A humanização do olhar

Octávio Carmo, Agência ECCLESIA

“Soltou um grito de morte,

O mundo calou.

Duas feridas nasceram nas palmas das mãos.

Um fiel esconjurou,

Um outro perdeu a fé,

Mas um terceiro chorou de compaixão”

(Kiko Dinucci)

 

Quem me conhece, sabe quanto gosto de música brasileira. Este ano fui convidado para falar no XV Encontro Nacional da Pastoral Penitenciária e, enquanto pensava no que havia de dizer, esta música do disco “Rastilho” – aparentemente tão distante da minha construção teológica – tomou conta do meu pensamento.

Podemos perguntar-nos: o que é que chorar de compaixão resolve na prática? Temos muito a tendência de quantificar a vida, divinizar os números, saber o que se ganha com isso.

A palavra compaixão aponta para um conceito central do atual pontificado, que é a Misericórdia. Ser movido pelo coração diante do outro. Não com as nossas ideias, com os nossos preconceitos, os nossos medos, mas pelo amor.

Reconhecer o outro como pessoa: é isto que comove quem vê no outro o seu próximo, como ensina a parábola do Bom Samaritano. É o que o Papa diz quando pede o fim da “cultura do adjetivo”, considerando necessário “ir ao nome da pessoa” e conhecer o que cada um carrega no seu coração.

Começamos a ver uma pessoa que está doente e não apenas a sua doença; a pessoa que está presa e não apenas o seu eventual crime; deixamos de olhar para a pessoa a partir de uma perspetiva de falha, de dificuldade. O que o Papa nos ensina é que é preciso respeitar a pessoa,  na sua circunstância. É impressionante ouvir Francisco dizer que quando vai a uma prisão ou se encontra com reclusos, pensa: “Por que eles e não eu?”.

Eu não sei se todos fazemos este exercício de nos questionarmos: “Por que eles e não eu?”. No fundo, achamo-nos distantes desta realidade: se as pessoas estão presas é porque mereceram, alguma coisa fizeram e têm de ser afastadas. É a desumanização do próximo.

A grande lição do pontificado, nesta área, como em tantas outras, é a humanização do olhar: nunca deixarmos de ver o outro como nosso semelhante. E, do ponto de vista da fé, ainda é mais profundo do que isso: é a imagem e semelhança de Deus.

Isso remete-nos para um texto central no pontificado, o capítulo 25: “Quando é que te vimos doente ou na prisão e fomos ter contigo?”. A resposta é clara e inegociável: “Quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes”.

São estes os critérios do julgamento divino sobre a nossa vida. Talvez sejam surpreendentes pela sua simplicidade e pelo quanto despem a vivência da fé de tantas regras e prescrições que parecem acompanhar todo e qualquer gesto do quotidiano. Os benditos do Pai são aqueles que visitam presos e doentes, dão de comer a quem tem fome, acolhem o estrangeiro – essa é a carta magna do Cristianismo.

Duas feridas nasceram nas palmas das mãos”.

Estes dois sinais, que geram medo, repúdio, mas também compaixão, remetem para uma configuração particular com Cristo, com as chagas da sua crucifixão. Jesus foi preso, julgado e condenado à morte pelos poderes legítimos do seu tempo. Foi executado, numa cruz, segundo a Justiça da altura, por ser considerado um criminoso.

Na prisão, há uma configuração objetiva com o sofrimento de Cristo. É um conceito espiritual e teológico muito importante. Também aqui é precisa uma educação do olhar da fé.

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