A estrada de Damasco no ano paulino

Muito se tem escrito e falado sobre a conversão de S. Paulo a propósito deste ano paulino, mas pode acontecer que nos fiquemos a considerar o caminho de Damasco numa perspectiva alheia a cada um de nós e como se a sua conversão não tivesse nada a ver connosco. Neste momento do ano dedicado a S. Paulo, já sobra falar de questões como as relacionadas com a topografia paulina, a data e o número das Cartas e tantas outras coisas. Mas nunca será demais acentuar a natureza daquela conversão que veio a revolucionar não apenas a alma ardente dessa extraordinária figura de apóstolo, um autêntico «gigante, não só pelo seu apostolado concreto, mas também pela sua doutrina teológica, extraordinariamente profunda e estimulante» (Bento XVI, 15-XI-2006). A sua conversão veio a revolucionar também o mundo numa guerra de paz, que procede de fazer morrer o homem velho que há dentro de cada um, para se deixar transformar na imagem do Senhor (cfr 2 Cor 3, 18), segundo o plano eterno de Deus, que nos criou à sua imagem e semelhança (cfr Gn 1, 26-27). Para Saulo, porém, a conversão não foi um «voltar à resposta», como ainda hoje os judeus designam a conversão (hazar vethexuváh). Não foi um voltar para trás, mas sim um avançar em frente, na direcção do futuro do Povo da Aliança anunciado pelos Profetas. Ele não precisou de abandonar a fé de Israel, de que era um zeloso observante. Quando Paulo vier a lutar pela liberdade em face da Lei Antiga, ele não a rejeita, apenas não tolera que esta se imponha aos cristãos vindos dos gentios, como um meio de salvação. O que nós hoje chamamos a conversão de Saulo foi preferentemente uma iluminação (cfr 1 Cor 4, 6) e revelação (cfr Gal 1, 16) – tão rica como intensa –, que lhe fez ver não apenas que Jesus estava vivo, mas sobretudo quem era Jesus, o que representava para ele e para toda a humanidade. Por outro lado, esta conversão foi a investidura numa nova missão, que já não era a de perder o tempo a esquadrinhar preceitos sobre preceitos, mas a de anunciar Cristo e a sua salvação, que não provinha senão de Deus: non volentis neque currentis, sed miserentis Dei (Rom 9,16 – «Não depende de querer nem de correr, mas de que Deus tenha misericórdia»). A sua vocação de Apóstolo era indiscutível e não a recebia de mais ninguém, só de Cristo. Assim diz aos Gálatas: «Mas, quando aprouve a Deus – que me segregou desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça – revelar o seu Filho em mim, para que eu O anuncie como Evangelho entre os gentios, já não fui logo consultar criatura humana alguma, nem subi a Jerusalém para ir ter com os que se haviam tornado Apóstolos antes de mim». A conversão é para ele a descoberta da sua vocação de apóstolo. «A sua conversão não foi o resultado de pensamentos ou reflexões, mas fruto de uma intervenção divina, de uma graça divina imprevisível» (Bento XVI, 25.10.2006). Ele mesmo chamar-se-á explicitamente a si «apóstolo por vocação» (Rm 1, 1; 1 Cor 1, 1) e «apóstolo por vontade de Deus» (2 Cor 1, 1; Ef 1, 1; Col 1, 1). E a sua resposta à vocação foi duma generosidade sem limites. Nada nem ninguém podia reter o seu ardor. Paulo não se converteu simplesmente num fã de Cristo; ele tornou-se um apaixonado de Cristo; ele não foi um mero entusiasta ao sabor de emoções. A emoção do caminho de Damasco não podia ter sido mais forte e não a poderia jamais esquecer. Mas esta nunca se reduziu a uma feliz recordação. Paulo está enamorado de Cristo! Ele não percebeu somente que Jesus estava vivo. Ele captou que Jesus o amava pessoalmente, ao ponto de se ter entregado por ele a uma morte inconcebível, a morte de cruz: «dilexit me et tradidit semetipsum pro me» (Gal 2, 20 – «amou-me e entregou-se por mim»). A sua visão de Cristo não ficou a ser um facto do passado, mas manteve-se viva no seu espírito, iluminando toda a sua vida. Quando diz que viu Jesus, alude a uma situação permanente, por isso usa o verbo grego no perfeito, (1 Cor 9, 1 – «fiquei a ver»). Ao ler o relato da conversão de Saulo em Actos dos Apóstolos (cfr 9, 1-19; 22, 3-21; 26, 4-23), «o leitor médio é talvez tentado a deter-se demasiado nalguns pormenores, como a luz do céu, a queda por terra, a voz que chama, a nova condição de cegueira, a cura e a perda da vista e o jejum. Mas todos estes pormenores referem-se ao centro do acontecimento: Cristo ressuscitado mostra-se como uma luz maravilhosa e fala a Saulo, transforma o seu pensamento e a sua própria vida. O esplendor do Ressuscitado torna-o cego: assim vê-se também exteriormente o que era a sua realidade interior, a sua cegueira em relação à verdade, à luz que é Cristo. E depois o seu “sim” definitivo a Cristo no baptismo volta a abrir os seus olhos» (Bemto XVI, 03.09.2008). A propósito da conversão do Apóstolo, o santo Padre observa também que Paulo encontrou a Igreja antes de encontrar Jesus, e isto foi um contacto contraproducente, não suscitando adesão, mas uma violenta rejeição. A adesão de Paulo à Igreja realizou-se por meio duma intervenção directa de Cristo, que, ao revelar-se-lhe no caminho de Damasco, se identificou com a Igreja e lhe fez compreender que perseguir a Igreja era persegui-lo a Ele, o Senhor. Termino como afirmava no início: a conversão de Paulo tem que ver com cada um de nós; ela constitui um forte apelo a que não adiemos a nossa própria conversão. Vejamos como S. Josemaria actualiza para nós hoje aquelas palavras de Ananias a Saulo de Tarso em Act 10, 22, 14-16: «E agora, por que esperas? (Quid moraris?) Levanta-te, recebe o baptismo e purifica-te dos teus pecados, invocando o Seu nome». «Quid moraris? Que esperas para fazeres o que Deus quer de ti? Sempre me impressionaram estas palavras de Ananias a Paulo, animando-o a começar imediatamente a sua missão. O Senhor dirige-as também a nós: que esperas para te lançares em cheio à tarefa que te confiei? Porque a fé e a vocação de cristãos afectam toda a nossa existência e não só uma parte dela. As relações com Deus são necessariamente relações de entrega e assumem um sentido de totalidade. A atitude do homem de fé é olhar para a vida, em todas as suas dimensões, com uma perspectiva nova: a que nos é dada por Deus» (Cristo que passa, nº 46). Assim é hoje para nós o caminho de Damasco. Geraldo Morujão, Doutor em Teologia Bíblica

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