A Igreja e as culturas

Emília Nadal A recente criação de uma Comissão Episcopal da Cultura, junto da Conferência Episcopal Portuguesa, demonstra que existe a preocupação de estar atenta aos sinais dos tempos e de abrir caminhos para novas formas de relacionamento da hierarquia da Igreja com a realidade cultural do nosso país. A Comissão agora constituída poderá contribuir positivamente para a criação de pontos de contacto mais efectivos da Igreja com os vários níveis culturais da sociedade. Porque o Evangelho apresenta um projecto de vida que questiona e transforma as culturas e eleva as relações sociais, a Igreja procurou, ao longo dos séculos, promover a instauração de um projecto de sociedade cristã. A história e a realidade presente demonstram como aquele projecto é difícil e descontínuo e até que ponto os pressupostos culturais de cada época condicionam a sua interpretação e a definição dos meios para o instituir e conservar. Nunca foram fáceis, nem pacíficas, as relações da Igreja com as culturas em geral e com as culturas dominantes em particular. Essa dificuldade tem aspectos singulares em regiões onde a cultura cristã perdeu peso e influência, após ter sido dominante, como é o caso da Europa. Ao abordar genericamente a questão da Igreja e das culturas convém notar que na própria Igreja existem diferentes tipos de cultura: as culturas das diferentes comunidades eclesiais e uma cultura própria da estrutura eclesiástica. As diferenças entre estes dois tipos de cultura dão origem ao primeiro patamar das dificuldades nas relações da Igreja-instituição com as culturas. Como é óbvio, as dificuldades de relação agravam-se quando as culturas das comunidades evoluem muito rapidamente e tarda a leitura e o entendimento dos sinais dos tempos, por parte da hieraraquia. O segundo patamar das dificuldades nas relações da Igreja com as culturas situa-se nas áreas do pensamento, da formulação dos conceitos, e da utilização das linguagens, visto estes estarem dependentes de enfoques ideológicos e culturais diferentes, pelo que só é possível encontrar pontos comuns, nestas áreas, através de um grande esforço de abertura e de discernimento. A tendência das instituições é considerar como mau ou perigoso o que é novo e diferente. A tendência natural do ser humano é ficar tão intimamente ligado aos paradigmas e aos conceitos através dos quais aprendeu a conhecer Deus, o homem e o mundo, que considera um atentado à verdade a alteração dos seus esquemas de representação simbólica. É o paradigma de Galileu, um caso que marcou irremediavelmente a cultura ocidental porque imprimiu o estigma do obscurantismo na imagem da religião. A irreprímivel evolução da cultura laica tende sempre a radicalizar os movimentos de conservação e de auto-defesa no interior das instituições religiosas, como é a Igreja. A dificuldade em articular os planos da tradição e da inovação, e a incomunicabilidade que se estabelece entre as linguagens religiosas e as linguagens científicas, dão origem a fortes sentimentos de desconfiança mútua e a reacções de rejeição e de agressividade entre a Igreja-instituição e as instituições que representam as sensibilidades culturais da sociedade. Tem vindo a crescer, na Igreja portuguesa, a consciência de que é necessário construir novas pontes entre a Igreja e a cultura dominante como contributo para a regeneração da nossa própria cultura e como meio para uma transmissão credível da mensagem cristã às mulheres e aos homens do futuro. Muito trabalho tem sido desenvolvido, ao nível de pessoas, de grupos e instituições da Igreja, no sentido de estabelecer contactos e de promover encontros que permitam um entendimento maior da realidade cultural portuguesa, colmatar fracturas e estabelecer o diálogo entre o pensamento cristão e a sociedade pós-cristã. É necessário, porém, que essas realizações ultrapassem os círculos restritos, geralmente a nível superior e universitário, e produzam efeitos concretos nos outros extractos do tecido eclesial e eclesiástico, nomeadamente nas bases da Igreja. Importa colmatar a distância que existe entre uma cultura cristã superior e especializada e uma cultura devocional primária que frequentemente ronda a superstição e que segue os modelos e as linguagens da cultura sub-urbana, de massas, geralmente de importação. A criação de pontes mais eficazes e credíveis entre a Igreja e as culturas dominantes poderá passar, em grande parte, pela elevação do nível daquela sub-cultura recorrendo a canais intermédios de comunicação que, como sucede actualmente na área científica, traduzam os conhecimentos teológicos em linguagens menos técnicas e mais comuns, ao nível dos conceitos. A expressão litúrgica e as suas linguagens são factores imediatamente identificadores da cultura da Igreja. Sem diminuir as acções e as preocupações de natureza social – que são actualmente o ponto de encontro entre a cultura da Igreja e a cultura dominante na sociedade-, a Igreja deve revalorizar a qualidade e a eficiência das suas expressões catequé-ticas e das suas linguagens litúrgicas, contribuindo objectivamente para elevar o nível espiritual de toda a sociedade, orientando-a para o essencial que é Deus. Emília Nadal

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