, asfixia o homem nos seus limites, deixa-o prisioneiro do seu egoísmo. O cristianismo abre o homem ao mistério, oferece razões e fundamento para a esperança. Promove o seu crescimento global, na atenção a todas as dimensões da pessoa humana, destacando naturalmente a mais esquecida: a interioridade. 4. A Igreja comunidade que integra. A dignidade da pessoa está associada à vida comunitária. Desde as origens, a união fraterna e a partilha caracterizam a vida dos fiéis (Cf Act 2, 42-47). Hoje a integração, sobretudo de imigrantes, tornou-se um problema. Nas sociedades de bem estar cresceu o individualismo e a solidão, bem como a indiferença perante os outros. As pessoas, no entanto, anseiam por comunidades. Esta é uma função importante da Igreja: acolher e integrar os indivíduos em comunidades. Faz parte integrante da sua missão religiosa. O sinal mais importante da fé cristã é a reunião da eucaristia: Uma reunião festiva, transcendente, onde a relação fraterna, a partilha, a beleza do canto, a alegria do encontro manifestam a originalidade do cristianismo. Desculpem esta tendência para a pregação. São tiques do ofício. Desejava apenas partilhar algumas convicções que são premissas para um melhor conhecimento mútuo e para um diálogo e colaboração transparentes. Agradeço uma vez mais a vossa amabilidade e atenção prestada. D. Manuel Pelino, Bispo de Santarém Santarém, 08 de Dezembro de 2005

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